andar na linha

1. I walk the line

No site American Songwriter, pode ler-se uma breve história sobre como a música I walk the line, de Johnny Cash, foi escrita. Desde onde veio o humming (trautear) que pontua a música até à noite em que, nos bastidores de um concerto no Texas, em 1956, a música nasceu, entre acordes de Marshall Grant que experimentava o seu recém comprado baixo e o acompanhamento da guitarra de Cash, que logo ali avançou com a primeira linha (da letra), I keep a close watch in this heart of mine, até à certeza de que naquela mesma noite, escreveriam uma música — que se tornaria num dos seus maiores sucessos.

A música foi escrita para a sua então mulher Vivian Liberto, uma espécie de guia para o seu casamento, because you’re mine/I walk the line, “vou andar na linha”, como quem diz, vou fazer tudo bem. 

 

2. Em Lines, A Brief History, o antropólogo Tim Ingold escreve que “A linha? Não é o tipo de coisa que seja tradicionalmente o foco da nossa atenção. Temos estudos antropológicos sobre artes visuais, música e dança, discurso e escrita, artesanato e cultura material, mas não sobre a produção e o significado das linhas. Contudo, se reflectirmos um pouco reconhecemos que as linhas estão por toda a parte. Enquanto criaturas que caminham, falam e gesticulam, os seres humanos geram linhas por onde passam. Não é só que a criação de linhas é tão ubíqua quanto o uso da voz, das mãos e dos pés, respectivamente na fala, nos gestos, e no deslocar, mas antes que inclui todos estes aspectos da actividade humana do dia-a-dia e, ao fazê-lo, reúne-os num único campo de pesquisa. Esse é o campo que pretendo delinear.”1 



3. Linha imaginada –––––––––––––––– Emblemátika Linha

No catálogo da exposição Linha Imaginária, que aconteceu no final do ano 2021 na MU.SA – Museu das Artes de Sintra, curadoria da Fundação Aga Khan (marco Marin, André Silveira, Karina Souza, António Brito Guterres, Rodrigo Faria), pode ler-se que  “A periferia é um grande corpo narrativo que encontra nas artes urbanas os meios de expressão de valores e verdades que marcam o aglomerado de vivências que constituem o quotidiano das suas ruas. (…) Nascida como ruptura, a arte produzida a partir da periferia urbana é plural, ousada, bela e efémera, vive no anonimato e reinventa para si os lugares de exposição. Uma arte que cresce e se diversifica no traço do desenho, na intervenção da letra, nas imagens que captam e se apropriam de muros, telas, comboios e caminhos, numa linha imaginária que converge a partir da margem e a desloca para outra centralidade.”

A exposição colectiva reunia as obras e intervenções de Adilson Monteiro, Blac Dwelle, Carlos Stock, c’marie e egrito, Diogo Carvalho, Diogo vii, Fidel Évora, Filipa Bossuet, Francisco Gomesm - Queragura, Halb, Inês Santos, Julia Blochtein, Kapulana-San, Lukanu, Moami, Nastia Kazmina, Onun Trigueiros, RAM, Rappepa Bedjo Tempo, Sepher Awk e Taya. No meio de todos estes nomes já se encontravam os rapazes que, juntos, formam o colectivo Unidigrazz: Diogo “Gazela” Carvalho, Onun Trigueiros, Rappepa Bedjo, Sepher Awk – faltava apenas Tristany, que também participa do colectivo.

Formado em 2018, como se pode ler no seu site“Unidigrazz é uma consequência, uma continuação de algo [que já existe]; do trabalho dos rappers street, writers, poetas, de todas as mães. A arte realizada pelo colectivo relata uma época que já se viveu ou que se está a viver, pela maneira de ver e criar de quem vive dentro dessa realidade. É mais do que o mundo artístico. É o que vêem e vivem.”

Esta vivência será, talvez, aquilo que Diogo “Gazela” Carvalho apelida de sintranagem, na conversa que mantém com a equipa do podcast Cidade Invisível. Conta como, no seu trânsito entre Mercês e Nice, veio a compreender certos aspectos da Linha de Sintra que lhe escaparam enquanto criança, dos quais destaca uma presença policial agressiva, as “caixinhas” onde se encapsulam as pessoas cujas vidas obedecem a horários laborais violentos e desumanos, e sobretudo uma ideia de temporalidade um pouco triste no que diz respeito à ideia de futuro: para estas pessoas, “o futuro é para a semana.”

