"Família Alcântara" – a saga de uma produção cinematográfica

Em 1996, enquanto ainda cursava a Faculdade de História, sofri uma espécie de “banzo” intelectual que quase fez com que interrompesse os estudos. Com a morte de meu pai e a reflexão sobre o que ele representava na minha vida, comecei a sofrer com a falta do ensino da história da África e dos afro-descendentes na faculdade. Já trabalhava como assistente de produção cinematográfica e, se desde criança me incomodava muito a (ausência da) representação dos negros nos meios de comunicação brasileiros, como produtora isso passou a me incomodar muito mais. Para sair daquela letargia, senti que tinha que perseguir o sonho de realizar meus próprios filmes. Mas… por onde começar?

Um importante diretor com quem colaborava, buscando me ajudar, me presenteou com um conto para que eu fizesse o roteiro de um curta-metragem, que ele julgava ser “a minha cara”. Era a história de uma jovem às voltas com o marido preso e seus amigos, entre eles, um apelidado de “macaco”, epíteto que dispensa maiores explicações. Definitivamente, não era esse o caminho que queria seguir.
O primeiro passo foi parar, por um tempo, de trabalhar em produções cinematográficas e transferir-me para a residência estudantil da Universidade. Estudava História à noite e, durante o dia, dedicava-me como ouvinte às aulas da Faculdade de Cinema. Também comecei a frequentar o grupo Cachuera!, que se reunia às segundas-feiras à noite ao redor de uma fogueira. Nessas ocasiões, eram vivenciadas manifestações populares tradicionais negras do sudeste brasileiro, como congada, jongo, moçambique de bastão, batuque de umbigada entre outras. Com isso alimentei minha alma e tive fôlego para continuar na Universidade, a despeito de todo o eurocentrismo existente ali. Ainda não tinha um projeto definido, só sabia que queria povoar as telas do cinema e da TV com rostos negros. Muitos.

No ano seguinte, meu irmão Daniel, que também atua como produtor cinematográfico, elaborou um projeto de curta-metragem sobre uma família negra, de Minas Gerais. Era a família “Alcantâra”, que começava a despontar na mídia como um grupo que, ao contrário da maioria dos africanos e seus descendentes escravizados no Brasil, dizia saber de que região exatamente eram oriundos da África, assim como preservava suas tradições ancestrais.  
O projeto não conseguiu recursos para ser realizado naquele formato, mas vi nesse tema a possibilidade real de, enfim, concretizar meus sonhos. Convenci-o que uníssemos forças para realizarmos um filme para televisão, de 56 minutos, ao invés de um curta-metragem. A estratégia que então planejamos previa a realização de um projeto para cinema, aproveitando as “facilidades” (que mais tarde mostraram ser, na verdade, dificuldades) de captação de recursos por intermédio da principal lei de incentivo federal ao cinema, a Lei do Audiovisual, exclusiva para projetos a serem exibidos prioritariamente nas salas de cinema. Depois do filme pronto, deveríamos participar de festivais, ganhar prêmios, lançar no cinema e, assim, atrair um distribuidor de vídeo, em seguida vender para a TV fechada e, finalmente, exibir na TV aberta.
Em 1998, começamos o projeto “Família Alcântara”. Nós o realizávamos por etapas, ao mesmo tempo que continuávamos trabalhando em filmes de terceiros. No processo, descobrimos que a Família Alcântara não sabia exatamente de onde vinha, mas que isso não era o mais importante no filme, e sim as formas imaginárias que buscaram para desenvolver sua identidade, por intermédio do teatro, do canto e da religiosidade. O filme ficou pronto em 2005 e foi lançado nos cinemas em 2006. Em 2007, foi lançado em DVD e exibido na TV fechada. Em 2008, exatamente 10 anos após iniciarmos o projeto, o filme foi exibido pela primeira vez em TV aberta.
À época do lançamento em cinema, a crítica especializada recebeu-o muito mal. O principal julgamento era de que ele não era para cinema, e que isso era um desvio de intenção (jamais citaram isso como uma estratégia de captação de recursos). O resultado do nosso esforço em representar os personagens de forma elegante, tomando depoimentos em estúdio, bem vestidos e bem iluminados, atitude inédita no cinema nacional para personagens negros, foi tachado de burocrático.
Por outro lado, exibir o filme para o nosso público-alvo, os afro-descendentes brasileiros (pelo menos metade da população deste país), sempre foi uma experiência emocionante. Foi isso que nos deu a certeza do dever cumprido e faz com que, até hoje, eu considere a sua realização uma das maiores vitórias da minha vida. Só não atingimos plenamente o público-alvo, porque isso só seria conseguido se o exibíssemos no horário nobre da TV Globo, a maior emissora brasileira. Como poderíamos fazer isso? Só se invadíssemos a rede transmissora e apontássemos uma arma para o técnico que cuida das fitas das novelas…
“Família Alcântara” foi um “divisor de águas” na minha carreira e de meu irmão: tornamo-nos realizadores – diretores-roteiristas e produtores de nossos próprios projetos. O filme continua sua carreira. É possível adquiri-lo pela Internet, pagando com cartão de crédito (o que é um feito para um documentário), com legendas em francês, espanhol e inglês. Neste ano, foi adquirido por mais uma vez  TV aberta brasileira e, além disso, somos sempre procurados para exibições em Mostras, Festivais e Encontros.
A cada dia tenho novas ideias para realizar e exibir produções audiovisuais. Se tivesse recursos para produzir incessantemente e uma televisão nas mãos, ocuparia toda a grade com rostos negros, através de ficções e documentários nacionais. Faria séries como a norte-americana “Todo mundo odeia o Chris”, sucesso no Brasil atualmente, programas de entrevistas e exibiria filmes do mundo todo, como os que seleciono na “Espelho Atlântico – Mostra de Cinema da África e da Diáspora”.
Quem sabe, um dia, isso será possível em meu país. Por enquanto é apenas um sonho, mas “Família Alcântara” também me deu uma certeza para a vida toda: os sonhos podem tornar-se realidade. É só acreditar neles.

por Lilian Solá Santiago
Afroscreen | 17 Maio 2010 | afro-descendentes, Brasil, cinema, diáspora, Lei do Audiovisual, negro