O Islão pelas terras de África

1ª Parte por Nicole Guardiola:

O Islão é a religião que mais progride em África, o que preocupa os missionários cristãos e os serviços de luta contra o terrorismo. Os historiadores observam que as relações entre o continente negro e o mundo árabe são anteriores ao Islão e deram lugar na África Oriental à língua swahili, a língua veicular não europeia mais usada em África. Os sociólogos destacam a compatibilidade do Islão popular (menos dogmático que o cristianismo) com as crenças e costumes bantos tradicionais, tanto ao nível da família (poligamia, fecundidade, casamentos precoces) como da organização social (solidariedade) e política (clientelismo e obediência ao chefe).

Há também razões mais pragmáticas para muitas conversões: os petrodólares da Líbia, Arábia Saudita e Emirados Árabes, e as redes comerciais criadas pelas grandes irmandades muçulmanas. Como se diz na África do Sul: «O Islão é bom para os negócios». E outras, mais ideológicas, nomeadamente entre as elites outrora receptivas ao marxismo: um anticolonialismo virulento e a rejeição da herança cultural europeia, em nome das injustiças passadas e da luta contra a corrupção, a droga e outras formas de «decadência» (homossexualidade, prostituição, perda de respeito pelos mais velhos). Por uma razão ou por outra, as atenções da imprensa internacional estão focalizadas nos muçulmanos africanos, da Nigéria à Somália e do Magrebe à África Austral.Mesquita Central em Abuja, Nigéria

Quem tem medo da maré verde?

Os muçulmanos são quase metade da população da Nigéria, mas na África do Sul constituem uma minoria insignificante. Na Argélia, Sudão e Somália o Islão é religião oficial e nestes três países recrudesce o terrorismo atribuído aos fundamentalistas islâmicos. Cinco casos diversos da África muçulmana. 

OS «TALIBANS NEGROS» DA NIGÉRIA

Há cerca de dez anos que os serviços secretos norte-americanos receiam ver a Al-Qaeda implantarse na Nigéria, grande ornecedor de petróleo e gás para os Estados Unidos e União Europeia. Os sangrentos acontecimentos da última semana de Julho, em Maiduguri, capital do estado de Borno, no nordeste do país, parecem confirmar a realidade da ameaça. Segundo o Governo federal, a decisão de pôr termo às actividades de uma seita radical ultraminoritária, cujos membros se faziam chamar de «talibans», provocou uma violenta reacção dos islamistas, que atacaram esquadras da polícia. Os distúrbios alastraram a três estados vizinhos, também de maioria muçulmana, pelo que o Presidente Umaru Yar’Adua ordenou às forças de segurança para «esmagar» a rebelião. Estas bombardearam os bastiões islamistas e massacraram centenas de alegados rebeldes, entre os quais o seu líder, Mohamed Yusuf. 

Os serviços secretos nigerianos dizem ter provas de que Yusuf, que estudou teologia na Arábia Saudita, queria instaurar um califado muçulmano na Nigéria, erradicando todo o vestígio de influência ocidental (Boko Haram, o nome da organização que criou em 2004, significaria em língua haussa «a educação moderna é pecado»).

Segundo outras fontes, o núcleo duro da seita teria sido formado por veteranos do Afeganistão e tem ligações com a Al-Qaeda no Magreb Árabe.

Analistas consideram, no entanto, que não é justo atribuir aos muçulmanos a exclusiva responsabilidade da violência que dilacera a sociedade nigeriana. O proselitismo das igrejas evangélicas e o apoio dos Estados Unidos ao ex-Presidente Olusegun Obasanjo (ele próprio «born again» como o seu homólogo George W. Bush) tem afectado os precários equilíbrios étnico-religiosos, e entre o Norte e o Sul da Nigéria, e a adopção da sharia por 12 dos 36 estados federados, foi mais uma resposta a um sentimento de marginalização por parte da maioria muçulmana do que uma conversão a um Islão mais rigorista. A esmagadora maioria dos nigerianos continua a praticar um Islão moderado, fortemente impregnado de crenças africanas mais antigas.

ÁFRICA DO SUL SOB INFLUÊNCIA ISLÂMICA?

Os muçulmanos representam menos de dois por cento da população da África do Sul, mas quatro membros do Governo são oriundos desta comunidade, também muito influente no mundo dos negócios. Tradicionalmente constituída por descendentes de escravos malaios ou indonésios trazidos pelos holandeses no século XVII, ou de imigrantes indianos, eram rotulados de «mestiços» durante o regime do apartheid de que foram vítimas, embora a maioria tivesse mantido as distâncias com o ANC e outras organizações negras: os líderes religiosos consideravam pecaminosa toda a militância que implicasse obediência às doutrinas dos «infiéis» (kuffar).

