Graça Machel

Veio a Lisboa para receber o diploma de membro emérito com que a Academia das Ciências quis honrar Nelson Mandela. Foi um bom pretexto para falar de dois libertadores, Samora Machel e Mandela, mas também para dar testemunho de si mesma, menina de Incadine, na província moçambicana de Gaza, até se tornar em mulher-sábia no Grupo dos Anciãos da África Austral.

Foram três dias e chegaram para vencer e convencer. A afectividade da visitante, que não apaga uma determinação voluntariosa, fez dela a oradora responsável no Centro Cultural de Belém. Aí proferiu uma solene conferência sobre a esperança africana no século XXI. Depois, veio a discreta senhora que entrou nas salas da centenária Academia para falar de Nelson Mandela. Ao terceiro dia, amável, quase conterrânea, foi a doutora honoris causa na Universidade de Évora, onde invocou Catarina Eufémia, mártir da causa pela dignidade humana, num tempo em que fascismo e colonialismo faziam parelha na governação em Lisboa.

«Os desafios são enormes. Mas é possível fazer mais e melhor (…) É certo que há lados negativos, mas não se pode dizer que os 53 líderes [dos países africanos] estão de braços cruzados. Prefiro falar da África positiva, mas não iludo os aspectos negativos» – esta foi, em síntese, a mensagem que deixou na conferência inaugural, no Centro Cultural de Belém (CCB), numa iniciativa do Centro de História Contemporânea e Relações Internacionais e da África21, com o patrocínio da Fundação Luso-Americana.

Entre os desafios está a passagem para a sociedade do conhecimento, feita de modo sustentado, assente na pedagogia do apoio, que deve unir em parceria a União Europeia e a África com as suas instituições universitárias de pesquisa.

Do lado positivo está a democratização crescente dos países africanos, onde no quadro do Nepad (Nova Parceria para o Desenvolvimento de África), Graça Machel participa na avaliação interpares, ou seja, um Governo sujeita-se à apreciação da sua política administrativa por parte de outros dirigentes. «Oito já foram avaliados e 20 outros já aderiram a este projecto», sublinhou a oradora.

«Quanto aos erros, o Zimbabwe é um bom exemplo», explicável apenas por atavismos de reverência tradicional e apego excessivo ao poder e às suas benesses. Uma situação cuja solução democrática tarda a chegar, mas, acentuou, não escapou à observação do Grupo dos Anciãos, que já saiu da sua discrição inicial para assumir um papel interventor nas negociações entre Mugabe e Tsvangirai.

Preocupante é também a situação no Congo, designadamente na região de Kivu, onde os confrontos militares entre facções que se dizem inspiradas por conflitos étnicos não pressagiam bons tempos. Embora afastando a perspectiva de um ge- nocídio – «Ruanda nunca mais» – não deixou de lamentar que não se tivessem desarmado as milícias que ficaram nas franjas desse conflito entre hutus e tutsis. Afirmou que a solução deve ser encontrada no quadro da SADC, e receou, acima de tudo, a formação de alianças particulares, que podem muito rapidamente descair para um amplo conflito regional, podendo levar a uma guerra generalizada a toda a África subsariana.

No capítulo negativo, a derradeira menção foi para a Somália e para a recente lapidação de uma jovem de 13/14 anos, morta pelos familiares, acusada de adultério por ter sido violada. A afronta à dignidade da mulher é aqui muito grande, mas Graça, à crítica desesperada, preferiu apontar os sinais de «emergência de uma liderança feminina», a qual tornará impossíveis tais actos. Recordou que o seu país tinha uma primeira-ministra, Luísa Diogo, que a Libéria era dirigida por uma mulher, Ellen Johnson-Shirleaf, e que sendo esse o caminho, o da participação da mulher na esfera da governação, não podia deixar de recordar que «o Gana, o mais antigo país independente, tem 50 anos» e a África do Sul apenas há 14 anos se libertou do apartheid.

Daí a necessidade de «uma visão mais equilibrada, sem perder de vista a pedagogia do apoio», mais útil do que a destrutiva crítica do abandono.

