We Don’t Need Another Hero

Breve tentativa de pensar “o herói” a partir de uma peça de roupa, que é a t-shirt interior de alças normalmente branca formely known as “wifebeater” ou Parte #1 de uma reflexão from wifebeaterism to saviourism.

Como escrevia Derrida no seu “Archive Fever”, Let us not begin at the beginning, nor even at the archive. Porque que se tivéssemos de ir ao princípio teríamos de falar de Saussure e de Barthes, de Benjamin e de Simmel, e até vou fazê-lo, mas não é para já.

Quando comecei a pensar nesta coisa da “moda enquanto comunicação não-verbal” e, sobretudo, da “moda ao serviço da narrativa”, pensei naquele filme Los Angeles Plays Itself (2003), de Thom Andersen, e de como a forma como a cidade era representada no cinema era sistematizada em três categorias ou formas diferentes de representação:

1. A cidade enquanto cenário;

2. A cidade enquanto assunto;

3. A cidade enquanto protagonista ou personagem.

Pensei em usar esta classificação para fazer uma sistematização geral do uso da roupa na narrativa cinematográfica. Quando estava a tentar encontrar exemplos para ilustrar a ideia da moda enquanto cenário e da moda enquanto assunto, percebi que as duas categorias se confundiam: pensei em filmes como Zoolander (2001), de Ben Stiller, The Devil wears Prada (2006), de David Frankel, ou o Phantom Thread (2017), de P.T. Anderson… Nestes filmes, a moda e o mundo da moda são, ao mesmo tempo, o assunto e também o cenário, o background against todo o plot e acção se desenrolam. (E, na verdade, podem ser um “falso assunto”, porque servem como mote para discutir a natureza das relações humanas, por um lado ou num primeiro momento ancorado no universo da moda, mas que na verdade extrapolam “um” dado contexto e são comuns – e universais – a todas as relações, em qualquer contexto, porque somos todos humanos).

Depois cheguei à moda enquanto personagem ou protagonista, e foi aqui que me demorei mais – e foi esta a categoria de que mais gostei. Na verdade, o primeiro filme em que pensei quando considerei toda esta temática foi no The Breakfast Club (1985), de John Hughes1, que é um filme que não mexeu assim estupidamente comigo, provavelmente porque já o vi muito mais velha e não adolescente mas que, do ponto de vista da imagem, foi logo stricking: a roupa aqui funciona como shorthand, um atalho, no sentido em que só pela roupa que as personagens usam se percebe imediatamente qual o lugar deles na estratificação e hierarquia do liceu, e de onde cada um deles vem: o atleta, o rebelde, a privilegiada, o intelectual, a freak.

The Breakfast Club (1985), de John HughesThe Breakfast Club (1985), de John Hughes

Depois comecei a pensar em exemplos em que o guarda-roupa, ou uma peça específica do guarda-roupa, não era apenas um atalho, na medida em que acrescentava algo à narrativa que ia para lá das palavras, algo que era imediatamente identificável e não precisava de ser dito, mas que também se tornava central para a narrativa: o saco da Pam Grier/Jackie Brown na Jackie Brown (1997) de Quentin Tarantino, ou quando no North by Northwest - Intriga Internacional (1959) de Alfred Hitchcock, Cary Grant/Roger Thornhill explica que não pode ser o espião porque o fato não lhe serve, ou a luva no The People v. OJ: American Crime Story (2016)2, quando Cuba Gooding Jr./O.J. Simpson experimenta a luva e a luva não cabe - ou ele faz por não caber - e a expressão na cara dele é precisamente “não posso ter sido eu a fazer isto, a luva não é minha”, intercalada até com imagens reais Glove clip.


A partir da luva de Gooding Jr./O.J. comecei a pensar em wardrobe malfunctions3 e na ideia de uma peça de roupa “fazer”, no sentido de “construir” uma personagem, e pensei na sequência do The Incredibles - Os Incríveis (2004) de Brad Bird, em que a Edna explica ao Beto aka Mr. Incredible porque é que os fatos dos super-heróis não podem ter capas No capes!:

e isto funciona na verdade como uma espécie de abre-caminho para que mais tarde o vilão seja precisamente apanhado (morto) por este wardrobe malfunction, que é a sua capa ficar presa no míssil [Final Battle, Syndrome’s Death:

 