As coisas mudaram muito depois de 1991 e o número de muçulmanos duplicou, com a chegada de novos imigrantes, mas sobretudo pelas conversões, particularmente numerosas entre os jovens e as mulheres.

Segundo o investigador Michael Mumisa o fenómeno, que preocupa as igrejas cristãs, obedece a dois motivos principais: a rejeição do cristianismo visto como parte integrante do antigo regime racista, e a procura de uma defesa contra a violência, o alcoolismo e a sida. Foram muçulmanos que criaram em 1996 uma organização chamada PAGAD (People Against Gangsterism And Drugs) cujo braço armado, com o pretexto de combater a criminalidade e defender os «valores do Islão», perpetraram centenas de ataques contra discotecas, lugares de encontro de homossexuais, casinos, sinagogas e «muçulmanos reformistas».Mesquita de Touba, Senegal (Photo de TJ Haslam)Mesquita de Djené, Mali

O Irão, Kuwait e Arábia Saudita financiam a construção de mesquitas, e organizações caritativas, particularmente activas nos campus universitários e nos bairros de lata. «Os islamistas radicais têm percebido que há muitas carências por resolver entre a população mais desfavorecida e estão a aproveitar para fazer proselitismo», alertam os serviços antiterroristas. Pelo contrário, estudiosos do Islão africano destacam o papel das universidades sul-africanas na formação de uma nova geração de pensadores e teólogos muçulmanos, portadores de uma visão mais aberta, democrática e tolerante.

ARGÉLIA, EM NOME DA AL-QAEDA

Desde que o Grupo Salafista para o Combate e a Predicação (GSCP), grupo armado argelino que rejeita a política de reconciliação do Presidente Bouteflika, anunciou em 2006 a adesão à organização criada por Osama Bin-Laden, a Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI), alargou o campo de acção ao sul do Sara: do Chade ao Níger, ao Mali e, mais recentemente, à Nigéria.

Ultimamente, para angariar fundos e ganhar a simpatia das populações locais, os grupos armados islamistas que operam nesta região parecem privilegiar os raptos de estrangeiros, libertados contra resgate ou executados por vingança. Os dois diplomatas canadianos da ONU sequestrados em Dezembro de 2008 no Níger, os quatro turistas europeus capturados a 22 de Janeiro na fronteira entre o Níger e o Mali, os dois austríacos raptados no Mali e três dos quatro britânicos desaparecidos igualmente no Mali, recuperaram a liberdade após longas negociações secretas.

Não tiveram a mesma sorte o refém britânico Edwin Dyer, executado a 31 de Maio, nem o tenente-coronel maliano Lamana Ould Bou, especialista da luta anti-terrorista, abatido a 10 de Junho em Tombuctu, ou Christopher Leggett, funcionário norte-americano de uma ONG, assassinado em Nouakchott, a 20 de Junho. O atentado mais espectacular teve lugar em Tipaza, a 70 km a oeste de Argel, numa região muito turística e não afectada até agora pelo terrorismo: a emboscada a um comboio militar, em pleno dia, causou a morte a 12 ou 20 militares argelinos. Apesar disso, o Governo argelino garante que «o terrorismo é residual» e que são de outros países os terroristas que operam a sul do Sara. Contudo, o GPSC é apontado como o sponsor de todos os islamistas armados da região, incluindo a Nigéria.

ISLAMISTAS, CAMARADAS E PATRIOTAS

No Sudão, o Islão é muito mais do que a religião de mais de 70% dos 42 milhões de habitantes do mais extenso dos países africanos. É com o árabe, língua do Corão e uma das duas línguas oficiais (com o inglês) o principal factor de unidade deste heteróclito mosaico de mais de 500 povos, tribos e clãs.Karthoum, Sudão

Passagem obrigatória dos africanos a caminho de Meca, e dos escravos, do ouro e do Marfim destinados aos mercados árabes, o Sudão (Bilalal Sudão, o país dos negros em árabe) foi durante séculos, para o melhor e para o pior, fronteira e lugar de encontro entre os mundos negro-africano e arabo-muçulmano. Cobiçado pelas potências ocidentais, muito antes do início da exploração do petróleo na década de 90, pela posição estratégica que ocupa sobre o curso superior do Nilo e sobre a costa do Mar Vermelho, o Sudão não foi presa fácil para os colonizadores europeus do século XIX.