A conferência no CCB prolongou-se por várias horas, com a participação interessada do público e a intervenção dos convidados da mesa, onde além da anfitriã, a ensaísta e antiga euro-deputada Maria Belo, estiveram a jornalista da África21 Nicole Guardiola e os embaixadores António Monteiro e Ana Gomes. Foi neste período de diálogo que veio a pergunta sobre a opinião que o casal Mandela tinha sobre Barack Obama, o novo Presidente dos EUA. Graça resumiu-a num apontamento tirado das recordações do dia da eleição, que ela e Nelson seguiram com atenção na TV. Quando ficou certo o resultado das urnas, Nelson bateu as palmas e, plagiando o slogan da campanha, «we can!» [nós podemos], transformou-o num elogioso «you can!» [tu podes].

«O PODER CORROSIVO DA GENEROSIDADE»

Porém, o elogio de corpo inteiro a Mandela veio no dia seguinte, no cenário clássico da Academia das Ciências, onde os académicos, por feliz coincidência, debatiam, com colegas brasileiros, a influência de Machado de Assis na cultura universal, através do idioma português. O momento alto desta cerimónia, realizada com todo o protocolo de Estado, com a presença do presidente da Assembleia da República, Jaime Gama, do primeiro-ministro, José Sócrates, e dos antigos Presidentes da República, Ramalho Eanes e Mário Soares, foi a entrega a Nelson Mandela, na pessoa da sua esposa, Graça, do título de sócio honorário da Academia.

«Com toda a modéstia, é uma honra, é um privilégio estar nesta casa» e a estas palavras, onde se misturava emoção e responsabilidade, Graça acrescentou um suplemento de gravidade ao afirmar que através dela era a voz das mulheres do seu país e também da África que ali entravam. Passou depois a «falar de alguém com quem se está e vive», o que sinceramente é difícil, acentuou. Sobretudo quando esse outro é Nelson Mandela. Mas não se esquivou a essa dificuldade e quis deixar «algumas ideias» sobre o homem com quem nos últimos dez anos partilha a intimidade.

A primeira foi sobre o erro que persiste em «ver em Mandela um ícone e não o dirigente político». Considerou que com essa atitude se tentava envolver Mandela «num véu de santidade» e, assim, «absolverem-se» os que o incensam de seguir os seus ensinamentos. O primeiro deles, sublinhou, é que ele «simboliza a possibilidade de trazer a moralidade para a área política». Ou, como disse a concluir, Mandela actuou e actua «sempre com o objectivo de melhorar a vida dos homens; evitar mortes e pôr a política ao serviço de milhões e não milhões ao serviço da política».

No desfazer criterioso da visão «milagreira» com que alguns o querem apresentar, Graça valorizou a visão de um homem que assume a responsabilidade das suas opções e não se submete ao peso cego da autoridade, seja ela legitimada pela tradição ou pelo poder político. A fuga do Transval natal, quando aos 18 anos lhe queriam impor um «casamento arranjado», ilustra o primeiro caso e significa o corte com uma «aberração ideológica» que priva o indivíduo da sua própria vida.

Sobre a resistência ao poder sem peias da autoridade de Estado lembrou a atitude que Mandela assumiu quando, com uma falsa magnanimidade, Pieter Botha ao fim de 23 anos de prisão lhe ofereceu a liberdade condicional, sob a injunção: «renuncia à violência e serás livre». Recusou a proposta, mas fê-lo alterando os seus termos. Ao mesmo tempo que deixava claro ao carrasco que não aceitava ordens dele, pressionava o seu partido, o Congresso Nacional Africano (ANC), a não romper com as negociações, mesmo se estas pareciam impossíveis com o braço-de-ferro criado com Botha.

«Foi mais uma década na prisão», mas, constatou a sua actual mulher, foi a visão política de Mandela que se impôs. Quando Frederick de Klerck assumiu libertá-lo sem condições e todo o mundo assistiu à «modéstia» com que respondia aos aplausos, ficou a pairar uma ideia de fragilidade quanto à sua capacidade para afrontar os novos desafios.

De facto, «durante os primeiros anos de negociações houve tentativas por parte da polícia política do apartheid para complicar» as negociações. Mandela, porém, «rapidamente se despira da capa de libertador ingénuo para assumir a de negociador experimentado em negociações ríspidas». Houve um momento em que ameaçou com a saída do ANC do Executivo, com a sombra da guerra civil a pairar sobre todo o país. Contudo, ao mesmo tempo, usava «o poder corrosivo da generosidade» com quem tão pouco generoso fora para com ele. Essa atitude de «desarmar» pelo exemplo moral teve o seu ponto alto quando no aceso da crise ele foi aclamado como o líder do país no decurso de uma grande cerimónia desportiva, onde a maioria dos adeptos eram brancos. É todo um percurso, sublinhou, que deixa as «marcas estratégicas de um dirigente político experimentado».  

