Augusta Conchiglia nos trilhos da Frente Leste, imagens (e sons) da Luta de Libertação em Angola

Curadoria de Maria do Carmo Piçarra e José da Costa Ramos

Em Abril de 1968, a jornalista italiana Augusta Conchiglia (1948) entrou clandestinamente em Angola para, com o realizador Stefano de Stefani (1929), reportar a luta de libertação em curso. Até Setembro, guiados pelos guerrilheiros do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), percorreram centenas de quilómetros nas zonas libertadas do Moxico e do Cuando-Cubango. 

Com duas Nikon F, Augusta Conchiglia tirou milhares de fotografias, das quais uma pequena parte foi publicada em Guerra di Popolo in Angola / Guerre du Peuple en Angola (1969), álbum de pequeno formato, com edição italiana e suíço-francesa – da Lerici, em Itália, e, na Suíça, da MSACP –, cujo subtítulo clarifica tratar-se de uma reportagem fotográfica realizada com os guerrilheiros do MPLA. 

Com curadoria de Maria do Carmo Piçarra e José da Costa Ramos, Augusta Conchiglia nos Trilhos da Frente Leste - Imagens (e Sons) da Luta de Libertação em Angola apresenta muitas das imagens reproduzidas no que é creditado como o primeiro álbum fotográfico da autoria de alguém exterior às lutas de libertação africanas. Editado por iniciativa da Associazione per i Rapporti com i Movimenti Africani di Liberazione (ARMAL), fundada em Itália em 1968, nele foram reenquadradas muitas das fotografias, para potenciar-lhes efeito e sentidos. Uma análise dos negativos que sobreviveram revela que tanto foram reproduzidas com nenhum ou apenas ligeiro reenquadramento, como foram “recortadas” de modo a, numa variação que antecipa a “câmara (cinematográfica) analítica” (Gianikian, Ricci Lucchi), criar close-ups. Estes relevam elementos – como o olhar – e tornam mais expressivos e significativos detalhes, tanto das faces e corpos humanos como da integração das pessoas na paisagem. 

Para esta exposição no Museu do Aljube – Resistência e Liberdade – cuja directora, Rita Rato, acolheu com entusiasmo a ideia de, pela primeira vez, apresentar uma selecção de fotografias de Augusta Conchiglia, procedeu-se à digitalização, com a maior qualidade possível, de mais de mil negativos a preto e branco existentes – em 50 anos, alguns extraviaram-se. Na impressão, restituímos às fotografias os enquadramentos originais, sublimando mais o humanismo nas imagens e menos a subordinação do mesmo ao propósito militante, evidente, subjacente à sua tomada e sobretudo ao uso posterior, tanto no referido álbum como em cartazes, capas de livros, etc. Adicionalmente, juntámos às imagens icónicas, outras inéditas, reveladoras da qualidade e sensibilidade do olhar da autora.

Apesar da dureza das caminhadas, da escassez alimentar – decorrente da guerra, com a aniquilação do gado existente pelo Exército português e o uso de desfolhantes –, da rarefacção da assistência médica e do risco permanente de ataques militares, a passagem de Augusta Conchiglia no maquis não foi determinada pela aceleração no movimento mas antes pela urgência de fixar o quotidiano nas zonas libertadas. A intuição e sensibilidade são evidentes – as imagens denotam a qualidade da relação com as pessoas fotografadas, e o empenho em relevar todos os aspectos da luta em curso. Não obstante a reportagem estar enquadrada pelo militantismo da autora, nela destacam-se os retratos e a fixação de situações, simples ou disruptivas, do quotidiano dos guerrilheiros e povo no contexto da luta. Os manuais de alfabetização, as armas de uns e outro (também para cultivar os campos); a manutenção das mesmas; o(s) seu(s) uso(s) e integração dos gestos – da sua importância – num movimento, colectivo, de uma comunidade em luta pela sobrevivência e libertação, mas em que, nem por isso, Conchiglia deixa de olhar para as pessoas na sua singularidade. Fá-lo também quando retrata Agostinho Neto. Não o capta em pose; retrata-o quer quando discursa como quando assiste a uma representação da violência colonial sobre os angolanos. O olhar sobre Neto não difere do que assenta em “Inga” Inglês, que veio a ser secretária-geral da Organização da Mulher Angolana, ou sobre a mulher que, num território com uma taxa de mortalidade infantil superior a 60%, acumula todas as preocupações do mundo num franzir de testa, enquanto, serenamente, um bebé dorme nos seus braços.