Diz a lenda que a Edna é uma personagem baseada na Edith Head, uma croma do guarda-roupa que ganhou variados Óscares pelos seus inúmeros trabalhos (All About Eve, The Sting, Roman Holidays,…)4. O facto da Edna alertar o super-herói para a importância de não usar capa parece-me sublinhar a ênfase dada à ideia de que a roupa não é apenas algo que cobre o corpo, mas algo que define a personagem e que, em última análise, a protege, como uma espécie de armadura - daí ser necessário também levar em conta as especificidades do meio ambiente, e ser por isso que a moda, para Saussure, por exemplo, é diferente da linguagem, na medida em que os signos linguísticos estão libertos destes constrangimentos das condições físicas (Cucinotta, 2018). 

The devil wears PradaThe devil wears PradaUma mulher de sucessoUma mulher de sucesso

Quando comecei a pensar no caso dos super-heróis, pensei então na ideia do fato enquanto costume/traje5 que os torna reconhecíveis: sem ele, são “pessoas normais”; e a transformação acontece precisamente quando trocam de roupa, sendo o caso mais reconhecível talvez o do Super-Homem na cabine telefónica, mas que é na verdade extensível a todos os super-heróis. Daí a expressão “o hábito faz o monge”: é-se definido pelo que se veste e/ou por símbolos que representam algo que no nosso imaginário remete para a personificação daquela situação/personagem: um rei só é um rei na medida em que usa uma coroa e um ceptro (como na história infantil A Rainha da Rãs Não Pode Molhar os Pés); a Cinderela só se torna Cinderela porque lhe cabe o sapato (da mesma forma que Gooding Jr./O.J. não era um assassino porque não lhe cabia a luva); o Harrison Ford/Indiana Jones só se torna no Indiana Jones quando recebe o chapéu e o chicote do pai [The hat (“Costume is character”):

 a Melanie Griffith/Tess McGill alterna entre a bridges-and-tunnels girl de New Jersey quando vem de ténis no ferry e a secretária um pouco menos suburbana quando chega a Nova Iorque e troca para uns sapatos de salto alto – aliás, esta ideia de classe/hierarquia social está presente em qualquer filme em que as personagens “sofrem” (sofrem, porque normalmente é alguém que lhes faz, e muitas vezes é contra a sua vontade) um processo de make over, ou seja, uma transformação radical das suas roupas e aspecto físico: Eddie Murphy/Billy Ray Valentine em Trading Places - Os Ricos e os Pobres (1983) de John Landis, Brittany Murphy/Tai em Clueless (1995) de Amy Heckerling [a própria Melanie Griffith quando se quer fazer passar pela sua própria chefe, Sigourney Weaver/Katherine Parker, uma mulher mais sofisticada, e troca não apenas de guarda-roupa como de cabelo, porque o seu cabelo era demasiado reconhecível enquanto suburbana de New Jersey.

Aliás a este respeito Barthes fala, no Mitologias (voltarei aqui mais tarde) sobre o cabelo no Julius Caesar (1953) de Joseph K. Mankiewicz, e de como aquele corte de cabelo em particular serviu para descaracterizar os actores e ao mesmo tempo torná-los romanos: a partir daquele momento, aquela franja tornava-os reconhecíveis enquanto romanos, aquela franja passou a serum signo e símbolo de Romanidade]. 

Trading PlacesTrading Places

CluelessClueless

É um pouco como as jardineiras (overalls6) que deram o mote para esta assunto: as mulheres representadas no cinema a consertar coisas em/pela casa são quase sempre retratadas de jardineiras. Na verdade, IRL, as mulheres não botam jardineiras quando pintam as suas casas ou trocam uma lâmpada, mas no cinema este imaginário tornou-se auto-referencial, um pouco como fala Benjamin sobre a moda, quando sublinha também que a moda é um bom “lugar” para fazer esta negociação, muitas vezes em contradição/choque, sobre o passado e o presente7 (Cucinotta, 2018). Recuando, o caso das jardineiras é paradigmático desta questão da moda ou de uma peça de roupa que é usada cinematograficamente enquanto auto-referência (o meu marido, que é um cromo dos podcasts, deu o exemplo de um episódio do 99% Invisible, em que se discute o uso do beco em NY: aparentemente só existe um beco em Nova Iorque, mas sempre que há uma cena em que um cozinheiro fuma cá fora numa pausa, ou um fugitivo é perseguido pela polícia, etc, isto acontece num beco, como se quase todas as ruas de Nova Iorque fossem becos porque, de cada vez que uma destas cenas é sugerida ao realizador pelos location scouts, o seu imaginário imediatamente viaja para o beco, por referência a todos os filmes anteriores onde estas cenas se passaram, precisamente, em becos.)