CATARINA, MINHA IRMÃ

O dia em Évora foi o das afectividades. O dia da Graça. Ela foi o centro da cerimónia e o seu discurso, mais do que uma intervenção académica, foi a fala de uma mulher que naquele lugar saúda todas as suas irmãs no sofrimento, mas, também, na luta por melhores condições de vida.

A referência foi a ceifeira Catarina Eufémia, baleada e morta por uma força policial no dia 19 de Maio de 1954, com 26 anos, quando com outras mulheres se batia em defesa das oito horas de trabalho diário. «Reencontro inúmeras Catarinas Eufémias no meu trabalho em Moçambique, na África Austral, em todo o continente africano. Mulheres de coragem, determinação, mulheres que não se vergam perante a injustiça» – disse logo no início do discurso solene de agradecimento pelo grau de doutor honoris causa, com que acabava de ser agraciada.

Em Évora, o sujeito foi a doutorada, que aludiu com prazer aos tempos de juventude, quando em Lisboa preparava a sua licenciatura em Filologia Germânica. Vivia-se o final da década de 1960, a resistência interna ao regime e a luta armada pela libertação nacional, em África, consolidava-se de ano para ano, apesar das vagas de repressão, que enchiam as prisões em Portugal e os campos de concentração nas colónias.

Graça abriu com o retrato desse tempo, aliando as duas lutas sociais no mesmo objectivo e fazendo da «pobreza campesina» o denominador comum. Dessa condição de carência resultaram inúmeras revoltas, reprimidas com ferocidade, porque essas «mulheres labutadoras» reclamavam por «pão e trabalho». Uma situação em tudo idêntica à que conhecera na sua aldeia natal, Incadine, na Gaza moçambicana.

Regressou, mais à frente, a este tema maior na sua intervenção, quando fez o balanço dos 18 anos de guerra pós-independência em Moçambique e do cortejo de miséria que deixou: «Mais de dois milhões de refugiados a regressar; cinco milhões de deslocados no interior do país; 45 por cento da rede escolar primária destruída; estradas, pontes, vias-férreas destruídas (…). Mais grave ainda: pessoas traumatizadas». Para sair desta depressiva situação foi preciso «recomeçar tudo de novo». A reconstrução fez-se a partir de três pilares: reassentamento, reabilitação, reconstrução. E o contributo de Graça Machel incidiu sobre o trabalho nas comunidades. O objectivo foi levá-las a acolher os órfãos como filhos seus, responsabilidade comunitária de todos, e dar-lhes o lar onde eles pudessem recuperar e crescer.

Presidente da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC)Presidente da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC)

Daqui nasceu em 1994 a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC), destinada às mulheres e às crianças, uma obra de que Graça Machel notoriamente se orgulha: «Alfabetizar uma mulher no seio de uma comunidade é como iniciar o trabalho de lapidação de um diamante. Ter uma enfermeira no seio da comunidade é constatar que a doença não tem de ser fatal. Ter uma estrada que liga a comunidade à sede do distrito é romper o isolamento. Ter um rádio é uma dádiva que vai revolucionar espíritos, que vai abrir novos horizontes». A estratégia da Fundação aponta para a «formação da mulher jovem a níveis médio e superior», com a intenção afirmada de com elas se constituir uma massa crítica «que irá servir de fermento para estágios mais elevados de desenvolvimento social».

Quem veio explicar o significado deste estudo e o que ele ainda hoje representa de lição prática e fonte sociológica em todo o mundo foi o seu «padrinho» na cerimónia, o académico Hélder Fonseca. Na extensa oração laudatória que proferiu, ele chamou a atenção para a mais recente publicação sobre o assunto, coordenada por Graça Machel e editada pela Unicef em 2007, em francês e inglês: Saurez-vous nous écouter? Voix de jeunes en zones de conflit [Sabereis escutar-nos? Vozes de jovens em zonas de conflito], mas sem deixar de aconselhar The Impact of War on Children, de Graça Machel, com fotos de Sebastião Salgado, e editado em 2001 pela Longres and Hursts.

