Do cinema de estado ao cinema fora do Estado: Moçambique
17 a 29 de abril na Cinemateca Portuguesa.
O projeto de cinema em Moçambique foi referencial no contexto africano. Quando, em 1975, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) assumiu o governo, poucas pessoas tinham visto imagens em movimento. Logo em 1976, foi criado o Instituto Nacional de Cinema (INC), após decidir-se que a “geração da utopia” teria formação em cinema, no contexto do projeto revolucionário de combate contra as injustiças e destruição das hierarquias herdadas da anterior situação colonial. O tempo era de internacionalismo cinematográfico, documentado no KUXA KANEMA nº 36. Relações estreitas com países do Leste da Europa, China e Cuba tiveram impacto na formação de profissionais e na produção e exibição de cinema. O manifesto Hacia un Tercer Cine (1969), dos argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino, propusera uma nova categoria, a do cinema dedicado à descolonização, com impacto no cinema de autor. Num desenvolvimento posterior das suas ideias, Solanas e Getino definiram cinema militante como a realização de filmes por coletivos articulados com organizações políticas revolucionárias. As propostas de Getino e Solanas foram acolhidas pelos líderes dos movimentos de independência, e integradas em projetos nacionais de cinema questionadores do imperialismo e das normas históricas, culturais e ideológicas dominantes na sociedade e no cinema. A América Latina, Cuba, o Norte de África, a África de línguas francesa e portuguesa – e especialmente Moçambique – tornaram-se laboratórios para o desenvolvimento teórico e prático do cinema, com a contribuição de técnicos e cineastas internacionais que acorreram para participar e/ou filmar. Em Moçambique, além do envolvimento de Ruy Guerra, convidado para participar na criação do INC e determinante na atração de cineastas brasileiros como Licínio Azevedo, que se radicou no país, são notáveis as passagens e projetos, não isentos de polémica, de Jean-Luc Godard e Jean Rouch, além dos filmes feitos por Santiago Álvarez.
Como afirma Ros Gray em Cinemas of the Mozambican Revolution, o cinema produzido e mostrado nessa fase inicial apresentou-se como materialização das amizades socialistas e agente de mobilização política. Não se tratava apenas de levar imagens em movimento às pessoas, mas de criar ligações entre as revoluções a acontecer. Enfrentando enormes adversidades, durante mais de uma década o INC centralizou a produção cinematográfica e fomentou uma prática e uma cultura cinematográfica revolucionária. Os cinemas ambulantes, mas também as equipas de produção que filmavam pelo país, atravessaram Moçambique projetando a sociedade em construção. As duas séries de KUXA KANEMA (a primeira em 1978 e 1979, e depois, num formato mais curto, de 1981 a 1985) mostraram o povo, a sua história de luta e construção de uma sociedade socialista, ao povo: danças e música, locais históricos de resistência, formação de novas competências profissionais, reorganização económica, visitas de chefes de Estado estrangeiros e, claro, os discursos de Samora Machel. Progressivamente, desvelam também a violência que se abate sobre o país quando o governo se afirmou anti-Apartheid. O apoio da Rodésia governada por uma minoria branca e da África do Sul à Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) fomentará uma das mais destrutivas guerras civis travadas no continente, a qual só terminou em 1992. Entretanto, a morte de Machel num acidente de avião, em 1986, e o incêndio do INC em 1991, são marcos do colapso da revolução marxista e do seu projeto cinematográfico.
A privatização da indústria cinematográfica estava já em curso paralelamente à transição para uma economia de mercado livre e para a democracia multipartidária. O legado do “cinema de Estado” foi a formação de uma geração com grandes competências técnicas e preocupação com questões sociais. Esse legado persiste. Não obstante as dificuldades do ‘nascimento (em imagens) de uma nação’, as preocupações sociais são uma linha de força nos filmes feitos em Moçambique ou por moçambicanos. Porém, a cinematografia moçambicana é hoje também marcada por preocupações ecológicas, que passam pela revalorização dos saberes ancestrais, pelo tratamento de questões identitárias (incluindo de género e raciais), e, muito fortemente, relativas às articulações entre as memórias pessoais e coletivas, tanto numa perspetiva de questionamento do que falhou na construção do país, como das possibilidades de esperança e de superação dos traumas provocados pelo colonialismo e pela guerra civil.