Kill Bill (2003), de Quentin TarantinoKill Bill (2003), de Quentin Tarantino

Ou seja, voltando a Barthes, diz Calefato que “[n]o início dos anos 60, Barthes escreve que o cinema se tinha tornado ‘um meio emblemático de comunicação de massas (Barthes, 1998:41). Hoje em dia este statement ainda é válido, porque a representação do visível oferecida pelo cinema, construída pela lente da câmara como se estivesse realmente perante os nossos olhos, comunicada e reproduzida em milhões de cópias, é única e irrepetível. Pensar através de imagens é o equivalente a representar o real; as metáforas e narrativas no cinema tornaram-se uma parte integral das nossas vidas diárias. A verosimilhança no cinema é a “verdade” que alimenta a nossa imaginação. O cinema “pensa”: inventa histórias, técnicas narrativas, tipos humanos e formas corporais; explora territórios no limite da experiência, sentimentos e paixões do mais banal ao mais excêntrico8” (Calefato, 2004, tradução minha).

Bruce LeeBruce LeeEsta ideia de metacinematografia, ou seja, o cinema a citar/fazer remeter para o cinema, tem a capacidade de definir “isto é cinema” precisamente porque replica outras referências cinematográficas. A este respeito, pode dar-se o exemplo de Quentin Tarantino como o realizador por excelência a usar este mecanismo do cinema a citar o cinema: é certo de que todos ou quase todos os elementos usados na sua cinematografia remetem para outras referencias cinematográficas: é o caso, por exemplo, do jumpsuit amarelo de Uma Thurman/The Bride no Kill Bill vol.1 (2003) que remete para Bruce Lee/Billy Lo em Game of Death (1978) de Robert Clouse, ou dos fatos pretos usados pelos personagens em Reservoir Dogs - Cães Danados (1992) que, como sublinha Stella Bruzzi (2015), remetem para os fatos dos gangsters do cinema francês new wave. Bruzzi traça um paralelismo entre o Le Samourai - O Samurai (1967) Jean-Pierre Melville e o Reservoir Dogs - Cães Danados de Tarantino, evidenciando as semelhanças entre Delon e o bando de Keitel e dos outros homens de fatos negros. Em conferência - e posterior artigo - sob o título “Costume Dressed and Undressed: Undressing Cinema 18 Years On!”, Bruzzi revisita a sua obra de 1997 Undressing Cinema; 18 anos depois, neste artigo, Bruzzi recupera algo que já tinha escrito em 1997: relembra o que Tarantino diz, numa entrevista que deu no momento da estreia de Reservoir Dogs - Cães Danados, e seria algo como “é impossível colocar um tipo num fato negro sem que ele pareça um pouco mais cool do que já parecia.9” (Bruzzi, 1997:89, tradução minha). E na verdade Bruzzi refere que quando assistiu ao filme em Londres, este já tinha um estatuto de “filme de culto”, e na plateia já havia imensas pessoas, homens e mulheres, vestidas com fatos negros, lembrando novamente o que disse Tarantino, que seria que “[s]empre defendi que o que distingue um bom filme de acção é no final teres vontade de te vestires como o personagem”10 (Bruzzi, 1997: 87, tradução minha).11

Le SamouraiLe SamouraiReservoir DogsReservoir Dogs

Bruzzi fala de uma ideia de masculine cool presente em Reservoir Dogs - Cães Danados, que por sua vez se prende com uma ideia de violência desde os filmes de Sam Peckinpah (referência sua). Ou seja, a ideia de uma masculinidade cool que se encontra associada a uma ideia de anti-herói e de violência. Bruzzi teoriza sobre como, para si, estes gangsters, tanto os franceses como os Franco-Americanos, usam os seus fatos como armaduras, suits of armours. A ideia de armadura juntamente com esta espécie de falhanço das suas expectativas12, no sentido em que o destino de quase todos estes gangsters é a morte ou a prisão, ou seja, a ideia de que estes homens se vestem para passar e também manter/construir uma ideia de sucesso que não está ao seu alcance, fizeram-me chegar a uma peça de roupa igualmente ambígua, a começar pela sua designação mais generalista, que foi a peça que me veio à cabeça quando começamos esta discussão, e quando falamos das jardineiras para as mulheres: as wifebeaters (ou wifeblessers, como diz o Ned Flanders dos Simpsons), para os homens e para a definição de masculinidade. Além da problematização do nome, que tem vindo a ser crescentemente questionada, as it should, a própria designação contém em si mesma uma narrativa: o nome/designação já introduz e acciona todo um imaginário.

