A Alma

Texto de Mia Couto, fotografias de Abrãao Vicente 

O país chorou e, com verdade, Malangantana. Todos, povo, partidos, governo foram verdadeiros na dor da despedida. Vale a pena perguntar, no entanto: fizemos-lhe em vida a celebração que ele tanto queria e merecia? Ou estamos reeditando o exercício de que somos especialistas: a homenagem póstuma? Quem tanto substitui pedir por conquistar acaba confundindo chorar por celebrar. E talvez o Mestre quisesse hoje menos lágrima e mais cor, mais conquista, mais celebração de uma utopia nova. Na verdade, Malangatana Valente Ngwenya produziu tanto em vida e produziu tanta vida que acabou ficando sem morte. Ele estará para sempre presente do lado da luz, do riso, do tempo. Este é um primeiro equívoco: Malangatana não tem sepultura. Nós não nos despedimos.

Existe, na verdade, um outro equívoco. E o logro pode ser este: Malangatana não foi apenas um grande artista. Ele foi a alma de um país. Foi alma de todos nós, Moçambique e moçambicanos. Através dele fizemo-nos ser escutados como gente, capaz de ter rosto e nome, capaz de sonhar.

O pintor resgatou e colocou não apenas em tela, mas em toda a sua vida, aquilo que eram os nossos quase sempre atabalhoados sonhos, povoados mais de monstros do que luminosas certezas. Malangatana fez por Moçambique o que todas as embaixadas do país juntas não fizeram. Não se trata aqui de menorizar o trabalho diplomático, certamente intenso e árduo. Trata-se sim de entender o quanto pode a arte como linguagem universal e como veículo de afirmação e dignidade de um povo.

O que estamos celebrando, mais do que um exímio artista, é a sua dimensão humana feita de afecto, verdade e universalidade. Mais do que um homem de cultura, ele foi um homem de culturas. A sua individualidade construiu-se na pluralidade. A necessidade dessa pluralidade é, talvez, a mensagem mais importante que ele nos deixa. Num momento em que vivemos uma versão única da nossa própria história, num momento em cresce a tentação de um pensamento único, esse legado do Mestre torna-se quase uma urgência. A diversidade é o maior alimento da alma humana.Tendo militado politicamente, não foi nunca um político. Não fez favores de conveniência, não se converteu num funcionário, num yes man cultural. A lógica dos seus quadros, mesmo quando ele se entregou à luta política, não foi subordinada a qualquer simplificação ao serviço da causa. O que ele nos revela, na sua pintura, foi o invisível. Tendo sido todos os outros, o que ele mais foi, foi ele mesmo.

Sendo um nacionalista, escolheu o mundo como nação. Tendo erguido Matalana como emblema e raiz, ele olhou como terra natal todos os lugares onde renascia, desde Tóquio a Nova Iorque. A sua Matalana era uma centopeia, um pé junto ao rio Incomáti, os outros em cada canto do mundo. Em todos esses recantos ele sentia-se à vontade. Trauteava com o mesmo à vontade as canções tradicionais rongas, uma ária de Verdi e um fado de Amália. Não tinha medo dessa pluralidade. Não teve receio nunca de nomear os que, sendo portugueses e vivendo num mesmo regime colonial, o ajudaram no início da carreira. Porque estava para além da raça, para além da nacionalidade, para além de si mesmo. Não precisava de veementes proclamações para ser moçambicano. E quanto mais ele era todos os outros, mais se convertia em Moçambique. Generoso, acolhedor, robustecido pela sua pluralidade e respeitado e amado por isso.

A grande pergunta é esta: o nosso país está produzindo mais Malangatanas? Mais Craveirinhas? Mais Fanni Mpfumos?

Não existe resposta. Cada um destes artistas é evidentemente irrepetível e cada época tem a sua dinâmica própria. Mas tenho sérias dúvidas que o nosso ambiente seja favorável à gestação de arte de qualidade. Prevalecem entre nós condições profundamente adversas. O meu dedo não se ergue, às pressas, contra ninguém. É verdade que o governo podia fazer mais. Por exemplo, podia chamar mais a si a política de investimento e apoio às artes e não abandonar esse exercício ao arbítrio dos patrocinadores. Mas seria triste que, em qualquer país, a cultura fosse produzida pelo governo. Parece tautológico, mas a verdade é que a cultura nasce da cultura. E a cultura dominante de hoje, aquela que a nossa elite promove, não é exactamente a mais fértil. Porque apela para o sucesso fácil e imediato, para a fama e o dinheiro como critérios únicos, para o vazio e para a aparência.

O que faz emergir talentos é um ambiente de debate aberto e de gente trocando ideias. Malangatana, Craveirinha e Mpfumo foram o resultado desse cadinho efervescente, onde rivalizaram propostas, escolas e tendências. 

Esse ambiente de pluralidade é hoje olhado com receio. Aos poucos fomos substituindo a mensagem de emancipação por um discurso de aumento de rendimentos. Em lugar de políticas culturais convertemos a política numa cultura. O grande estímulo hoje repetido até à exaustão resume-se ao apelo, ao empreendedorismo e à promoção no vazio do chamado “empresário de sucesso”. A cultura dos Big Brothers saltou do campo do espectáculo televisivo e invadiu o nosso quotidiano.

Somos ricos em homenagens e, grande parte das vezes, fazemo-las tardiamente. Arriscamo-nos, desse ponto de vista, a ser um país póstumo. As homenagens podem bastar para gente que tem ausência. O legado de moçambicanos como Craveirinha, Mpfumo e Malangatana merece que nos questionemos sobre como Moçambique se manterá como nação geradora da sua memória viva.

publicado no jornal moçambicano O País, 15/1/2011

por Mia Couto e Abraão Vicente
Cara a cara | 2 Março 2011 | arte moçambicana, Malangatana