Cada um com a sua arte, o que juntou estes rapazes foi o desejo de contar histórias e a vontade de ver coisas bonitas num lugar por tantos considerado apenas (“apenas”) enquanto dormitório. Através de diferentes meios —Tristany via música (ver diferentes álbuns), Rappepa Bedju Tempu enquanto pintor urbano com uma obra de carácter político e activista, Diogo “Gazela” Carvalho através do cinema (Nha Fidju e Baixu Ku Riba são alguns dos seus trabalhos), Onun Trigueiros com a sua colecção de selos pintados a evocar emblemas, Sepher Awk com os seus grafittis sobre vivências quase sempre à volta da linha de comboio, e mais recentemente com o trabalho sobre a Emblemátika Linha,  a partir da ideia de emblema, em que recria cartões de cidadão de intervenientes da Linha de Sintra —, é através dos seus traços (dos desenhos, da sua linha de pensamento, até do corrimão que a mão negra segura num comboio cheio de passageiros da Linha de Sintra naquela que é a primeira foto que Diogo tirou) que se estabelece um emaranhado de redes e significados entre estes elementos. O comboio, esse, mantém uma centralidade fulcral: “O comboio é muito importante, porque é a única saída que temos.” (Diogo “Gazela” Carvalho, Cidade Invisível).

 

4. Snowpiercer  

No artigo do The Guardian The best 20 films set on trains o filme Snowpiercer, o cli-fi pós-apocalíptico de Bong Joon-ho, ocupa um sólido 5º lugar. Em Snowpiercer, um comboio indefinidamente às voltas entra em curso depois de uma experiência falhada que torna o planeta Terra inabitável. Este comboio é construído e mantido enquanto a única forma de sobrevivência. Como explica Tilda Swinton, que interpreta a personagem Minister Mason, “you see, this aquarium is a closed, ecological system. And the number of individual units must be very closely, precisely controlled, in order to maintain the proper sustainable balance”2

Swinton/Minister Mason é a 2nd-in-command de Wilfor, incrivelmente interpretado por Ed Harris, e que é responsável pelo Motor (o motor que mantém o comboio a andar, a parte mais importante do comboio, como na música que se ouve as crianças a cantar, The engine is eternal, the engine is forever). No princípio do filme, vemos a primeira revolução a acontecer: o comboio, destinado apenas para os happy few que o podem pagar e nele embarcar, é ocupado por uma série de indivíduos que, derrubando os constrangimentos físicos destinados a mantê-los de fora, se estabelecem nas carruagens finais do comboio. Designados por tailies, os da cauda (tail), cujo objetivo, a partir dali, será tomar conta do comboio de forma a que os recursos que existem sejam redistribuídos, no sentido a passarem também eles a ter acesso à comida e bebida, e todos os outros cuidados. Chris Evan, que interpreta Curtis Everett, o líder da revolução de tailies, praticamente abre esta demanda com um firme “we’re going to the front, and we need you to open up the gates”3. Evan está a falar com Namgoong Minsoo, o responsável pela concepção da segurança do comboio, interpretado por Song Kang-ho.  

As portas que separam as carruagens de Snowpiercer, armadilhadas para que não sejam abertas por qualquer um, são, como tudo neste filme, uma boa metáfora para os gates e gatekeepers que mantêm os indesejáveis fora dos espaços destinados apenas a alguns. Na vida real, nem sempre é necessário recorrer a artifícios físicos para que as pessoas ocupem apenas as “caixinhas” que lhes são destinadas: “põe-te no teu lugar” ou “mantém-te na linha” são formulações capazes de evitar extrapolações ou tentativas de subverter os lugares a si destinados.

 

5. Em Distante, a primeira exposição individual dos Unidigrazz, que ocupou a galeria Underdogs em 2023, pode ler-se em Tão perto, tão longe, o texto curatorial que acompanha a exposição, que 33 minutos é o tempo que separa a estação do Rossio, em Lisboa, da estação de Algueirão - Mem Martins, na Linha de Sintra, onde vivem e onde actualmente têm o seu espaço cultural. O dispositivo da Marquizz

“ocupa o centro da exposição como lugar literal de fala. Representa a vivência da casa na periferia, a intimidade, e o convívio familiar, mas também a zona intermediária entre o ambiente doméstico e a rua. É o espaço típico onde se estende roupa, se guarda bens, se estuda, mas também a solução arquitetónica possível para tentar expandir o apertado espaço das habitações. Nesta exposição, a instalação Marquizz apresenta diversas pinturas que, como janelas, tornam possível espreitar o cotidiano de indivíduos que fazem o percurso da Linha de Sintra. Sob a perspectiva da Unidigrazz, eles agora populam o cubo branco - se não fisicamente, ao menos como referências para as obras.” 

