Marxa Cabral 2023: rizistensia I dimokrasia

Em dezembro de 2011 andava por Marrocos, num hotel em Casablanca, vindo de Rabat, depois de ter participado na 13º Assembleia-Geral do CODESRIA. Conversava via chat com um dos co-fundadores do Parlamento Gueto, um espaço juvenil de discussão entre membros dos grupos thugs e ativistas. A primeira Marxa Cabral tinha sido organizada quase dois anos antes, em janeiro de 2010. A conversa tinha como assunto o perigo da alienação político-partidário, visto que os organizadores do Parlamento Gueto tinham recebido uma promessa de apoio do então Ministério da Juventude, num contexto em que estava em curso uma tentativa de institucionalização político-partidária dos espaços democráticos alternativos de rua.      

A olho nu e visto de fora, o Parlamento e a Marxa não têm qualquer ligação. O certo é que ambos foram criados por organizações juvenis longe do aparato partidário e institucional, como formas de ação e promoção de uma cultura da paz num contexto da violência dos gangues de rua. Do mesmo modo, ambos representavam a continuidade cabralista de unidade e luta, bem como uma manifestação de resistência sociocultural e de democracia colaborativa.

Da experiência da Marxa do Hip-Hop de 2010, liderada por Dudu Rodrigues e a Associação Djuntarti, passou-se para a Marxa do Povo, em 2013, liderada por João José Monteiro aka UV e o movimento Korrenti Ativizta. Hoje, 13 anos depois da primeira marcha, a Associação Pilorinhu dá continuidade à reinvenção iniciada na Marxa de 2022 e associado ao Movimento Federalista Pan-Africano e um conjunto de outras organizações juvenis e comunitárias, entre as quais a Rede das Associações Comunitárias e Movimentos Sociais da Praia, que o Pilorinhu é também membro, propõe 4 dias de atividades. Com o tema resistência e democracia, liga conceptualmente a proposta original da Marxa do Hip-Hop e da Marxa do Povo com a do Parlamento Gueto, com a promoção de um conjunto de espaços de reflexão culminando com a já tradicional marcha pelas ruas da cidade, que este ano circula entre a Fundação Amílcar Cabral, no Plateau, e o Memorial Amílcar Cabral, na Várzea”

A historiografia cabo-verdiana mostra que Cabo Verde tem uma história de resistência cultural, política e de revoltas. A auto-libertação dos africanos escravizados e a edificação de comunidades autónomas nas montanhas e nos vales profundos ainda no século XV, ao redor da Ribeira Grande, são apontadas por António Correia e Silva como prenúncio de resistência social e cultural no arquipélago. Sobre os acontecimentos de 1835, em que africanos escravizados e forros, instigados por homens do círculo da governação, tentaram tomar Santiago, Henrique de Santa Rita Vieira entendeu como primeiro esforço para a independência do arquipélago, o que veio a reforçar no imaginário da elite colonial e nativa o receio da ilha poder vir a transformar-se num novo Haiti. Contudo, o sonho da independência só foi possível mais ou menos um século e meio depois, liderada pela geração de Amílcar Cabral. Antes, em São Vicente, segundo António Correia e Silva, a crise carvoeira faz despoletar o embrião de um movimento social operário liderado pela elite intelectual, numa época em que pela primeira vez se colocou na discussão pública a questão da autonomia, na mesma forma como é defendida hoje pelo movimento mindelense Sokols. Curiosamente, o pensamento intelectual da elite mindelense da primeira metade do século XX e a geração pós-Cabral vai ter um papel preponderante na reprodução daquilo que Odair Barros Varela chamou de Estado burocrático racista colonial no pós-independência que, sustentado pelas teorias da escola da modernização, o Estado pós-independência é construído com base na ideia da mestiçagem como identidade de todos os cabo-verdianos, diferenciando-os do ponto de vista identitária e civilizacional dos outros africanos. 

Deste modo, a recusa da prática do suicídio de classe sugerida por Cabral por parte daqueles a que Frantz Fanon denominou de elite colonizada, potencializou o neocolonialismo forjado no período da libertação entre a elite nativa e a burguesia colonialista, reproduzido hoje pela elite política, cultural e académica nativa em conluio com a elite transnacional, representada pela classe tecnocrática de topo nas agências do desenvolvimento. Portanto, em termos simbólicos, a Marxa Cabral representa o retorno à fonte na lógica cabralista e potencializa a tomada da consciência das várias formas de violência reproduzida desde o período colonial – exploração, humilhação, deslocações forçadas, condenação à fome –, hoje com uma nova roupagem. 