Muhammad Ahmad Ibn Abdallah, chefe político e religioso, também chamado de Mahdi (Messias), conduziu a resistência em nome do Islão e constituiu o primeiro Estado islâmico independente. O seu maior feito foi a derrota e morte do general britânico Gordon em Kartum, em 1885, afronta lavada em sangue pelo general Kitchener, em 1898.

Enfraquecer e dividir o Sudão foi a preocupação constante das potências coloniais, antes e depois da independência em 1953. Só mudou a natureza da ameaça sudanesa: nasserista na década de 50, comunista no início da ditadura de Jaffar al Numeiri na década de 70, tomou definitivamente a forma do islamismo político militante após o golpe de 1989, que colocou no poder o general Omar al Bechir, apoiado por Hassan al Tourabi, ex-líder dos Irmãos Muçulmanos sudaneses, fundador da Frente Nacional Islâmica (FNI) e amigo de Bin Laden, que viveu em Cartum de 1992 a 1996.

Primeira República islâmica (sunita) o Sudão foi então colocado na lista dos Estados terroristas pelos EUA, que apoiaram política e militarmente a rebelião do Sul, liderada por John Garang, e após a solução negociada deste conflito, em 2002, a rebelião do Darfur, que ainda continua, dando origem a uma das maiores tragédias humanitárias da actualidade.

As tentativas de apresentar a(s) guerra(s) sudanesas como um conflito racial e/ou religioso (entre muçulmanos e cristãos, e entre árabes e africanos) não vingaram, e as acusações de genocídio contra o regime de Cartum contribuíram para bloquear toda a perspectiva de solução política negociada, deixando o Ocidente e os seus aliados regionais perante o dilema de provocar a «somalização» do Sudão ou de aceitar a tomada do poder em Cartum dos islamistas  radicais da FNI ou dos madhistas.

OS SHEBAB, OS TALIBANS DA SOMÁLIA

Quando o Estado deixa de existir e a insegurança torna impossível toda a forma de vida social e económica, o Islão pode aparecer como a última defesa contra a tirania e a violência dos chefes de clã. Aconteceu no Afeganistão, onde os talibans foram recebidos como libertadores por uma população cansada da sangrenta anarquia que sucedeu à retirada soviética. E pode estar a acontecer de novo na Somália, 15 anos e meio milhão de mortos após o derrube do Governo socialista de Siad Barre, o último que efectivamente teve autoridade sobre este país de mais de nove milhões de habitantes.

A primeira tentativa deu-se em 2005, com a criação da União dos Tribunais Islâmicos, incentivada por homens de negócios e líderes religiosos. Receosos de ver surgir um novo «Estado terrorista» susceptível de dar guarida à Al-Qaeda, os EUA resolveram armar uma coligação de senhores da guerra pomposamente baptizada de Aliança para a Restauração da Paz e Contra o Terrorismo (ARPCT), o que não impediu as milícias da UTI de tomar Mogadíscio em Dezembro de 2006. A Etiópia interveio militarmente para expulsar os islamistas e instalar em Mogadíscio um Governo de Transição formado no exílio, sem conseguir pacificar o país. À beira da derrota militar, o Presidente interino cedeu o lugar em Janeiro de 2009 a Cheik Sherif Ahmed, um exdirigente da UTI, e o Parlamento somali aprovou em Abril a adopção da sharia como lei fundamental. Demasiado tarde? Em Fevereiro, vários grupos islamistas declararam a guerra ao Governo de Sharif Ahmed, actualmente cercado em Mogadíscio pelos shebab, jovens combatentes islamo-nacionalistas que rejeitam toda a autoridade não baseada no Islão e toda a ingerência estrangeira.

Aparentemente incapaz de por cobro às actividades dos piratas somalis no Golfo de Aden, acabará a comunidade internacional por aceitar como mal menor um regime islamista não pior nem mais conservador que o da Arábia Saudita?

Para já, a Etiópia ameaçou voltar a intervir se os shebab tomarem Mogadíscio.

 

Os «novos libertadores» são missionários do profeta

2ª Parte por ANTÓNIO MELO

 

O islamismo difundiu-se pela África subsariana, a partir do século XI, pela acção dos neófitos berberes sanhaja, da família dos almorávidas, os mesmos que tomaram conta da Andaluzia e puseram fim aos reinos taifa do Algarve. Atravessaram o deserto, como passaram Gibraltar, para purificar a comunidade dos crentes, que deliquescera nos prazeres da vida. Os fundamentalismos islâmicos, como tantos outros, são vagas na história.