Jogando com a dicotomia periferia/centro, dentro e fora, transversal às suas vidas e obras, os Unidigrazz interrompem a ideia da Linha de Sintra enquanto lugar cinzento contrapondo a esta ideia uma produção artística rica, viva, colorida. Ao contrário das sunrooms, tradução um pouco atabalhoada de marquise (sobretudo pelas diferenças arquitectónicas no surgimento de ambas), as marquises da periferia (e, em bom rigor, em muitos bairros do centro) seriam talvez mais semelhantes ao puxadinho em algumas casas no Brasil, uma solução que, igualmente, tenta prolongar o espaço da casa, que é então ocupado de variadas formas que, por sua vez, espelham as várias vivências que acontecem nos espaços domésticos, não raramente um continuum da rua. Rodrigo Faria fala na importância do estar junto, também nas casas, avançando com a ideia do quarto, onde também acontecem as trocas (de música, de livros, de filmes), a reunião. Quem diz quartos diz marquises, ou qualquer divisão da casa onde a assembleia seja possível. 


Prolongando e redefinindo também outro espaço da casa, e jogando novamente com o continuum entre a casa e a rua, surge o Kintal, onde “se brinca, se vive, se resiste. De resistência se veste o digra, se protege e respira. O estendal serve pra pendurar, mostrar e reflectir. Do ser que existe sem ser visto, vestido de amor e de alma”. O ponto central deste projecto é precisamente a figura do estendal, que se materializa na “relação do espaço com a roupa, nos lugares onde estas manifestações existenciais e culturais acontecem, é outra abordagem que se questiona neste espaço pois é dos maiores motivos de nos sentirmos de onde somos, daí a relação iminente entre o espaço do ‘Kintal’ e a roupa estendida.” 

A roupa estendida, à semelhança do cubo branco da galeria, exibe elementos identitários que, sendo comuns aos membros do colectivo (e da comunidade), são também únicos e distintivos. O estendal, ele próprio uma linha, demonstra uma pluralidade de existências.

Fragmentado é também, ao contrário do comboio em Snowpiercer, o comboio da Linha de Sintra, no sentido em que a Linha é constituída de várias estações (e apeadeiros). Se em Snowpiercer o comboio não pára, avançando numa espécie de movimento espiralar que propõe a ideia “de que o tempo pode ser ontologicamente experimentado como movimentos de reversibilidade, dilatação e contenção, não linearidade, descontinuidade, contracção e descontracção, simultaneidade das instâncias presente, passado e futuro” (Leda Maria Martins, Performances do tempo espiralar), os comboios suburbanos obedecem a esse movimento de pausa, intervalo entre estações. Mas nem por isso a Linha, que enquanto símbolo geométrico evoca a ideia de linearidade, deixa de oferecer os seus emaranhados. Como num quadro branco onde se colocam vários agentes e respectivas relações, como na exposição Diálogo Maqueta de Luiza Baldan e Olívia Borges patente na galeria NOWHERE, em que as fotos fazem a conversa e os visitantes podem criar as suas próprias relações a partir do que vêem e do que intuem, a lembrar um qualquer quadro numa série de crimes e assassínios, as linhas correm em várias direcções, muitas vezes sobrepondo-se e criando assim novas conexões. 

A criação de linhas excede e redefine, portando, a ideia de sequência, de um tempo e um lugar a seguir ao outro. À semelhança dos etnógrafos, os Unidigrazz propõem mapear gestos, vivências, relações entre lugares, e todas as coisas que se encontram inscritas nos corpos e nos sítios reunidos nesse lugar muito real e também muito emblemático que é a Linha de Sintra.

 

6.Football is life!” grita, sempre que pode, a personagem Dani Rojas (interpretado por Cristóbal Fernández) em Ted Lasso, uma série sobre um treinador de futebol americano (Ted Lasso, interpretado por Jason Sudeikis) que é contratado para treinar um clube de futebol inglês. O futebol é o aparato que organiza toda esta trama, que se desenrola à volta do jogo, claro, mas também de todas as emoções e relações que se criam dentro e fora do campo.
 