O surgimento das organizações políticas apartidários que dão suporte à Marxa, a meu ver, representam a nova resistência política do período pós-colonial e democrático em Cabo Verde. Como dizia Cabral, a construção da consciência política é a primeira condição para a resistência política, o primeiro componente do projeto unidade e luta, ou seja, de continuar Cabral. A emergência da construção não de uma política de identidade, mas de uma identidade em política, na forma como é conceptualizado por Walter Mignolo. Isto é, uma identidade construída fora da razão imperial e colonialista, que através de um processo de aprendizagem da (des)aprendizagem, que traduzo como processo de emburrecimento, se tenta reconstruir uma identidade de resistência inspirado nos rabeladus e na tabanka. Ambos pensados como representantes simbólicos dos africanos auto-libertos, através da qual se poderá pensar a contra-colonialidade. A este processo Cabral chamou de (re)africanização dos espíritos e das mentes, segundo ele, o único caminho para se alcançar a resistência cultural. Neste sentido, a língua cabo-verdiana ganha primordial importância, que tal como afirma Mahmood Mamdani, deve ser entendida como ponto de partida para a libertação da mente. Daí, a Marxa deste ano se ter iniciado como uma roda de conversa sobre a política da língua, introduzido por Djuntamon Afrikanu

Em termos económicos, ao invés de se criar condições para a libertação económica do país, se reproduziu no período pós-independência os modelos de produção e de acumulação herdados do período colonial, salientado por António Correia e Silva, quando afirma que apesar dos inegáveis ganhos nesses 40 décadas de governação, Cabo Verde passa por uma crise de reprodução do modelo de distribuição social e de crescimento económico vigente deste a independência. Entre eles, um modelo económico com base na indústria do turismo projetada no período tardo-colonial em todo o continente africano e denunciado por Frantz Fanon, que transformou a economia cabo-verdiana, entre os anos de 1990 e 2010, numa economia de enclave. Um tipo de economia que, como lembra Felwine Sarr, apesar de gerar pequenos ganhos monetários, não conduz a um desenvolvimento integrado. Pelo contrário, cria problemas ambientais e sociais, promove a corrupção e influencia a afetação de recursos que, pela sua limitação no arquipélago, gera dependência estatal e alienação social e política. Em 2014, nas vésperas da celebração dos 40 anos da independência, denominado por estas organizações como os 40 anos de celebração da dependência, Germano Almeida, entrevistado por José Vicente Lopes, questionava: “com a independência, recebemos a ajuda da comunidade internacional, que foi bem gerida, de um modo geral, mas pergunto: será que essa ajuda foi usada no sentido de criarmos, de facto, um país capaz de viver de forma autónoma”? Continua com a afirmação de que a impressão que dá é que hoje se vive num país gerido como se rico fosse, o que tem provocado grandes tensões entre os partidos - e respetivos membros muito virados para os seus próprios umbigos - e o povo. 

Pensada como um espaço público de reivindicação política, a Marxa representa a continuidade da “guerra” de libertação (ou da própria revolução haitiana), uma vez que tem na exigência de dignidade e reconhecimento a sua força-motriz. Como salienta Archie Mafeje, o slogan liberdade, igualdade e fraternidade que serve da bandeira da revolução francesa não se traduziu numa igualdade e solidariedade entre pessoas em situação de desvantagem social, como aqueles que criaram a Marxa em 2010, o continuaram em 2013 e a estão a reconstruir hoje. Entretanto, o seu valor reside no fato de ter rompido as fronteiras da sociedade feudal e ter inaugurado uma nova era histórica em que as novas liberdades não só podem ser desfrutadas como os seus limites verificados. 

Ao entender a democracia como um processo em curso e em consolidação, perante a recusa da classe política em praticar uma política de dignidade e insistir na reprodução de uma política de inimizade, a Marxa significa, assim, a prática de uma política de indignação e de rua. Sendo o processo de politização uma necessidade basilar deste projeto, em parceria com o Movimento Federalista Pan-Africana, se promove nesta edição uma roda de reflexão sobre a democracia, introduzido por Lumumba Shabaka, em que a partir da identificação dos princípios-chaves da democracia revolucionária, se pensa a construção de uma democracia direta e colaborativa. Isto num tempo histórico em que a democracia liberal a nível mundial é fortemente contestada, na medida em que, na esteira do argumento de Achille Mbembe, poder-se-á dizer que foi sequestrada pela elite política que, ao alcançar o poder, traiu as esperanças da independência (e da democracia), visto terem substituído o poder colonial por um poder nacional oligárquico servil aos antigos colonos. Num artigo apresentado em 2018 na 15º Assembleia-Geral do CODESRIA, em Dacar, no Senegal, publicado em 2020 pela Africa Development, aleguei que a desmoralização sentida pelos jovens que dão vida à Marxa tem a ver com a impressão de terem sido enganados e encontrarem-se sub-representados em termos políticos, o que faz com que as noções de sobrevivência e identidade tenham sido desvinculadas dos objetivos políticos do Estado e da noção abstrata da democracia. 

Por fim, é percetível que a Marxa Cabral 2023 consolida a redefinição iniciada no ano passado, numa nova era de consolidação da luta cabralista pan-africana. Por exemplo, este ano ela vai ser organizada em simultâneo na ilha do Sal, um território gentrificado e turistificado, transformado numa espécie de enclave europeu a beira-mar tropical. Quer-me também parecer que esta Marxa abre possibilidades para a edificação de uma ponte de resistência política com a manifestação Estado da Nação promovido no ano passado pela Rede das Associações Comunitárias e Movimentos Sociais da Praia e que terá repetição em agosto próximo.  

 

por Redy Wilson Lima
Cidade | 18 Janeiro 2023 | Amílcar Cabral, Cabo Verde, marxa cabral