A África está na berra. Na última década o grande continente realizou todas as reformas institucionais pós-coloniais e procurou na unidade africana uma voz que o projectasse internacionalmente. Esse foi um objectivo não alcançado e talvez nunca o venha a ser. Há aqui um erro de análise que é preciso corrigir e passa por confundir num único conjunto realidades muito diferentes. 

Há várias Áfricas, cada qual com a sua realidade geográfica, política e histórica. O que não quer dizer que não tenham surgido tentativas de realizar um pan-africanismo continental. Nas últimas duas décadas é o pan-islamismo quem proclama a unidade africana em nome da religião.

A religião assume o papel da política ou é a política que invade a esfera religiosa?

Uma coisa é certa. A partir da primeira invasão do Iraque, em Janeiro de 1991, e das eleições anuladas na Argélia, em Dezembro desse mesmo ano, a realidade alterou profundamente os dados geopolíticos no continente africano. 

Há, porém, investigadores sociais, como o português Eduardo Costa Dias, que colocam a charneira em 1977, ano da cimeira do Cairo, onde os Estados da Organização de Unidade Africana se comprometeram a fazer uma frente comum antiocidental com os Estados da Liga Árabe. Foi o culminar de uma estratégia de ultrapassar a derrota da guerra israelo-árabe de 1973, dita do Yom Kippur, e que não conseguiu trazer o Sinai ocupado para o Egipto, nem os montes Golã para a Síria.

O cessar-fogo, imposto por Henry Kissinger, foi assinado a 22 de Outubro. Cinco dias antes, no Kuwait, a Arábia Saudita, que se mantivera à margem das hostilidades, liderou a frente que decidiu recorrer à arma petrolífera para enfraquecer os Estados ocidentais. Em três meses, o preço do petróleo quadruplicou, uma coisa nunca vista desde que o senhor Gulbenkian ajudara a criar a Gulf Oil Co., na segunda década do século XX. 

Ao primeiro choque petrolífero, com base nas dificuldades orçamentais que a subida dos preços lhes criara, responderam os antigos colonizadores, França e Reino Unido, com medidas de suspensão dos programas de ajuda aos países africanos com quem tinham relações privilegiadas.

A Arábia Saudita, com o Kuwait e os Emiratos Árabes Unidos, prontificou-se para substituir os europeus. Assim se iniciou a mais recente vaga do islamismo contemporâneo, na versão fundamentalista do wahabismo, segundo os estudos do sociólogo René Otayek.

A par desta ofensiva religioso-política desenvolveram-se outras estratégias de envolvimento islâmico, cada qual com o seu particularismo nacional, como foi a da «revolução verde» do líbio Kadafi, a do Egipto pósSadate, a partir da Universidade Al-Azhar, e a do Sudão de Al-Bashir, que foi o primeiro santuário de Osama Bin-Laden, até que os bombardeamentos norte-americanos, depois dos atentados do 11 de Setembro de 2001, o fizeram mudar de posição. 

Quase dez anos passados sobre a primeira mega-operação terrorista da Al-Qaeda e mais de 30 anos sobre a estratégia saudita de colocar a religião no primeiro plano da diplomacia africana, vale a pena tentar um balanço sobre até onde chegou a vaga islâmica. 

As profundas alterações sociais que se vivem no Senegal, na Costa do Marfim e na Nigéria, sem esquecer a guerra civil argelina, provam que foi muito longe. As turbulências nos países do Golfo da Guiné, Conacri e Bissau têm outra natureza, que resulta dos tráficos contrabandistas, o que não altera a consolidação da religião muçulmana dentro das suas fronteiras.

Pintura de Hocine Ziani, Berberes em caravana

REGRESSO À HISTÓRIA

Porém, antes de chegar ao século XXI é preciso tomar algum peso à história, como o fez o senegalês Ousmane Kane no seu trabalho de 2003, Intellectuels Non Europhones. Muito antes da primeira caravela portuguesa se fazer ao mar, na procura das

Índias e da terra de Prestes João, já as caravanas berberes e tuaregues cruzavam o Sara. Levavam mercadorias e a palavra do Profeta às comunidades das esparsas savanas do Sahel. Iam até à beira da floresta luxuriante, mas por aí se ficavam e no regresso, se piloto houvesse, pagavam a embarcação no Golfo da Guiné e subiam a Norte, para casa. Esta foi a rotina durante séculos, a bem dizer até 1885, quando em Berlim as potências europeias declararam a colonização do continente africano. 