7. No livro Fútbol y cultura, Ruben G. Oliven e Arlei S. Damo escrevem que “O futebol é popular não apenas porque é bom jogá-lo, mas também porque é bom pensar-se a partir dele. O jogo é um acontecimento extraordinário, um ritual atravessado por conotações simbólicas que actualiza as rivalidades entre clubes (ou os nacionais seleccionados) e as comunidades às quais pertencem. E o mais importante é que o faz periodicamente, existindo em si um substrato pré-moderno que evoca a temporalidade cíclica, o lúdico-festivo, o espaço público e um sistema de lealdades que deve ser honrado como antigamente se respeitava a pertença a determinada família, religião ou senhor.”4

O tempo do futebol, que é o tempo que demora uma partida, mas que também é o tempo que demora um campeonato, um tempo que segue em frente, linear, evoca também uma temporalidade cíclica, que se repete, e nesse sentido “De que forma os tempos e intervalos dos calendários também marcam e dilatam a concepção de um tempo que se curva para a frente e para trás, simultaneamente, sempre em processo de prospecção e retrospecção, de rememoração e de devir simultâneos? (Leda Maria Martins, Performances do tempo espiralar).”

 

8. No documentário A Filha de Deus, Dalma Maradona vai buscar fotos, pequenos home movies que encontra, e conversa com várias pessoas que de alguma forma cruzaram a vida do seu pai, Diego Maradona. Uma delas conta como foi organizar o casamento de Maradona com Claudia Villafañe, sua mãe. Cerca de três mesas seriam dispostas em níveis diferentes, cada uma acolhendo os convidados de acordo com o grau de afinidade com a família sendo a última, a mais pequena, a dos convidados mais íntimos. Consta que o Presidente da Argentina, que queria muito estar presente, fez saber que não poderia sentar-se noutra que não fosse a mesa mais alta, por questões de protocolo, ao que Maradona rapidamente respondeu, “Eu entendo, nesse caso pode assistir de casa, acho que o casamento passa na televisão”.

 
9. Em Cultura (Sub)Urbana – Empoderamentos (in)visíveis nos 50 anos de liberdade, o convívio que acontecerá nos próximos dias 26 e 27 de abril na Rua Domingos Saraiva em Mem Martins, os colectivos Unidigrazz, Txiga Pertu, e Love for Rebellion Collective serão convidados a apresentar alguma espécie de reflexão sobre o cruzamento entre futebol e arte. Será discutido o associativismo, espontâneo e organizado, que dá origem a associações desportivas e que também se encontra presente em várias formas de luta; a ligação entre futebol e política; a rede de suporte, que também é política no sentido em que cuidar é um acto político, que é acionada pelos elementos femininos (mães, irmãs) de cada vez que um homem (da família) é escalado para jogar futebol. A curadoria é de Rodrigo Faria, Carolina Oliveira e Daniel Santos. Como se pode ler no convite do IG, fica para o convívio e sai inspirado para fazer cumprir ABRIL por aí na street.

[Imagens do convívio Culturas (Sub)Urbanas, no espaço dos Unidigrazz, em Mem Martins]

Dedico este texto ao meu tio Amílcar Azevedo da Silva, irmão mais velho do meu pai (e talvez o mais elegante), que como todos os seus irmãos via no futebol a vida, e que foi treinador dos Palancas Negras, a seleção nacional de Angola. 

  • 1. Tradução da autora, “The line? This is hardly the kind of thing that has served traditionally as the focus of our attention. We have anthropological studies of visual art, of music and dance, of speech and writing, of craft and material culture, but not of the production and significance of lines. Yet it takes only a moment’s reflection to recognize that lines are everywhere. As walking, talking and gesticulating creatures, human beings generate lines wherever they go. It is not just that line-making is as ubiquitous as the use of the voice, hands and feet – respectively in speaking, gesturing and moving around – but rather that it subsumes all these aspects of everyday human activity and, in so doing, brings them together into a single field of inquiry. This is the field that I seek to delineate.”
  • 2. Tradução da autora: “Este aquário é um sistema ecológico fechado. E o número de unidades individuais tem de ser controlado de perto e de forma precisa, para que seja mantido o equilíbrio sustentável adequado.”
  • 3. Tradução da autora: “Vamos para a frente [do comboio], e vamos precisar que abras as portas.”
  • 4. Tradução da autora: “El fútbol es popular no sólo porque es bueno jugarlo, sino también porque es bueno pensarse a partir de él. El juego es un evento extraordinario, un ritual atravesado por connotaciones simbólicas que actualiza las rivalidades entre los clubes (o seleccionados nacionales) y las comunidades a las cuales pertenecen. Y lo más importante es que lo hace periódicamente, existiendo en ello un sustrato premoderno que evoca la temporalidad cíclica, lo lúdico-festivo, el espacio público y un sistema de lealtades que debe ser honrado como antiguamente se respetaba la pertenencia a determinada familia, religión o señorío.

por Patrícia Azevedo da Silva
Vou lá visitar | 24 Abril 2024 | centro, Cultura (Sub)Urbana, exposição, linha de Sintra, periferia, Unidigrazz