Moradores da rua: vulnerabilidade social e a insistência de vida

Raimundo, poeta, escritor e morador de rua de São Paulo, formulou a seguinte frase a um jornalista: “Há uma famosa lei da física que diz que um corpo tem de ocupar um lugar no espaço”. Esta afirmação, transposta para a vivência no universo de Raimundo, sintetiza a experiência fundamental de um sem teto no espaço urbano: a de ter que moldar o corpo à geografia urbana que se torna o único recurso para “estar” no mundo e que, ao mesmo tempo, o repele. Por um lado, os moradores de rua, desprovidos de condições materiais e simbólicas que marcam as tradições identitárias convencionais – mundo, casa e trabalho –, desconectados das relações sociais intrínsecas a essas dimensões e mantidos nas fronteiras liminares da ordem urbana, são tidos como “fora do lugar”, desencaixados espacial e simbolicamente. Sua visibilidade é traduzida como uma ameaça às definições normativas do espaço urbano. Sua exclusão é constantemente reforçada através da coerção física realizada pelas tecnologias de vigilância do espaço urbano e pelas ações policiais ou de agentes urbanísticos; ou pelas atitudes de ofensa e humilhação social às quais são constantemente submetidos.

Por outro lado, na contínua busca de recursos de sobrevivência, sobra-lhes a movimentação pedestre, alargando o seu universo de interlocuções com os segmentos sociais que os circundam, ampliando assim o circuito geográfico na cidade. Essas pessoas vivenciam de forma particular a geografia urbana, tomam como moradia e uso privado lugares de passagem ou esvaziados, fazem da rua um lugar de deslocação contínua, dotado de funções diversas daquela preconizada pela ordem urbana. Embora sua constante circulação – e a enunciação pedestre que dela deriva – reforce um processo de estigmatização contínuo, a condição nômada dos habitantes de rua inscreve uma singularidade de resistência e de reformulação de signos no espaço urbano. Trata-se pois de uma forma de se localizar.

O universo dos moradores de rua, marcado por este duplo movimento de exclusão e vivência nómada, tem o corpo como locus de produção e enunciação dessa experiência. Privados de qualquer outro suporte material e simbólico em suas andanças, é no corpo que se projetam as contínuas e sucessivas intervenções ou manifestações de violência que atualizam cotidianamente as tentativas de exclusão desse segmento. Mas é também através do corpo, sobretudo, que surgem as possibilidades de resistência do morador de rua à sua exclusão. Com reelaborações dos limites e potencialidades do corpo, concebem outros parâmetros de funcionalidade e de uso do espaço urbano, assim como agenciam novas representações a respeito de sua experiência social.

Assim, a errância é uma movimentação necessária. Vemos esta população circular pelo extenso centro da cidade de São Paulo, tomando quase todo o seu dia e sua energia. Gera-se muito cansaço, machuca-se os pés. Gastam horas se deslocando entre instituições, à procura de albergues, de “bocas de rango” (doação de comida), catando papelões, buscando atividades, novos itinerários ou lugares para dormir. Há um segundo sentido que delineia essa circulação permanente. Os moradores de rua, ao caminharem constantemente, ganham a cidade a pé, localizam-se nela, domesticam-na, em termos geográficos e sociais, através do andar. A partir dos trajetos praticados, vão conhecendo os pontos de sopa à noite, as entidades mais adequadas para pernoitar, as praças e viadutos cujo território já está marcado, os restaurantes onde podem garantir uma marmita.

As carroças e os carrinhos são um complemento do esforço corporal neste universo.

©Simone Frangella©Simone Frangella

Alguns carregam família e cachorros com os poucos pertences e materiais recicláveis. Outros fazem do carrinho pequena casa, utilizada para dormir, comer, guardar e ordenar seus objetos, trabalhar e se proteger. Os carrinhos puxados a pé contrastam de forma marcante com o movimento de carros, motocicletas e ônibus na cidade, e com a circulação frenética dos pedestres A movimentação lenta e difícil dos carrinheiros recorda continuamente uma outra disposição dos corpos na dinâmica urbana, colocada no avesso das características velocidade e conforto, as “tecnologias da comodidade” que marcaram as revoluções urbanas desde o século XIX, já completamente difundidas nas configurações urbanas contemporâneas e na trajetória de corpos, de uma particular economia e tecnologia corporal, a qual parece resistir fortemente à neutralização de suas energias através da privação do trabalho, da comida, das formas de se deslocar.

A contenção das emoções e dos gestos, que culmina não raro numa imobilidade corporal, é um patamar de comedimento gradualmente construído, moldando-se a limites geográficos – e igualmente sociais – na rua. Tidos como fora do lugar e, conseqüentemente, colocados na posição de perigosos, os habitantes de rua incorporam estes mecanismos de contenção com os quais diminuem os conflitos com os transeuntes, obtêm mais sucesso na mendicância, preservam relativamente sua tão frágil privacidade. Quando tais mecanismos não são suficientes, deslocam-se para outro ponto.