Até aí, com as caravanas e os predicadores islâmicos, tinha-se feito do culto uma cultura africana em toda a cintura subsariana. E que se afirmou ao colonizador europeu com características próprias, que deram origem ao marabutismo, às confrarias e a uma convivência mais ou menos tensa com as religiões locais, globalmente designadas por animistas, e com os missionários católicos e protestantes, que vieram nas comitivas diplomáticas do colonialismo europeu.Universidade Mesquita de Sankoré, Mali

Os sanhaja eram um ramo dos almorávidas, que se dirigiu para o Sahel em meados do século XI e que marcou presença missionária em Balata, Takedda e Tombouctu, sede do centro bibliotecário de Sankoré, a melhor universidade medieval islâmica africana.

No século XII os wangara, da tribo djula, vieram pelo Sudão central até à Senegâmbia e fixaram o seu território no vale dos rios Niger e Senegal. Deixaram raízes em Kano (Nigéria), como o atesta uma crónica anónima de 1650, onde se elogia a mesquita Hadabo, difusora do sufismo e do rito malekita.

Os zawaywa fizeram um percurso inverso e da Mauritânia levaram o sufismo até ao Sudão. Tornaram-se nos eruditos dos centros islâmicos da África ocidental. Os fulba, também designados por peuls ou papéis, mantêm-se desde o século IX no vale do rio Senegal. E os shurafa, etimologicamente os nobres, por se considerarem descendentes do Profeta, ocuparam os lugares de liderança religiosa-militar e reivindicaram os cargos de xerife por onde estivessem.

Este deambulatório pelo passado revela a permeabilidade da cintura subsariana às levas islâmicas, venham elas do Norte magrebino ou do Oriente arábico. Mostra, ainda, que embora mais raramente, os percursos podiam ser inversos, desde que passassem pelo filtro dos eruditos da universidade cairota Al-Azhar. As confrarias mais importantes do marabutismo, a mouride e a tijaniyya niassêne, fundadas no final do século XIX, exercem uma influência inegável sobre a administração estatal do Senegal e da Nigéria. Por último, confirma que no longo ciclo a nova vaga islâmica investe os lugares que já lhe eram conhecidos de outrora.

Há permanência histórica. O que permite dar agora o salto para o século XX, para o Egipto dos Irmãos Muçulmanos.

MODERNIZAÇÃO DO ISLÃO

A primeira reserva que se deve fazer à expressão modernização do islão é se não deverá ser islamização da modernidade. Os caminhos divergem, conforme se opte por uma ou por outra. A primeira conduz à formação de «predicadores mas não juízes», como querem os ulemas (eruditos sacerdotes) da Al-Azhar. A outra aos vários radicalismos islâmicos, da Al-Qaeda ao GIS argelino, que na senda de Sayyid Qotb, nascido em 1906 e enforcado no Cairo em 1966, apostrofava o humanismo ocidental por ter substituído a Hakîmiyyat (soberania absoluta de Deus) pela Jahîliyyat (a barbárie, que é o poder soberano do povo). 

«A dominação do homem ocidental no mundo chega ao seu fim, não porque a civilização ocidental esteja materialmente em falência ou tenha perdido a sua potência económica e militar, mas porque a ordem ocidental já desempenhou o seu papel e não dispõe mais daquele conjunto de valores que lhe deram a sua predominância (…) a revolução científica terminou a sua função, assim como o nacionalismo e as comunidades limitadas a um território que na sua época aí se desenvolveram. Chegou a vez do Islão (…)» – escreveu Sayyid Qotb na sua prisão do Cairo (citado por Alain Grignard, in L’Arme du Terrorisme, 2002).

O que fez que um pensamento que os ulemas da universidade de al-Azhar qualificaram de herético se tenha substituído ao pan-arabismo nasseriano dos anos 60 e ao nacionalismo revolucionário argelino dos anos 70?

Para o antropólogo José Manuel Anes a explicação está na falência histórica destas ideologias: «O sentimento anti-ocidental agudizou-se com a crise do marxismo; de certo modo o pensamento racionalista deixou de ter propostas para estas sociedades. As correntes que pugnavam pelas liberdades cívicas e pelo progresso social foram elas próprias buscar a salvação na religião. Não surpreende por isso que as novas gerações em África e nas periferias urbanas onde há emigrantes vejam nos ulemas que pregam o fim do Ocidente os novos libertadores».

