Salazar vai ao cinema - A “Política do Espírito” no Jornal Português

Oliveira Salazar e António FerroOliveira Salazar e António FerroOs temas que o Jornal Português – produzido de 1938 a 1951 com patrocínio do Estado Novo – abordou clarificam como o regime quis projectar a nação e pensou a relação do cinema com o público. Salazar vai ao cinema - O Jornal Português de actualidades filmadas não pôde desenvolver a análise desses temas nem tão pouco dar conta do caso de intercâmbio noticioso com o congénere espanhol, NO-DO. Salazar vai ao cinema - A “Política  do Espírito” no Jornal Português propõe-se complementar, assim, a abordagem a essa colecção de actualidades cinematográficas.

Proponho-me analisar como o Jornal Português fixou as realizações no âmbito da “Política do Espírito” proposta por António Ferro, como é que a “nação” e Salazar foram projectados pelo cinema mas também como as actualidades filmadas projectaram “o modo português de estar no mundo” durante dois dos conflitos da primeira metade do século XX: a Guerra Civil espanhola e a II Guerra Mundial.

Assim, começo por caracterizar a emergência do espectáculo cinematográfico e constato como a natureza documental do filme predominou sobre a ficcional. Descrevo como o regime iniciou o uso do cinema para propaganda da nova ordem, do reconhecimento da sua legitimidade política e do país como potência colonial e caracterizo o Jornal quanto a objectivos, financiamento e aspectos formais.

No capítulo dois comenta-se como as actualidades mostraram aos espectadores nacionais – que viam a revista filmada em escassos cinemas de estreia de Lisboa e Porto mas sobretudo no interior do país e ilhas, nos cinemas existentes e através do cinema ambulante do SPN/SNI – o “modo português de estar no mundo” em tempo de guerra.

Fixo o retrato da Lisboa mundana por onde passaram os artistas em fuga da Europa, no início da guerra mundial, seduzindo vivamente Lopes Ribeiro. Enquanto isso, Salazar mantinha a ligeira “afectação aristocrática”, que lhe atribui Ramos do Ó, e orquestrava a complexa teia de relações diplomáticas para garantir a neutralidade portuguesa enquanto negociava os termos do Pacto Ibérico. A simpatia do regime pelas soluções totalitárias é dominante quando é criado o jornal cinematográfico. Destaco como tal se traduziu no discurso da propaganda e como esta enalteceu a singularidade da “paz portuguesa” e do estatuto de Portugal como porta de entrada da Europa.

A propaganda sofre um revez duro antes da guerra acabar. O curso da guerra e a vitória aliada traduzem-se no afastamento dos artistas com que Ferro contara para construir a “Política do Espírito”. Ferro é afastado e um novo modelo, o de uma “política da matéria”, impõe-se com a aposta nas obras públicas e divulgação do progresso promovido pelo regime.

No capítulo três, descrevo de que modo se projectou no cinema a “Irmandade Ibérica”, especificando os termos e analisando a troca de notícias entre o Jornal e o congénere espanhol, NO-DO.

Na última parte, proponho olhar Portugal e a sua circunstância através de uma reflexão crítica sobre o olhar do cinema da propaganda. Como é que as actualidades cinematográficas do regime se enquadraram numa prática internacional de uso do género pelos aparelhos de propaganda de características totalitárias ou semi-totalitárias? Como foi feito o “elogio da corporação”? O capítulo quatro clarifica a definição de “Política do Espírito” por António Ferro e como esta foi posta em acção.

Estado NovoEstado Novo

O capítulo cinco é sobre como o Jornal Português regista as manifestações organizadas de apreço por Salazar e como a narração sublinha um propósito de Ferro – o de impôr Salazar como o grande realizador de um filme com final feliz, Portugal. O presidente do Conselho presta-se então, como nunca mais o fará, a figurar nas manifestações para dar substância aos valores do regime que ele próprio corporiza. Além do retrato do chefe – e da mística em seu torno – o Jornal Português fixa os rituais de projecção da “alma nacional”: o dia da Restauração que aponta um desígnio à Mocidade Portuguesa, a benção dos bacalheiros cuja faina é basilar para a economia nacional e, é claro, as efemérides que servem o revisionismo histórico. Trata-se da comemoração das batalhas contra os árabes mas também a homenagem aos “heróis da portugalidade” e – como clímax – a celebração do 28 de Maio como actualização do ressurgimento nacional.

A “nação em continência” é tema do capítulo seis, que constata como o quotidiano do país se manteve militarizado ao longo da existência desta série de actualidades filmadas. Só no final da existência da série o tema militar cede espaço às grandes obras do regime.

monsanto galomonsanto galo

O sétimo e último capítulo é sobre o “feitiço do império” mas constata o centralismo da metrópole. Em treze anos de notícias, apenas uma, em 1950, mostra um território colonial: Angola. A defesa do “além-mar” foi, naturalmente, uma preocupação da diplomacia portuguesa durante o conflito mundial e não se fez isenta de ameaças, nos Açores, e de ocupação, em Timor. O Jornal Português quis assegurar aos espectadores que o império não descurava a sua defesa. Descrevo, brevemente, como é que as actualidades de propaganda viram os indígenas e assimilados e que importância deram às relações com a “jóia perdida da Coroa”, o Brasil.

Salazar e FrancoSalazar e Franco

Finalmente, analiso como é que o discurso colonial português integrou, adaptando-o, o lusotropicalismo de Gilberto Freyre, para defender historicamente, e perante a questionação da ONU, a possessão de províncias ultramarinas.

Fechada a análise, junto uma entrevista esclarecedora. Numa tarde solarenga de Agosto de 1999, João Bénard da Costa recebeu-me no seu gabinete na Barata Salgueiro e discorreu sobre o que sabia e como interpretava o uso do cinema – e das actualidades cinematográficas – pela propaganda do Estado Novo.

 

do livro: 

 

por Maria do Carmo Piçarra
Afroscreen | 8 Julho 2011 | cinema, colonialismo, Estado Novo, império, Salazar