Ned Flanders, The Simpsons - Os Simpsons, série de TV criada por Matt GroeningNed Flanders, The Simpsons - Os Simpsons, série de TV criada por Matt Groening

Assim, e ao contrário do fato que cobre o corpo armadura style, a wifebeater - ou A-shirt - descobre. Ainda assim, havia uma qualidade comum de armadura que relacionava as peças, muito bem explicada num dos poucos artigos que encontrei sobre esta peça e que, turns out, vem acrescentar mais uma ambiguidade a esta peça: a arqueologia da wifebeater. Ao que parece, também eu fui vítima de uma coisa catita a que Laurence Horn, linguista de Yale, chama de etimitologias, e que Ben Zimmer explica no seu artigo “That Meme You’re Sharing Is Probably Bogus”, da The Atlantic. As etimitologias seriam então a invenção de etimologias fabricadas de forma a contar histórias atrativas (e não reais) sobre a origem das palavras. A ideia destas criações, explica no artigo, tem que ver com a explicação de mistérios sobre como certas coisas vieram a ser chamadas de certa forma.

Um dos exemplos apontados no artigo é o caso da wifebeater e de um artigo muito difundido escrito pelo realizador Paul Davidson no seu blog em 2005. Neste artigo, Davidson descreve a origem da wifebeater, que remontaria à Idade Média, apontando para aqueles cavaleiros solitários que ficavam para trás e que iam perdendo toda a sua armadura, ficando apenas com uma espécie de malha interior e, mesmo sem nada, continuavam a lutar. O termo viria então de waif beater, waif de abandonado, deixado para trás, e beater porque era um guerreiro, um lutador (e também porque provavelmente iria ser batido, espancado). Num artigo da New York Times, Moises Velasquez-Manoff diz que conversou com Davidson que assumiu que tinha inventado toda esta história, e que na verdade era tudo mentira. 

Também há outro “mito de origem”, espalhado nestes artigos sobre a arqueologia da peça, que é que o termo viria de um caso de 1947, quando um homem teria sido preso por ter espancado a sua mulher até à morte em Detroit; na altura da sua prisão, o homem usaria uma destas t-shirts, manchada. Mas, novamente, nem eu nem o repórter do New York Times conseguimos encontrar evidências e provas de que esta história fosse verdadeira. Ou seja, mito.

Então provavelmente o termo é na verdade, além de profundamente misógino, um termo classicista e racista cujo uso remete para os imigrantes italianos que desembarcaram em New York e que, por serem operários, passavam bastante tempo de roupa interior por causa do calor mas também, por serem mais pobres, para protegerem o que seriam as suas “melhores roupas”. (Num dos artigos que li, da MelMagazine, também falam do nascimento “físico” da t-shirt, em Chicago, nos anos 30, quando a roupa interior evoluiu de fatos completos e ceroulas para cuecas e este tipo de t-shirt, mas poderá ser mito). Na verdade, acho que o que é mais comumente aceite é o uso da t-shirt ter vindo destes imigrantes italianos mais pobres e hiper-masculinizados, que por motivos racistas não eram considerados tão brancos quanto os brancos, também apelidados de Guidos, e aparentemente quando se tornou claro que já não se podia usar esta designação porque era racista (costumava chamar-se Dago Tee) passou a usar-se esta, sem nenhum pudor por ser misógina.

Uma das pessoas mais associadas a estas peças, também responsabilizado em muitos lugares pelo uso disseminado deste termo, é Marlon Brando/Stanley Kowalsky no filme A Street Car Named Desire - Um Eléctrico Chamado Desejo (1951) Elia Kazan. Kowalsky não é italiano, é polaco, mas é um actual wifebeater in a wifebeater 13 apesar de ser um abusador (bate na mulher, viola a cunhada), é representado como um macho super viril, pelos músculos e pela sua atitude [I’m the king around here].

