Viagens da teoria antes do pós-colonial

“Do mesmo modo que nenhum de nós está fora ou para além da geografia, também nenhum de nós está completamente livre da luta pela geografia. Essa luta é complexa e interessante, porque não diz apenas respeito a soldados e canhões, mas também a ideias, formas, imagens e imaginações” (Edward W. Said, Culture and Imperialism, 1994: 6).

Há cerca de cinco anos mencionava-se na introdução a Deslocalizar a Europa (Sanches, org., 2005) – de que este volume é, até certo ponto, uma sequela – a complexidade das viagens da teoria, as suas transformações e limites, a partir do texto “Reconsiderando a teoria itinerante”. Aí, Edward W. Said assinala o modo como teorias produzidas em momentos e lugares específicos sofrem processos de transformação, consoante não só o tempo, mas também – e esse é o seu aspecto mais inovador – os lugares em que são lidas, dando assim lugar ao que designa de processos, não de filiação, mas de afiliação, ou seja, de apropriação criativa.

O mesmo se poderá, porventura, aplicar à recepção dos textos contidos no volume Deslocalizar a Europa que apresentava, em versão portuguesa, um conjunto de propostas teóricas relacionadas com uma perspectiva que tem vindo a ser designada, com maior ou menor eficácia, maior ou menor adequação, de ‘pós-colonial.

O termo parece ter finalmente entrado no vocabulário nacional, por vezes ainda com alguns equívocos, nomeadamente quando se persiste em atribuir ao ‘pós’ uma mera conotação cronológica, como se o colonial tivesse sido finalmente ultrapassado, o que permitiria – pelo menos em Portugal – uma revisitação mais ou menos pacificada de um passado que se deseja definitivamente morto e enterrado.

Contudo, esse passado insiste, tal recalcamento, em vir à tona. A memória da guerra colonial, os conflitos sobre uma descolonização apelidada de ‘exemplar’ ou ‘desastrosa’ revelam, no caso português, o modo como as feridas continuam abertas, sobretudo nas gerações que as presenciaram. As memórias dos ‘retornados’ afloram timidamente, sempre em termos de um debate controverso que parece longe de encerrado.

Por outro lado, gerações mais jovens, não só nostálgicas de uma ‘África minha’, mas também cada vez mais interessadas ou críticas em relação ao passado colonial, manifestam a sua curiosidade, curiosidade nunca meramente intelectual, atravessada como é por memórias e estórias herdadas de experiências por vezes opostas, mas portadoras, apesar de tudo, de um olhar necessariamente mais distanciado sobre esses acontecimentos.

Uma vez que o luto desse momento está longe de ser resolvido, urge revisitar os elementos ‘fundadores’ do pós-colonial, representados pelos textos aqui reunidos: propostas diversas, por vezes contraditórias, mas todas elas militantemente anti-coloniais. Porquê, poder-se-á perguntar, a urgência desta revisitação? Interesse meramente documental, registo arqueológico, na acepção menos interessante do conceito, para desenterrar passados ultrapassados, passados que jazem mortos, arrefecendo, enredados em malhas tecidas por impérios que se deseja definitivamente enterrados?

Pergunta que, se faz sentido, não obsta a que se lhe acrescente outra: como falar do pós-colonial, sem pensar o colonial e a reacção mais imediata a este? Note-se que não se pretende, de modo algum, ver no anti-colonial um mero momento antes do pós-colonial, como se a simples causalidade histórica, regida por uma lei de necessidade estrita, pudesse explicar o presente. Mais relevante será atender às diferenças de contextos, ao mesmo tempo que não pode ser ignorada a forma como muitas das respostas e interrogações que a nossa contemporaneidade se coloca são também marcadas por perplexidades que esses passados suscitam.

Publicados alguns deles no Portugal dos anos 1970, quando o fim da censura permitiu finalmente a sua divulgação – mas, entretanto, esquecidos ou ignorados pelos que então os leram ou desconhecidos das gerações mais jovens – , a maior parte dos textos aqui apresentados requer uma leitura renovada que permita uma heterogeneidade efectiva de abordagens face aos desafios nossos contemporâneos.

