As comunidades

missa em moçambiquemissa em moçambiqueA SUBSTITUIÇÃO DO ATO DE PENSAR pelo uso mecânico de uma linguagem de moda faz parte do pacote de criação do vazio que caracteriza os nossos dias. Já falei do workshopês como um espécie de idioma que preenche e legitima a proliferação de seminários, workshops e conferências que pululam de forma tão improdutiva pelo mundo inteiro. Existem termos de moda como «o desenvolvimento sustentável». Um desses termos mágicos que dispensa qualquer tipo de raciocínio é a expressão «comunidade local».

Por artes inexplicáveis as «comunidades locais» são entendidas como agrupamentos puros, inocentes e portadores de valores sagrados. As comunidades rejeitam? Então, nada se faz. As comunidades queixam-se? É preciso compensá-las, de imediato. As comunidades surgem como entidades fora deste mundo e olhadas como um bálsamo purificador por um certo paternalismo das chamadas potências desenvolvidas. 

As comunidades estão acima de qualquer suspeita, são incorruptíveis e têm uma visão infalível sobre os destinos da humanidade. É assim que pensam uns tantos missionários dessa nova religião que se chama «desenvolvimento». Uma tropa de associações cívicas serve-se desse conceito santificado e santificante. Essa entidade pura não existe. Felizmente. O que há são entidades humanas, com os defeitos e as virtudes de todas as entidades humanas.

No meu trabalho tenho-me deparado com casos que revelam as facetas boas e más da alma humana. Confesso mesmo que vejo predominar o lado malandro da humanidade. Um exemplo: a equipe de produção do filme Diamantes de Sangue (em que participou Leonardo DiCaprio) procurava numa praia dos arredores de Maputo um local para gravar uma cena de guerra. O Conselho Municipal escolheu uma zona livre e deserta. No dia seguinte, a praia estava cheia de palhotas. Numa única noite, a zona ganhou uma densidade típica do Bangladesh. Os produtores, com paciência, procuraram negociar. Vinham de uma experiência traumática do filme A Praia em que denúncias graves os tinham colocado na lista dos politicamente incorretos. E negociaram com um ancião que se apresentou como o chefe tradicional da área. Pagaram uma pequena quantia. As comunidades ainda não ganharam o estatuto de grandes malandros como certos políticos e bancários. Lá chegarão? Os produtores estavam preocupados sim com os prejuízos do atraso no calendário. Leonardo DiCaprio custa muito por dia. 

filme 'Kinshasa Symphony' de Martin Baer e Claus Wischmannfilme 'Kinshasa Symphony' de Martin Baer e Claus Wischmann

As casas foram demolidas e tudo parecia estar em conformidade quando, no dia seguinte, havia um amontoado de ferros, árvores e pessoas obstruindo o acesso à praia. O que se passava? Afinal, o chefe tradicional que se apresentara no dia anterior não era o «autêntico». Porque o verdadeiro líder era um outro que exigia agora um novo pagamento. Desataram-se os cordões à bolsa (pequena quantia em meticais) para os «indígenas», grandes quantias em dólares para as estrelas de Hollywood. A cena ainda se repetiu uma vez mais. A produção estava agora com vontade de cancelar tudo e escolher um outro local, de preferência, longe de qualquer comunidade. 

Um outro caso: equipes de canadianos andaram pelo Norte do Moçambique fazendo prospeção de hidrocarbonetos. Centenas de quilómetros de linhas sísmicas foram abertas na savana, entre terrenos minados e territórios dominados por leões e elefantes. Custou uma fortuna. Que ninguém tenha pena dos que pagaram. Mas pensando nos interesses de Moçambique talvez seja preocupante o que sucedeu, a seguir. Os marcos que foram deixados para a equipe que vinha fazer a operação seguinte haviam sido deslocados da sua posição original. Os dados de localização no GPS estavam todos errados. O que tinha acontecido? Os camponeses da região souberam que, sempre que as linhas passassem pelas suas hortas, eles teriam direito a indemnização. Condeno os tais camponeses, semeadores de marcos falsos? Não sei. Eu se fosse um deles teria carregado uns tantos marcos às costas para ganhar uns tostões. 

A verdade, porém, é que o esforço de idealização promovido quer pelos profetas do desenvolvimento quer pelos defensores dos fracos não confere com a realidade que é mais complexa e mundana. O bom selvagem nunca foi nem «bom», nem «selvagem». Foi simplesmente pessoa. 

 

artigo publicado originalmente na revista África 21, edição de Março 2011

por Mia Couto
Mukanda | 2 Abril 2011 | associação, comunidade, identidade