Aliás, é por accionar este imaginário viril, másculo, forte, e operário (tão operário que a Miley Cyrus aparece vestida com uma em Wrecking Ball, com uma marreta a destruir tudo, tipo uber trabalho manual) que esta peça não é considerada feminina: porque evoca um imaginário hiper-masculinizado – no artigo da MelMagazine traçam o paralelismo com o imaginário do lumberjack que, à semelhança do uso da wifebeater, também tem algum eco na comunidade gay, também porque se prende com uma ideia de corpo e de culto do corpo.

Gostaria apenas de partilhar, no seguimento do clip do A Street Car Named Desire - Um Elécrico Chamado Desejo, ainda mais estes: de The Sopranos - Os Sopranos, [Tony beats Perry Annunziata];

e de Goodfellas - Tudo Bons Rapazes, este [Beating Scene]

- todos eles servem para ilustrar a peça apenas na sua função de roupa interior. E apesar de ter estado a debater o uso desta peça enquanto peça exterior, achei que também era importante vê-la enquanto peça interior primeiro porque aqui ilustra um pouco aquela ideia de proteger melhor a roupa (o Ray Liotta/Henry Hill tem uma camisa toda catita), mas também porque faz a ponte para a ideia de raiva também muito associada à wifebeater, aquele elemento de loucura e perigo que é accionado no nosso imaginário de que aquela pessoa pode fazer algo imprevisível a qualquer altura e está sempre pronta. Como no Die Hard – Assalto ao Arranha Céus em que o Bruce Willis/John McLane chega à festa e vai refrescar-se e de repente começa o ataque – mas ele está preparado, porque não tem sapatos, como vimos antes, mas tem a sua  - como se fosse o seu bulletproof vest14. E também há aquela coisa do personagem arrancar a camisa e por baixo ter a wifebeater ou arrancar a própria wifebeater (Brando/Kowalski em Streetcar, Hugh Jackson/Logan em Wolverine), como no caso do Edward Norton/Derek Vinyard no American History X - América Proibida, na cena do jantar [Dinner scene].

Aliás, há outra cena do American History X  - América Proibida que mostra a wifebeater como uma espécie de uniforme, usada na prisão por todos, mas também ver este negro com ela invariavelmente aponta, pelo menos em mim, para o uso da wifebeater, juntamente com as baggy jeans, como um stapple do uniforme da cultura do hip hop e do rap dos anos 90, e também do hardcore15.

Entretanto o artigo da MelMagazine também fala de um dos primeiros desfiles da Dolce and Gabbana masculino, em 1992, em que um dos modelos aparece na runway com uma destas t-shirts, a fazer aquilo que a moda faz tantas vezes, incluindo a alta costura, que é apropriar-se de elementos “da rua”, basicamente a fazer o contrário do que Simmel descrevia no seu processo trickle down (a ideia de que a moda seria estabelecida pelas elites e que “escoaria” (trickle) para as classes “inferiores”, se pensarmos naquela ideia piramidal da sociedade16. Há outros exemplos de outros criadores de alta-costura (Helmut Lang, Jean-Paul Gaultier, Calvin Klein, …) que se apropriaram desta peça e a trouxeram para a runway, num processo a que gosto de chamar de unibrow, ou seja, low brow meets high brow and together they make a unibrow.

Para terminar, gostaria de pegar no final do texto do Barthes, Mitologias, em que ele fala do suor, e num texto que a Maria Sequeira Mendes escreveu para a folha de sala da apresentação de uma peça de teatro da companhia Cão Solteiro ft. André Godinho, We’re Gonna Be Alright. Sequeira Mendes introduz a categoria de zaniness, de Sianne Ngai, para falar de uma categoria estética que tem que ver uma ideia performativa que, para mim, fizeram-me pensar nestes anti-heróis. Ou seja, pessoas que estão meio que em luta contra o mundo, de alguma forma sozinhas. Citando, “A experiência do zany é a assim a de ter de sobreviver ou evitar carros que voam na sua direcção, a de desmontar bombas, de lutar conta o inimigo, o que o leva a que “zaniness seja essencialmente a experiência de um agente confrontado com – e colocado em perigo por – demasiadas coisas que surgem contra si ao mesmo tempo” (183). Ela dá o exemplo do Kenny do South Park, e fala do seu parka laranja, porque ele é identificado por esta peça de roupa. 