Dito de outro modo, a complexidade das reacções e análises, bem como das próprias teorias pós-coloniais, só pode ser entendida em todo o seu alcance se se considerar a sua dependência de histórias e teorias que as abordagens actualmente prevalecentes tendem, por vezes, a descurar ou a utilizar de forma descontextualizada. Entre estas últimas destacam-se exactamente as propostas anti-coloniais que, na sua diversidade, também contribuíram, para além de outros factores de ordem económica e política, para uma alteração radical da ordem mundial.

Esta revolução iniciou-se na segunda metade do século passado com a reivindicação do direito à auto-determinação e à independência total por parte das antigas colónias europeias. Neste contexto, a descoberta da negritude, associada, de modo mais ou menos explícito, a uma consciência pan-africana, com enfoques diferentes, mas complementares, foi, sem dúvida, um dos momentos decisivos que marcaram – como o sugerem os textos seleccionados – o pensamento e as práticas políticas que também contribuíram decisivamente, não para o fim do (neo)colonialismo, mas para o seu questionamento radical. Sem este, quer os movimentos anti-coloniais, quer a perspectiva pós-colonial não seriam possíveis. Esse momento caracterizar-se-ia pelo afirmação da identidade negra ou africana e pelas reivindicações de uma descolonização fora e dentro da Europa, nomeadamente através do questionamento das narrativas eurocêntricas, da luta pela independência, bem como pela criação de uma via alternativa aos dualismos da Guerra Fria, através da noção de Terceiro Mundo.

A questão da negritude, por exemplo, tema que inspiraria muitas tomadas de posição reivindicando o direito à diferença como forma de garantir a igualdade efectiva, evidenciaria a necessidade, que nos parece ainda justificada, de questionar os preconceitos raciais e culturais que – pesem embora todos os discursos em torno de uma crioulização excessivamente pacífica – continuam a assolar as sociedades contemporâneas. Com efeito, a discriminação racial ainda persiste, insidiosa, mesmo quando o exótico surge como apelativo, nomeadamente em Portugal, onde impera um consenso não só em torno de tradicionais ‘brandos costumes’ lusotropicalistas, mas também da ideia de que há que não falar em ‘raça’, para se evitar o racismo. O pós-colonial, se bem que questionando dicotomias entre ‘nós’ e ‘eles’, propondo vias intermédias e celebrando, por vezes apressadamente, todos os processos de hibridização, não invalida a persistência de visões diminuidoras da ‘diferença’ exótica ou ameaçadora, visões essas herdadas de longos séculos de dominação colonial, mesmo quando agora se prefere falar em ‘cultura’ para evitar a ‘raça’ (Gilroy 1987, Taguieff 1990, Stolcke 1995). Assim, a questão da ‘alteridade’, tão em voga desde há alguns decénios, esconde frequentemente a sua filiação em teorias e práticas de hierarquização, desde a classificação racial ‘científica’ às narrativas evolucionistas, passando pela ideia da irredutibilidade da diferença cultural.

Por outro lado, o carácter transnacional da negritude ou do pan-africanismo, outro importante elemento do projecto anti-colonial, cria uma tensão produtiva com a afirmação dos nacionalismos anti-coloniais que tanto mais valerá a pena revisitar, numa época de globalizações desiguais, mas também de outros tráfegos que geram tanto diferenças só aparentemente irredutíveis, como solidariedades inesperadas.

'O Beijo' de Magritte'O Beijo' de Magritte

Os textos aqui publicados apontam para um modo alternativo de utilizar a diferença, na medida em que sublinham outros momentos distintivos, anti-coloniais, face a discursos legitimadores – na pós-colonialidade – de processos de interdependência inevitável, embora geradores de desigualdades económicas, sociais, políticas e raciais. Nesse sentido, os actuais debates em torno do multiculturalismo, da interculturalidade ou da hibridização/mestiçagem não transcendem, em parte, as premissas que enformaram os discursos coloniais e as reacções – anti-coloniais – a estes. Talvez também por isso a sua revisitação faça sentido, num tempo hesitante entre a celebração da hibridez dita pós-colonial e os ‘choques civilizacionais’, sem que essa tensão seja pensada adequadamente.