A homenageada, porém, sem esquecer as crianças, quis pôr a tónica nas mulheres e no apoio de que elas necessitam para levar a cabo o colossal esforço de dar às crianças, órfãs e psicologicamente destroçadas, o afecto materno, a via por excelência para a sua reintegração social. Qualificando-se a si própria como privilegiada, por ter podido ir à escola, quis que ecoasse naquele auditório a sua mensagem: «São ainda aos milhões em África as raparigas da minha origem que crescem sem ter a oportunidade de exercer o direito de se sentar num banco de escola. «É a elas que dedico esta homenagem. Para que cedo se lhes abra essa oportunidade. E que a oportunidade lhes revele um mundo de ciência e conhecimento que o século XXI lhes pode oferecer».

Biografia de uma mulher africana

Graça Simbine, viúva de Samora Machel e esposa de Nelson Mandela. A referência aos seus dois «maridos e heróis», como ela gosta de os chamar, bastaria para fazer desta moçambicana de 63 anos uma figura ímpar da história africana contemporânea. Mas Graça Machel é muito mais do que a mulher de dois homens excepcionais. Ela sabe-o melhor do que ninguém, e nunca quis ser apenas «primeira-dama».  

«A Graça nunca dá um ponto sem nó», diz quem a conhece bem. O que se impõe a quem a vê e ouve é a consciência que ela tem de ser uma mensagem e uma referência para todas as mulheres africanas, com a obrigação de estar em todas as circunstâncias à altura do papel que pretende representar para os jovens, africanos e não só, que «têm como dever continuar as lutas que a minha geração começou». Utiliza a sua biografia como argumento e arma e elege uma ou outra das facetas do seu perfil, consoante o auditório, para lançar recados e desafios.

Em Lisboa, no Centro Cultural de Belém, a intelectual afirmou que «o que nos separa [dos europeus] em termos de desenvolvimento é o conhecimento científico e tecnológico» e desafiou a cooperação portuguesa a esmerar-se na transferência de saberes. Na Reitoria da Universidade de Évora, depois de receber «com orgulho e humildade» o título de Doutora Honoris Causa, invocou as suas amigas de infância de Incadine, na província de Gaza, que reencontrou, muitos anos mais tarde, «analfabetas e carregadas de filhos e filhas condenadas a reproduzir o mesmo ciclo de ignorância e pobreza». Fê-lo para destacar a «sorte» que teve por a sua mãe e irmãos mais velhos se terem empenhado em cumprir a promessa feita ao pai – falecido antes do nascimento de Graça – de dar à caçula da família a oportunidade de estudar.

Família, solidariedade, trabalho são as palavras-chave do seu credo. Foi a Missão protestante que lhe permitiu seguir estudos superiores em Portugal, mas as bolsas eram reservadas aos melhores alunos. «Ganhei-a», diz Graça.

O irmão Gabriel já estava a estudar nos EUA e acompanhou à distância os progressos da irmã nas lides universitárias, primeiro em Coimbra e depois em Lisboa, e na tomada de consciência política. Era militante da Frelimo1. Graça ingressou na organização clandestina em 1969.No âmbito da Ofensiva, o Presidente Machel aparece de surpresa com a sua comitiva numa escola de Maputo. À sua esquerda vê-se Carlos Cardoso. À sua frente o José Cabaço, mais à direita Miguéis Lopes Júnior. Mesmo no canto do lado direito vê-se Graça Machel.No âmbito da Ofensiva, o Presidente Machel aparece de surpresa com a sua comitiva numa escola de Maputo. À sua esquerda vê-se Carlos Cardoso. À sua frente o José Cabaço, mais à direita Miguéis Lopes Júnior. Mesmo no canto do lado direito vê-se Graça Machel.