Kenny de South Park, série de TV criada por Trey Parker e Matt StoneKenny de South Park, série de TV criada por Trey Parker e Matt Stone

Penso que quando uma personagem aparece no ecrã com uma destas t-shirts, nós sabemos que ela vai suar. Seja fisicamente, em luta física contra inimigos, seja moralmente, por conta de questões éticas, esta pessoa vai suar. E de alguma forma, seja porque esta pessoa é linda como o raio, como o Stanley Kowalsky, seja porque é moralmente ambígua, ou seja, bends the rules mas a maior parte das vezes não consegues ir contra ela porque há um código moral que até se vai compreendendo, como o Tony Soprano, seja porque é aquela questão que Hollywood adora mostrar nos filmes, que é o homem contra o sistema, que é super-perverso porque coloca toda a ênfase da resolução dos conflitos na acção de uma pessoa e não no falhanço da estrutura e do sistema, é criada empatia e talvez até em momentos se torça por aquela personagem. Either way, aquela pessoa vai suar17.

Marlon Brando em Julius Caesar (1953) de Joseph K. MankiewiczMarlon Brando em Julius Caesar (1953) de Joseph K. Mankiewicz

E no final do texto de Barthes das Mitologias ele fala disso mesmo, do suor. Diz ele que além da franja, há outra coisa que é comum a todas as personagens menos uma (Júlio César) que é o suor. Todos estão a suar porque estão em dilemas morais. Então ele fala da ambiguidade do signo, e avança com o que chama de “ética do signo”. Ele diz que só deveria haver duas formas de se apresentarem os signos: ou abertamente intelectuais (o exemplo das bandeiras no teatro Chinês), ou inventados “em cada ocasião, revelando uma faceta escondida que já não é um conceito. Mas o signo intermédio, como a franja e o suor, revela um espectáculo degradado. Porque se é uma coisa boa se um espectáculo está criado para tornar o mundo mais explícito, é a um tempo repreensível e decepcionante confundir o signo com o que é significado. E é uma duplicidade que é peculiar na arte burguesa: entre o signo intelectual e visceral é hipocritamente inserido um híbrido, baptizado de ‘natureza’. Não há nada de natural na associação entre classe, xenofobia e misoginia accionada pela reacção imediata de ver uma personagem masculina vestida de wifebeater. Nay, let us go one step further: não há nada de “natural”. [to be continued]

 

Bibliografia

Barthes, Roland (1957), Mythologies. Editions du Seuil: Paris.

Bruzzi, Undressing Cinema (1997)

Bruzzi, Undressing Cinema - 18 years and on! https://www.academia.edu/22796828/Undressing_Cinema_18_Years_On (2015)

Calefato, Patrizia (2004), The Clothed Body, Oxford: Berg.

Cucinotta, Caterina (2018), Viagem ao cinema através do seu vestuário - percursos de análise em filmes portugueses de etnoficção. Covilhã: UBI.

Derrida, Jacques Archive Fever

Mendes, Maria Sequeira (2018), in We’re Gonna Be Alright https://pre2018.culturgest.pt/2017/09/we-re-gonna-be-alright.html

Ngai, Sianne (2012), Our Aesthetic Categories: Zany, Cute, Interesting. 

Smith, C. Brian (2017), “How the ‘Wife Beater’ Tank Top Became A Marker of Class, Ethnicity, And Domestic Abuse in Mel Magazine, https://pre2018.culturgest.pt/2017/09/we-re-gonna-be-alright.html

Velasquez-Manoff, Moises (2018) Are we really still calling this shirt a “wife-beater”? in The New York Times https://www.nytimes.com/2018/05/25/opinion/are-we-really-still-calling-this-shirt-a-wife-beater.html

Zimmer, Ben (2018) “That Meme you’re sharing is probably bogus” in The Atlantic https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2018/08/that-meme-youre-sharing-is-probably-bogus/566582/