Importa também estimular um debate no nosso país, questionando consensos pouco produtivos, tais como a ‘colonização exemplar portuguesa’, a nossa proverbial ‘tolerância’ e ‘mestiçagem’, chamando, ao mesmo tempo, a atenção para as razões que assistiram e inspiraram a violência mais ou menos acentuada do anti-colonial.

É certo que as utopias de então surgem nubladas por acontecimentos que nos fazem olhar o optimismo voluntarista de alguns textos com redobrado cepticismo, cientes de que o mal e o bem não são categorias fáceis de determinar e de que a ética não será a melhor conselheira quando analisamos o passado. Entre ideais passados e violências justificadas – seja em nome da ‘missão civilizadora’, seja em nome da ‘necessidade histórica’, ou de um futuro a conquistar – insere-se, sobretudo, uma perspectiva hesitante perante os modos de se ler esse passado e a forma como ele ainda incide sobre o modo como definimos a Europa, seleccionados, como estes textos foram, a partir de uma perspectiva provincianamente europeia, perspectiva contemporânea, embora atenta ao passado que também a constituiu.

Olhar o passado não implica, assim, qualquer vontade de nele nos determos. Pretende-se antes pretendemos propiciar os meios para uma reflexão mais fundamentada sobre o que somos e queremos ser, num contexto que não tem de ser forçosamente nacional, atentos que devemos estar a processos transnacionais, mais ou menos impostos ou voluntários – tais como os fluxos migratórios, financeiros, mediáticos, para citar apenas alguns (Appadurai 1996) –, que caracterizam a sociedade na chamada ‘era da globalização’.

Revisitar implica, forçosamente, (re)ler estes textos a partir do ‘pós’, isto é, de um modo menos assertivo, porventura, parcialmente mais céptico, mas atento às possibilidades que a diversidade das propostas aqui reunidas ainda nos abrem, repensando conceitos que utilizamos, por vezes, sem a complexidade que o tempo neles sedimentou.

Pretende-se, em suma, trazer até ao presente diversas propostas do pensamento anti-colonial, na expectativa de lhes conferir novas leituras, porventura, novas afiliações, através da selecção e justaposição aqui ensaiadas.

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Assinalem-se alguns fios condutores que justificam esta selecção forçosamente limitada e sempre com o seu quê de subjectivo. Considerou-se, por um lado, uma delimitação temporal que se optou por situar entre as décadas de vinte e de setenta do século XX. Foi nesse período que surgiram as mais importantes posições no contexto do questionamento não só do colonialismo, mas também das visões eurocêntricas e hierarquizantes do legado ocidental – o seu universalismo.

Por outro lado, ao reunir textos escritos em Português, Francês e Inglês, esta selecção pretende salientar a importância de intensas trocas e afiliações teóricas, apropriando-se dos discursos hegemónicos, mas criando, simultaneamente, novos espaços teóricos para além das distinções entre comunidades linguísticas, com as suas rivalidades e políticas, resquícios de antigas contendas imperiais que silenciam os cruzamentos e inspirações recíprocas que estes tráfegos globais potenciaram. Malhas tecidas por impérios distintos, sem dúvida, mas que se influenciaram reciprocamente em todos os sentidos, desde os discursos e textos em circulação até àqueles que os enunciaram, deles foram sujeitos ou objectos.

Como já foi referido, uma selecção não pode evitar lacunas, nem tão pouco idiossincrasias, estas últimas consistindo na selecção de textos, por vezes, menores ou de teor menos óbvio, incluindo registos distintos que vão do ensaio mais ou menos académico (Georges Balandier, Michel Leiris), passando pelo panfleto político (W. E. B. Du Bois, Amílcar Cabral, Frantz Fanon, Eduardo Mondlane, Kwame Nkrumah, Richard Wright, Aimé Césaire) ou o manifesto artístico (Alain Locke) até ao relato de viagens (George Lamming). Optou-se também por apresentar textos menos divulgados, chamando ao mesmo tempo a atenção para os mais consagrados. É o caso de Aimé Césaire, cujo texto “Cultura e colonização” se apresenta numa primeira versão em Português, ou de Frantz Fanon e Richard Wright, aqui representados por textos ‘menores, também eles resultantes de comunicações apresentadas ao 1º Congresso de Escritores Negros de 1956.