A CONSTRUÇÃO DA INDEPENDÊNCIA

Para Graça, a Frelimo completou a sua educação e as duas formações tiveram a mesma importância. Numa entrevista publicada em 2005 no Brasil1 explicava qual foi o seu papel na guerrilha, a que se juntou em 1973 na Tanzânia: «A Frelimo fazia muita questão de que os soldados não fossem apenas militares. Tínhamos de estar politicamente conscientes daquilo que estávamos fazendo, porque estávamos lutando, porque queríamos a independência. Por isso, a informação era fundamental. Líamos os noticiários e fazíamos com que o campo se mantivesse informado. Por outro lado, eu dava aulas à noite para as moças do nosso grupo que não sabiam ler. Uma das minhas instrutoras, por exemplo, dava-me aulas durante o dia, mas à noite ela era minha aluna. Participei dos programas de alfabetização e dos programas de cultura, e até organizámos peças de teatro. Quando fizemos dez anos de luta armada, fui para o interior do país contar essa batalha, por meio das histórias de vida das pessoas. Recolhemos muitas informações junto dos jovens, das mulheres e dos camponeses. A Frelimo queria saber o que aqueles anos tinham significado na vida das pessoas. Era o papel do grupo do qual eu fazia parte: instruir, informar e ensinar os companheiros de luta».Samora e Graça MachelSamora e Graça MachelNa altura, Samora Machel já era o presidente da Frelimo e Graça um soldado raso. «Mas como eu tinha acabado de chegar da Europa, onde tinha estudado, ele procurou-me com o objectivo de entender o cenário de Portugal (…). Samora me fazia muitas perguntas, queria entender tudo e tivemos debates muito interessantes. Acho que foi ali que começámos a nos descobrir como pessoas (…). No meio daquelas conversas repetidas, começou a surgir uma certa química. Foi assim que nos aproximámos».

Aconteceu o 25 de Abril em Portugal, iniciou-se o processo de negociações com os Movimentos de Libertação e, na mesma entrevista, Graça lembra a emoção que sentiu ao sentar-se à mesa com os representantes do Governo de Lisboa, porque a Frelimo fazia questão de integrar mulheres a todos os níveis, ao contrário do que acontecia na sociedade tradicional moçambicana e no regime colonial português.

«Eu tinha 28 anos e vivi um momento único, porque esses momentos acontecem uma única vez na história. Foi muito bom para mim ter sido parte da história do meu país, da história da África Austral também, porque a Frelimo foi o primeiro movimento de libertação que venceu militarmente e forçou os colonizadores a assinar a rendição. Nós proclamámos a independência, não a recebemos das mãos de Portugal. (…) A independência de Moçambique e de Angola acelerou a queda dos regimes racistas na África Austral.»

Após a assinatura dos acordos de paz em Setembro, Graça integrou o Governo de Transição chefiado por Joaquim Chissano. Em 1975 ingressou no Comité Central da Frelimo e casou com Samora Machel.

ULTRAPASSAR A GUERRA

Ministra da Educação até 1989, Graça orgulha-se de terem conseguido escolarizar a quase totalidade das crianças no ensino básico, num país onde 90 por cento da população era analfabeta e menos de dez por cento falava português. A guerra civil, que durou 17 anos, arruinou muitas destas conquistas, destruindo a quase totalidade das escolas e causando milhões de mortos, viúvas, órfãos, mutilados, deslocados e refugiados.

Viúva de Samora Machel, falecido em 1986 num acidente de aviação em território sul-africano, Graça considera-se uma das vítimas da guerra movida contra o seu povo pelo regime do apartheid.

«Eu sei que foram eles que o assassinaram, todo o mundo sabe, mas infelizmente eu não posso prová-lo. Mais do que fazerem de mim uma viúva, a África do Sul fez dos meus filhos órfãos. Eu nunca tive pai e ficava muito feliz de ouvir meus filhos dizendo papá, de vê-lo levando-os nos ombros, como todos os pais fazem. Eles assassinaram o pai dos meus filhos e isso eu não consigo perdoar»2.

Quem assistiu ao funeral de Samora Machel em Maputo não esqueceu certamente a mulher vestida de negro que descia a grande escadaria do Palácio Municipal atrás do caixão, hirta de dor e dignidade, rodeada pelos filhos do Presidente, dos quais apenas dois eram os seus filhos biológicos.

EM DEFESA DAS CRIANÇAS

Graça não disse se teve então consciência de entrar numa nova etapa da sua vida. Manteve-se no Governo por três anos, continuou a participar activamente na vida política e a guerra só acabou em 1992. Mas em 1990 já tinha criado a Associação para o Desenvolvimento da Comunidade (ADC), com os mesmos objectivos que são hoje os da Fundação do mesmo nome.

Se a educação das crianças foi sempre uma prioridade para os fundadores, a FDC defende que a tarefa não se esgota com escolas e bolsas de estudo. É preciso fazer com que as crianças, privadas de pais pela guerra ou pela sida, encontrem na comunidade a que pertencem uma família de substituição que as ampare, acompanhe e proteja contra a estigmatização e a exclusão. Para isso é necessário trabalhar com as comunidades, envolvê-las na tomada de decisões, rompendo com a dependência em relação aos «doadores» externos, por mais bem intencionados que sejam.