  • 1. Unrelated, mas no aftermath da condenação recente de Harvey Weinstein, há um artigo escrito pela Molly Ringwald, musa de John Hughes, uma das adolescentes deste filme, para a New Yorker, sobre a sua relação com Hughes, a forma problemática como aborda certos temas, e ultimately a sua relação com os subúrbios e a ideia de coming of agehttps://www.newyorker.com/culture/personal-history/what-about-the-breakf...
  • 2. American Crime Story faz parte de uma antologia criada para a TV, desenvolvida por Scott Alexander e Larry Karaszewski.
  • 3. Ainda a propósito de wardrobe malfunctions, não poderia - poderia, mas não quero - deixar de mencionar aquela cena incrível do Die Hard (1988), de John McTiernan, em que John McLane/Bruce Willis está já em alto confronto com os vilões e Hans Gruber/Alan Rickman consegue perceber que Willis está descalço, então grita para um companheiro, Shoot the glass! [Shoot the glass: https://youtu.be/s4flSqmDFmk].
  • 4. Diz a lenda que Edith Head ficaria também imortalizada num mural na casa de Andy Warhol (?), onde se lia Edith gives good wardrobe.
  • 5. Sobre a discussão entre costume/traje, vestuário e toilette, ver Cucinotta (2018): “Roland Barthes faz também uma distinção útil entre vestuário e toilette, ligando os dois conceitos aos de língua e fala, de Saussure, chamando vestuário à forma estrutural, institucional do traje (o que corresponde à língua), e toilette a essa mesma forma “atualizada, individualizada, envergada (o que corresponde à fala)” (Barthes, 2009:31).

    Mais interessante ainda é a nota da tradutora portuguesa Maria de Santa Cruz que, na edição de 1981, diz o seguinte: “Habillement, no original traduzido aqui por toilette, por nos parecer que esta palavra evoluiu semanticamente ao ser usada em português, tendo agora mais o sentido de ‘conjunto das peças que se vestem em determinados momentos e respectivos acessórios’”. (Barthes, 2009:31- nota 44).” (p.34)

  • 6. Para quem, como eu, jardineiras, overalls, jumpsuits, há dois artigos bastante razoáveis que servem de boa introdução ao tema: “The Magic of Playsuits and Dungarees”, de Jessica Ogden, para a The Skirt Chronicles; e este, da Heather Radke, “The Jumpsuit that will replace all clothes forever” para a Paris Review, aqui https://www.theparisreview.org/blog/2018/03/21/the-jumpsuit-that-will-re...
  • 7. Para uma continuação da discussão sobre a ideia de “negociação da lembrança” ver Cucinotta, obra citada: “Foi Walter Benjamin que usou a expressão Tigersprung para a definição da moda enquanto “salto tigrino no passado”.

    Em geral, o conceito de Tigersprung refere-se aos traços do passado na relação com o presente. Em particular, Benjamin define-o como o conjunto daqueles instrumentos ou traços que produzem mudanças na estrutura das experiências da vida moderna, caracterizada por saltos violentos, alienação e deslocação, chegando à conclusão de que a moda é também uma narração social e o lugar de negociação da lembrança.” (p.47)