Eduardo Costa Dias salienta a formação dos novos ulemas, que dominam na perfeição o vocabulário tecnológico ocidental e dispõem de um conhecimento teológico inegável: «As vozes de comando do novo islão vêm das cidades e não do mundo rural. Houve uma grande operação de ‘entrismo’ no mundo tradicional islâmico do marabutismo e do sufismo. É certo que a importância das confrarias não foi contestada, pelo contrário, assiste-se a uma renovação de gerações, por vezes na mesma linhagem, como é o caso da confraria mouride (Senegal), mas com tensões internas pelo que significa de virar de página em termos de relacionamento institucional com a administração do Estado. Por outro lado, as diásporas muçulmanas têm um peso crescente na condução da vida interna das confrarias, o que reforça o papel dos novos ulemas, muitos deles formados fora do país. Surgiu uma nova figura de financiador, que é o empresário de sucesso, que se revê nos novos intelectuais e os apoia», afirmou este especialista de estudos africanos no decorrer de uma longa conversa com a África21.

O NOVO PODER NAS MESQUITAS

A tomada do poder nas mesquitas e nos centros de formação por parte de uma nova geração organizada e hierarquizada é descrita por Marie Miran, no seu estudo sobre a Costa do Marfim, Vers un Nouveau Prosélytisme Islamique en Côte d’Ivoire – une Révolution Discrète, 2000, onde a monumental catedral católica de Yamussukro, mandada erguer por Houphouët-Boigny (1905-1993), parece hoje coisa de um passado longínquo. Situação idêntica está a passar-se no Senegal, onde a passagem de poder na grande confraria mouride se fez para esta nova geração de pregadores, como conta Christian Coulon em Touba, Lieu Saint de la Confrérie Mouride, 1996. 

Mais grave, salienta Costa Dias, é o atropelo à laicização do Estado, um combate real em diversos países da África ocidental: «A aplicação da sharia [lei do Corão] é uma arma de combate na Nigéria, no Sudão e na Somália. Os 12 estados do norte nigeriano aplicam já a sharia, açoitando os comerciantes cristãos que vendem bebidas alcoólicas, e levantando grandes interrogações quanto à laicização do Estado, que é um imperativo constitucional».

Este é o lado não-violento da nova islamização. Mas, como se tornou notícia de abertura nos telejornais, há uma outra prática de aplicar os ensinamentos de Allah, através de uma guerra santa, que os seus autores dizem preceituada pelo Corão.

A jhiad atinge tanto os «infiéis» ocidentais como os «apóstatas» muçulmanos, considerando que as mortes inocentes são o tributo do combate santo e, de qualquer modo, Deus saberá fazer a diferença no seu Jardim do Paraíso. Estão, por isso, justificadas.

É uma táctica que procura o confronto de civilizações, que Samuel Huttigton teorizou, embora não o desejando. Yves Lacoste, em Geopolitique des Religions, 2002, considera que os estrategas deste confronto se baseiam no poder demográfico do islão, mais de mil milhões de pessoas, do Atlântico ao Pacífico. Mas ao fazê-lo, acrescenta, cometem o erro de ignorar o contencioso de Caxemira, que os põe em confronto com um peso demográfico de mil milhões de hindus. Acrescente-se, já agora, que também os chineses se consideram provocados por este islamismo radical e a propósito dos incidentes na sua província de Xinjiang, em Julho, emitiram um aviso de prevenção a todos os seus emigrantes a residir na África, em especial na Argélia, para a eventualidade de atentados terroristas islâmicos.

Dois libaneses a viver em Paris, Amin Malouf e Georges Corm, propõem uma pausa para pensar. Consideram indispensável a instauração de um «pacto laico internacional», uma espécie de novo Tratado de Vestefália, como o que em 1648 lançou as bases do Direito Internacional, para superar as guerras de religião que sangravam os países europeus.

Para o Presidente norte-americano, Barack Obama, como disse na recente reunião do G8 e na véspera da visita ao Gana, essa é uma tarefa das Nações Unidas, mas «renovada e revitalizada».

 

In Revista Africa 21 , edição nº 21, Agosto 2009

por Nicole Guardiola e António Melo
A ler | 22 Março 2011 | culto, Islão, mesquitas, religião, tradição