O trabalho desenvolvido por Graça Machel em Moçambique levou Boutros Boutros-Gali, então secretário-geral da ONU, a encarregá-la da coordenação de um estudo sobre o impacto dos conflitos armados. Publicado em 1996, sob o título de «Impact of Armed Conflict on Children» o «relatório Machel» alertou o mundo para a gravidade de crimes como o alistamento de crianças soldados, a sua exploração sexual e as sequelas traumáticas da violência em que participaram como autores e vítimas.

O trabalho de campo realizado para a elaboração do relatório revelou a Graça Machel o drama das pequenas vítimas de conflitos alheios às realidades africanas, na ex-Jugoslávia, Palestina, Timor, Colômbia.

As inúmeras iniciativas a que deu origem o «relatório Machel» não tiveram o efeito desejado. Um inquérito realizado dez anos depois constatou que apesar da diminuição do número de conflitos armados «o impacto da guerra nas crianças é mais brutal que nunca e viola todos os direitos dos menores». Mas abriu um novo capítulo da defesa dos direitos humanos e lançou a sua autora na alta-roda da política planetária como «especialista» muito consultada e para falar em nome das vítimas, dos «sem voz».

A outra tarefa que Graça Machel assumiu com paixão foi a defesa do legado de Samora Machel como político e estratega da libertação da África Austral, o que inclui a divulgação dos seus discursos e do seu pensamento, bem como os esforços para fazer toda a luz sobre a sua morte. Graça diz que «o nosso país passou por vários processos sobrepostos, mas eu acho que a principal conquista é a independência, sermos um Estado soberano. Para quem viveu alguns anos no período colonial não há dúvida de que o facto de termos a nossa própria identidade, a possibilidade de tomarmos decisões sobre aquilo que queremos ser, aquilo que queremos que o nosso país seja, são conquistas que não podem ser medidas. São valores sagrados».

 

DUAS VEZES PRIMEIRA-DAMA

Para incitar o novo regime sul-africano a retomar as investigações sobre o acidente que vitimou Samora a viúva procurou o apoio de Nelson Mandela, recém-eleito primeiro Presidente negro da África do Sul. E de novo a «química» operou. O grande lutador septuagenário, combalido emocionalmente pela ruptura com Winnie, apaixonou-se e recobrou a serenidade ao lado de uma «jovem extraordinária». O mundo comoveu-se com este idílio outonal e as fotos do casal, passeando de mãos dadas, foram capa da imprensa internacional.

O casamento foi há dez anos, Graça continua a chamar-se Machel e cada um mantém as actividades e os interesses que tinha antes, com as crianças e as vítimas da sida como preocupação central. Mandela, doente, foi progressivamente reduzindo as intervenções públicas. Mora a maior parte do tempo em Maputo, na casa de Graça, que frequentemente o representa nas homenagens que o mundo continua a render-lhe. Foi o que aconteceu em Lisboa, quando a Academia das Ciências fez do ex-Presidente sul-africano seu sócio. É ela que participa mais activamente nas missões de paz do Grupo dos «Elders» (anciãos), que faz parte do júri do Prémio Bo Ibrahim, que distingue todos os anos um chefe de Estado africano que deu prova de bom comportamento democrático, e que intervém como especialista no mecanismo de «revisão pelos pares» criado pela União Africana para avaliar as boas práticas governativas dos seus membros. Mas quando ela o faz, todos sabem que as ideias são também as de Mandela quando se trata das grandes opções políticas.

Também aprendeu a falar publicamente da «química» que os une, em parte para defender o homem político que Mandela é e, acima de tudo, contra as tentativas de o embalsamar em vida, como santo de altar. Confessa que foi complicado: «os dois homens com que me casei são para mim um misto de marido e herói. Com o tempo aprendi a conciliar a vida pública com a vida pessoal. A verdade é uma: Nelson Mandela é herói de todos nós mas é ao mesmo tempo a pessoa com quem partilho detalhes da vida, é meu marido, é pai dos meus filhos e o meu melhor amigo».

 

In Revista Africa 21 , edição nº 24, Novembro 2008

 

por António Melo
Cara a cara | 23 Março 2011 | Africa do Sul, apartheid, educação, empowerment, frelimo, libertação, Mandela, moçambique, mulher, samora machel