Viagem fotográfica pelas zonas libertadas 

Guerra di Popolo in Angola / Guerre du Peuple en Angola abre com um prefácio da intelectual Joyce Lussu, tradutora para italiano da poesia de Agostinho Neto. Lussu viveu em Lisboa, em 1941, no âmbito das actividades na Resistência italiana.  A sua luta antifascista integrou o anticolonialismo. Foi nesse quadro que conheceu a poesia de Neto. O regresso a Lisboa aconteceu, vinte anos depois, com um contrato de publicação, em Itália, da obra de Neto, então preso no Aljube. Lussu pediu, sem sucesso, uma audiência com Neto a Homero de Oliveira Matos, director da PIDE. Foi através de Maria Eugénia Neto que conseguiu algumas respostas além de poemas inéditos.

Lussu foi quem incitou Conchiglia e de Stefani, director de programas da RAI, a reportar a luta que se travava em Angola, então quase desconhecida no ocidente.

Após a saída de Roma, em Janeiro de 1968, Conchiglia e de Stefani fizeram reportagens para a televisão italiana no Egipto e na Zâmbia, para caucionar o projecto angolano – a RAI não podia tutelar a entrada ilegal na então colónia portuguesa –, antes de chegar à Tanzânia, a Dar-es-Salaam, onde estava parte da direcção do MPLA. De Neto, Daniel Chipenda e José Condesse de Carvalho (“Joka Toka”), receberam o enquadramento da situação política e social. Definiu-se em quais zonas registariam os avanços da luta, antecipando possíveis filmagens de acções de guerra contra o Exército português.

De Lusaka, na Zâmbia, partiram para a fronteira angolana, numa carrinha. A viagem, no fim da época das chuvas, foi o primeiro indício de que o esforço físico seria constante. Dois dias depois chegaram, pela noite, à base fronteiriça de Kassamba. O cansaço deu lugar à emoção com a perspectiva da entrada em “Angola livre”. Uns trinta guerrilheiros comandados por “Joka Toka” seguiram viagem, a pé, com Conchiglia e Stefani, para o Cazombo e, posteriormente, as bases Mandume II e III. Durante semanas, foi em Mandume III que entrevistaram, fotografaram e filmaram alguns comandantes: Filipe Floribert “Monimambo”, Iko Carreira, Ciel da Conceição “Gato”, além de “Joka Toka”.

As bases mais importantes tinham serviço de enfermaria e escolas muito básicas para os pioneiros. Os mais velhos deles recebiam treino militar armados com paus, que substituíam os fuzis, escassos. Não muito distantes estavam as povoações, deslocadas das tradicionais clareiras, camufladas no mato, evitando o reconhecimento aéreo e ataques portugueses. Os repórteres documentaram encontros entre os guerrilheiros e população intermediados por tradutores falantes de Tchokuwe e Luvale – frequentemente era necessário resolver questões relacionadas com as lavras. Também registaram as sessões de politização asseguradas pelos chefes de guerrilha pois a criação de laços de união era uma prioridade. A ideia de nação era então uma abstração para quem questionava que melhoria a sua génese traria à vida de cada indivíduo. A enorme diversidade de pessoas, originárias de vários pontos do território, traduzia-se também culturalmente e revelava-se nas danças e dramatizações que animavam a vida, dura, no maquis.