Corpos curvados, imóveis, comedidos, controlados por linhas invisíveis de limitação espacial, por imposições disciplinadoras dos segmentos sociais com quem têm relações liminares. Contidos em fronteiras da apatia, da vergonha, da solidão. No entanto, a imobilidade disciplinada esconde uma impaciência latente, um esforço para se adequar às imposições espacio-temporais que ocorrem durante a busca dos recursos de sobrevivência. E eis que o quadro pode reverter facilmente em explosões de impaciência e reclamações contínuas se o acordo sofrer alguma ameaça. Assim, as fronteiras de comedimento rompem em ações desmedidas. A espera aparentemente passiva revela um acordo tênue entre o habitante de rua que se submete às relações de dependência com quem mantém a sua sobrevivência e a posição disciplinadora dos que os atendem, entrevendo brechas de explosão das emoções e dos gestos, contingentes e intensas. Tais explosões evidenciam como a ansiedade e a atividade corporal intensa são forçosamente controladas no dia a dia. Poderíamos dizer que ambos os movimentos – de contenção e expansão das emoções – relacionam-se em atrito, sendo experimentados de acordo com a contingente resposta que o habitante das ruas há de dar em seu percurso cotidiano.

Em resumo, os moradores de rua localizam-se territorialmente, sobretudo, através do seu corpo. Por um lado, suportam as mazelas físicas e morais impressas pelas interdições à sua presença, sofrem uma tensão latente que encurva e amarra seus movimentos, comprimem os corpos de maneira a caber nos interstícios e espaços ociosos dos quais se apropriam. Por outro, desviam-se dos obstáculos, moldam técnicas corporais de sobrevivência, demarcam lugares de intimidade, arranjam maneiras de saciar suas necessidades corporais, tornam-se miméticos do espaço acomodando a sua presença à paisagem urbana, criam visibilidades desnorteantes quando necessitam se fazer notar. Essa corporalidade pressupõe resistência à sua eliminação. E se não existe tenacidade possível na manutenção de uma propriedade material, há na forma de preservar sua existência material e simbólica. A subjetividade garantindo o corpo vivo.

Sustentar essa resistência corporal não é tarefa fácil. A corporalidade na rua reside no avesso do corpo que o imaginário urbano e o planejamento urbanístico criam e formatam. A abjeção provoca reações estigmatizantes imediatas e rigorosamente excludentes. O corpo envelhecido, descuidado e com saúde precária frustra as expectativas contemporâneas do projeto do self, o qual não cria respostas que se adaptem à escassez de recursos econômicos e tecnológicos para tratar do corpo. Porém, uma vez que o movimento itinerante está sempre em relação de dependência com o circuito sedentário com o qual estabelece fronteiras tênues, esse segmento manipula, principalmente pelo corpo, relações sociais e conteúdos materiais que emergem no deslocamento entre estas fronteiras. Nessas brechas liminares, os habitantes criam uma subjetividade ambígua, na qual os códigos territoriais se desmantelam e se rearticulam em relações significadoras das experiências de zonas fronteiriças.

A procura da manutenção de um lugar próprio no espaço urbano – um espaço marcado pela impessoalidade e pela funcionalidade homogeneizadora da circulação urbana –coloca esse segmento numa posição social e política “atravessada” com relação aos sentidos de público construídos na cidade. Desta forma, são vistos como fora de lugar. Porém, a passagem dos habitantes de rua pelos espaços públicos possibilita a construção de novos lugares onde os mesmos “cabem” por um determinado tempo e espaço. Se, por um lado, estão apartados das unidades de pertença que garantiam suas referências identitárias até chegar às ruas, por outro, a conquista de um lugar, ainda que transitório, garante sentidos políticos, sociais e subjetivos que não podem ser deixados de lado.

É através do corpo que moradores de rua afirmam algo que é seu. É desse movimento – entre vivenciar dolorosamente a permanência na contramão e “localizar-se” cotidianamente no espaço público – que a corporalidade dos habitantes de rua parece emergir. Essa experiência não subverte a sua situação de pauperização e opressão. Mas, por meio da errância necessária, da teimosia tática e singular, essas pessoas delineiam um território que remete para além da simples sobrevivência, embora esteja completamente formatado pelas necessidades básicas. Traduz um sentido de lugar, contigente, transgressor, efémero mas um sentido de estar e de ser próprio.

***

Publicado originalmente na revista “Este corpo que me ocupa”, BUALA 2014. 

ISBN 978-989-20-5276-2

© da edição: BUALA Associação Cultural

por Simone Frangella
Cidade | 5 Junho 2022 | circuito geográfico na cidade, corpo, corporalidade, espaço, exclusão social, fronteiras, moradores de rua, movimentos, ruas da cidade, sociedade, vulnerabilidade social