Saliente-se, de resto, o carácter circunstancial da maior parte dos textos, escritos alguns deles sobre o acontecimento, associando a momentos particulares reflexões teóricas, assim propiciando, espera-se, uma reflexão mais fundamentada sobre os contextos não meramente sociológicos, mas também discursivos, que determinam as perguntas que fazemos, os problemas e tarefas que nos colocamos – aquilo a que David Scott (2004) chama um “espaço-problema” – também no âmbito da produção e leitura destas teorias em viagem.

Uma antologia de textos não tem de ser um acto meramente didáctico. Assim, não se ensaia aqui qualquer pedagogia, mas antes, a intenção de assinalar, através da diversidade das reflexões aqui apresentadas, os múltiplos modos utilizados para exprimir ideias mais ou menos convergentes ou antagónicas, ao mesmo tempo que se pretende sublinhar o carácter inter e transdisciplinar dessas propostas. Estas incluem áreas como a antropologia, a literatura, a arte, a história, para além da intervenção política. É esse cruzamento disciplinar que o volume também pretende ecoar e promover, demonstrando que algumas dessas tendências não são tão inovadoras quanto por vezes se pretende fazer crer e que, porventura, as propostas mais estimulantes, no que respeita ao saber teórico e prático, se situaram quase sempre nessas zonas intersticiais e, por isso, necessariamente experimentais.

Importa salientar que interessaram menos as consistências teóricas que se podem entrever entre as diferentes posições ensaiadas nos textos, do que as contradições e oposições, as ramificações de conceitos e abordagens, o modo como inspiraram diferentes leituras, se contaminaram reciprocamente e foram diferentemente interpretados, gerando assim novas abordagens, consoante os contextos temporais e geográficos, na atenção às viagens de teorias que marcaram profundamente a segunda metade do século XX.

'Touki Bouki' de Djibril Diop Mambéty (1973)'Touki Bouki' de Djibril Diop Mambéty (1973)

1. Viagens transnacionais, afiliações múltiplas

Se há um momento que pode ser entendido como ‘fundador’ do pensamento anti-colonial, ele reside certamente na ideia de um retorno a África, mas com o objectivo da sua modernização e emancipação, de que o movimento encabeçado por Marcus Garvey (1887-1940) terá sido o mais emblemático. Este ideal emergiu significativamente no seio da diáspora africana, nas Américas e na Europa, entre todos aqueles que, de uma forma ou outra, viviam entre a assimilação forçada e a discriminação racial. Foi contra esta situação que se manifestaram, quer a consciência da diferença racial e, sobretudo, cultural – a negritude –, quer um sentimento de pertença a um continente que durante séculos fora considerado o continente sem história, sinónimo das mais profundas trevas e povoado pelos habitantes mais afastados dos processos de civilização e da conquista da racionalidade: a África.

Nesse sentido, o movimento da negritude pode ser visto em associação com o pan-africanismo, embora constituam duas tendências distintas. O primeiro, mais francófono, teria os seus principais representantes em Léopold Sédar Senghor, Léon Gontran-Damas e Aimé Césaire, com uma vertente mais cultural e poética. Já o segundo, predominantemente anglófono, com uma tendência militantemente política será representado por com Marcus Garvey, W. E. B. Du Bois, George Padmore, C. L. R. James e Kwame Nkrumah, entre outros. Mas para além destas distinções, há que considerar também os tráfegos, viagens e influências recíprocas, em suma, os processos de tradução (Edwards 2003) linguística e cultural – mais ou menos literais, mais ou menos equivocamente criativos – que também os caracterizam. Estes incluíram, por exemplo, a inspiração de Senghor na Harlem Renaissance, movimento a que W.E.B. Du Bois também se associou, para além de outras circulações que passaram também por Lisboa em 1923, no segundo Encontro Pan-Africanista em que Du Bois esteve presente (Tomás 2007: 66), até aos Encontros de Escritores Negros (1956 e 1958) que reuniram em Paris e em Roma intelectuais e activistas de proveniência diversa, para não falar da recepção das duas correntes entre os intelectuais africanos na Lisboa dos anos 1940 e 1950.