A segunda etapa da viagem – feita à noite, a descoberto, pela savana, e incluindo travessias das lagoas formadas pela chuva intensa em canoas – levou-os à zona C, na região de Lumbala-N’guimbo, a sul da Frente Leste, onde, de 22 a 25 de Agosto, aconteceu a primeira conferência dos delegados regionais nas zonas libertadas, com a presença de Agostinho Neto e com Aquino de Bragança como convidado. Outros dirigentes históricos do MPLA marcaram presença, entre os quais Aníbal de Melo, Américo Boavida e “Dino Matrosse”. O local não era distante da estrada usada pelos militares portugueses para reabastecer um dos seus quartéis e, por isso, estava prevista a realização de emboscadas pelo MPLA, a documentar por Stefani e Conchiglia. Dias sucessivos de espera não cumpriram essa expectativa mas proporcionaram conversas com os guerrilheiros para aferir que esperanças tinham para a vida pós-independência.

Sons da luta 

Nesta primeira viagem, recolheram-se, em fita magnética, vários tipos de registos, editados, posteriormente, pela ARMAL com a Edizioni del Gallo, no LP Angola Chiama, o qual tem, na capa sob fundo vermelho, uma imagem da autoria de Augusta Conchiglia O disco inclui gravações dos cantos e sons das danças no seio da luta popular, o hino do MPLA, de algumas representações – a reconstituição de uma emboscada a uma coluna portuguesa durante uma dramatização da luta de libertação e a representação da manifestação que aconteceu aquando da prisão de Neto –, o interrogatório a um prisioneiro português, o apelo de um desertor português no programa “A voz de Angola combatente” da Rádio Tânzania, a discussão de plano de uma operação. No lado 2 do disco compilam-se registos sonoros de danças, cantos militantes, testemunhos de dois camponeses e de uma camponesa (sobre a importância, para o MPLA, do papel das mulheres na luta), uma reunião com a população e um curso de instrução revolucionária nas zonas libertadas. Uma selecção destas gravações dialoga, na exposição, com sequências de imagens ou com certas fotografias, permitindo uma montagem mental que Conchiglia e Stefani objectivaram num. Uma primeira versão dos materiais filmados foi feita para projecção no Festival Panafricano de Argel de 1969, desaparecendo posteriormente. 

Em 1970, Conchiglia e de Stefani reentraram, clandestinamente, nas zonas libertadas em Angola, acompanhados por um pequeno grupo em que se incluiu Lionello Massobrio. Pretendiam fazer um filme a cores sobre a luta do MPLA. Um desentendimento entre a equipa ditou, porém, que a dupla realizasse, a preto e branco, A Proposito dell’Angola – feito colectivamente mas atribuído a Stefano di Stefani e cujo paradeiro localizei entretanto no Istituto Luce-Cinecittà – que remonta imagens filmadas de 1968 com outras de 1970. Da viagem, resultou ainda a publicação, em Itália, de um segundo livro, homónimo do filme. 

O disco Angola Chiama inclui um livreto com uma carta de Agostinho Neto, de 30 de Julho de 1969, relativa ao reconhecimento recente, pelo Comité de Libertação de África, do MPLA como único movimento legítimo e representativo dos interesses da população quanto às aspirações de independência. Esta circunstância enquadra a organização de muitos dos acontecimentos e iniciativas que a dupla de repórteres registou. Do reconhecimento internacional decorreram responsabilidades acrescidas e, nesse período, estimula-se a alfabetização, a educação política do povo e dos guerrilheiros, a organização da produção de alimentos e implementação de comunicações via rádio, enquanto se determina uma estratégia para as relações políticas internacionais a estabelecer. É esta fase de grande dinamismo do MPLA, pois, aquela documentada fotograficamente por Augusta Conchiglia.

As imagens de Augusta Conchiglia – usadas, com créditos, por Sarah Maldoror, no genérico final da primeira curta-metragem Monangambé (1968), e por William Klein em Festival Panafricain d’Alger (1969) – são iconográficas da luta contra o colonialismo português. Após a independência de Angola, foram usadas frequentemente sem créditos à sua autora. Esta exposição é, também, um acto de restituição, no sentido em que projecta o nome da sua autora com as suas imagens.

por Maria do Carmo Piçarra
A ler | 26 Julho 2021 | angola, augusta conchiglia, Fotografia, luta de libertação, singularidade