  • 8. “At the beginning of the 1960s Barthes wrote that cinema had become ‘a model means of mass communication’ (Barthes, 1998:41). Today this statement is still valid, since the representation of the visible offered by cinema, constructed by the camera lens as if it were reality before our very eyes, communicated and reproduced in millions of copies, is unique and irreplaceable. Thinking through images is equivalente to representing the real; the metaphors and narratives in cinema have become an integral part of our daily lives. Verisimilitude in film is the ‘truth’ that fuels our imagination. Cinema ‘thinks’: it invents stories, narrative techniques, human types and bodily forms; it explores territories at the limits of experience, feelings and passions from the most banal to the most eccentric” (Calefato, 2004:91)
  • 9. “[Y]ou can’t put a guy in a black suit without him looking a little cooler than he did already”.
  • 10. “I’ve always said that the mark of any good action movie is that when you get through seeing it, you want to dress like the character”.
  • 11. Esta coisa da cópia, da réplica remete também para filmes de culto como o Rocky Horror Picture Show - Festival Rocky de Terror (1975) de Jim Sharman, ou o The Sound of Music - Música no Coração (1955) de Robert Wise, em que há sessões especiais em que já se assume que a plateia irá in character, ou seja, o público irá reproduzir, através das suas roupas, falas, etc, os seus personagens preferidos e, por fim, todo o filme.
  • 12. “No que diz respeito à masculinidade, se estendermos a interpretação Lacaniana referida antes, os fatos dos “cães” são sintomáticos do falhanço compreendido da masculinidade de viver de acordo com o seu ideal auto-imposto.” [(Bruzzi, 2005: s/p, tradução minha (citação original: “With regards to masculinity, if one extends the Lacanian interpretation above, the ‘dog’s’ suits are symptomatic of masculinity’s perceived failure to live up to its own self-imposed ideal.”]
  • 13. Curiosamente, em nenhuma das cenas (em que bate na mulher ou viola a cunhada) aparece de wifebeater.
  • 14. Much like o colete à prova de bala usado muito recentemente por Kanye West no seu anúncio à Presidência dos EUA, a evocar essa qualidade (?) de herói de quem se pode depender e que está protegido de todos os pergos.
  • 15. Em alguns artigos, incluindo este da NYer, ele fala de uma linguista da Universidade da Carolina do Norte que estuda calão americano e que procura entre os seus alunos estes neologismos, e que a primeira vez que um deles submeteu esta expressão foi em 1996 (e que isto pode estar relacionado com estas subculturas musicais).
  • 16. Cucinotta: “Ainda outro binómio vem ajudar Simmel: o que existe entre as classes sociais elevadas e as subalternas, onde a adesão ou não a uma moda faz com que ela própria se desenvolva numa determinada direção. Relativamente a isso, Simmel desenvolve o conceito de difusão da moda chamado trickle-down, literalmente “gotejar de cima para baixo”, das classes sociais ricas para as massas, e que se estende depois de maneira horizontal através do mecanismo da imitação. Através da introdução deste conceito, Simmel chega à conclusão que a nova moda só pertence às classes superiores e que tais dinâmicas, que atuam mediante imitação, só têm um andamento, de cima para baixo. Ainda que não reduza as dinâmicas da moda a uma mera lógica de posicionamento social, Simmel afirma que, uma vez que esta chega às mãos das classes inferiores para se diferenciar delas, as classes originárias viram-se de imediato para um novo estilo. O fenómeno da imitação é substituído imediatamente, num novo ciclo, pelo da distinção. Desta forma, os grupos sociais menos favorecidos não conseguem impor/propor modas próprias, limitando-se a imitar os mais favorecidos através de um efeito de gotejamento. A teoria trickle-down de Simmel, sem dúvida, nasceu da observação do ciclo da moda em diferentes períodos históricos. Porém, pode supor-se que as grandes mutações na sociedade, acarretadas pela revolução industrial, foram determinantes e tiveram lugar poucos decénios antes da formulação deste modelo conceptual.” (p.43) Ainda assim, como reforça a própria Cucinotta mais à frente, esta ideia simmeliana resulta da observação dos fenómenos de produção /imitação/disseminação da moda num contexto específico porque com a introdução da ideia de fast-fashion e da ideia da moda enquanto processo de definição individual e individualizada (Lipovetsky), piramidal-like é invertido, resultando numa apropriação da alta costura de elementos “da rua”.
  • 17. É um pouco como os ciborgues no cinema: é através do espelho, que funcionaria como o suor, que percebemos todo o questionamento do ciborgue sobre a sua natureza entre humano e máquina - é através do espelho que acontece a self-reparation tão característica da máquina; é através do espelho que se percebe o questionamento das memórias (“falsas” ou não), que remeteriam para o estatuto de humano ou máquina, em alternativa. Escreve Semik (2017): “Self-reparation scenes are another cinematic way of visualizing the hybrid character of the cyborg, because they typically involve mirrors: the Terminator, RoboCop, and Eve 8 all look into a mirror while they are tending their wounds. The mirror is a well-known visual theme in cinema, where it functions for the character to provide a moment of self-reflection. (…) On the one hand, the cyborg characters see a perfected image of the human figure reflected in the mirror, because as hybrids of human and machine, they are literally enhanced and thus perfected human beings. On the other hand, they see a distorted image in the mirror because they are injured and disfigured. These mirror scenes suggest that cyborgs are confused about their hybrid identity: What or who are they? Why do they experience pain or feelings?Do they have memories?” (pp.112-113)

por Patrícia Azevedo da Silva
Afroscreen | 7 Março 2021 | Barthes, cinema, Derrida, figurino, herói, moda, saussure, simmel, Walter Benjamin, wifebeater, wifebeaterism