A justaposição destes textos permite confirmar estes processos de tradução e as interdependências entre W. E. B. Du Bois, Alain Locke e Aimé Césaire, passando por C. L. R. James e George Lamming— este último viajando entre o Gana em vias de se tornar independente e a Harlem dos anos 1950, para se localizar em Lisboa e Paris com Mário Pinto de Andrade. São estas afinidades, diferenças, cumplicidades e antagonismos que pretendemos assinalar de seguida, seguindo as linhas principais dos textos aqui apresentados.

 

Em 1903, W. E. B. Du Bois publica The Souls of Black Folks, obra que se revelaria fundamental a vários níveis. Com esse texto, cujo primeiro capítulo aqui se apresenta, Du Bois não só reconheceria o contributo fundamental da cultura negra americana para os seus Estados Unidos natais, como salientaria as afinidades entre esta e o respectivo lugar de origem. Dividido numa “dupla consciência” – pertencendo e não pertencendo ao país em que nascera, como consequência do racismo institucional que consagrava a divisão entre dois mundos, baseando-se na noção da inferioridade natural dos negros – Du Bois assenta a sua argumentação em diversos pontos. Por um lado, reivindica a recuperação de uma dignidade perdida, salientando o contributo específico da cultura africana para o continente americano; por outro, denuncia a ausência de direitos políticos e civis para os negros americanos, virando-se, posteriormente, para a luta contra todas as formas de opressão dos africanos, em África e na diáspora. Trata-se, contudo – e não obstante as diferentes ênfases – sempre de uma afiliação múltipla: por um lado, o reconhecimento da importância dos traços distintivos da cultura popular negra americana; por outro, o modo como ela transcende o continente em que se instalou e que inspirou.

Paul Gilroy teve ocasião de assinalar a importância das viagens de Du Bois na Europa e África (Gilroy 1993). Com efeito, o pioneiro do pan-africanismo não só desenvolveria uma obra decisiva para a noção de práticas culturais comuns e afinidades entre a diáspora negra e o seu continente de origem, como reconheceria, de certa forma, a impossibilidade de um regresso, para o que as suas viagens pela Europa, passando por Berlim, enquanto estudante, e, mais tarde, Paris, Londres, Lisboa, como militante do pan-africanismo, constituiriam momentos decisivos. Se bem que tenha acabado por optar pela nacionalidade ganesa, como outros representantes do pan-africanismo – foi o caso também de George Padmore–, a verdade é que, sobretudo em The Souls of Black Folk, Du Bois salientou a necessidade tanto da africanização da América, como da americanização da África, isto é, do reconhecimento do contributo dos descendentes de escravos para a cultura norte-americana, bem como dos seus laços com o lugar de origem. Tratava-se, assim, de uma afiliação a África, menos como regresso às origens do que como identificação diaspórica, com afinidades com a judaica, na sua vertente não-sionista, assim criando uma ligação mais a um lugar imaginado, com a consequente desterritorialização, do que a um território real. Tema que assumirá novas vertentes na fase marxista de Du Bois, quando este vier a reconhecer a importância de uma tradição radical negra – fruto das viagens das culturas africanas – insubsumível às reivindicações de uma tradição operária europeia e ocidental, dado que esta não reconhecia adequadamente a relação inexorável entre capitalismo e racismo, lendo assim na escravatura um momento inerente à modernidade e não uma excrescência anacrónica (Robinson 2000). Tal tema será, de resto, retomado por outros dois pan-africanistas, Eric Williams e C. L. R. James, como adiante se explicitará, assim se evidenciando o modo complexo como os escravos e seus descendentes pertenceram e não pertenceram a esse processo de emancipação – quer as Luzes, quer a irracionalidade do capitalismo – que a modernidade corporizaria.

É esse elemento que surge já em embrião no texto aqui apresentado, nomeadamente sob a forma da dupla consciência. Esta associa-se ao sentido de uma afiliação múltipla que permite não tanto conciliar, como pensar em tensão produtiva o reconhecimento de uma diferença, de uma cultura específica, de que há que se orgulhar, na ênfase colocada na pertença a múltiplos lugares e anseios, todos eles unidos pelo desejo da emancipação, da libertação e da dignidade humana. Assim, a diferença questiona e possibilita, ao mesmo tempo, o universalismo em que os direitos negados aos descendentes de escravos se haviam fundado, nomeadamente, como Du Bois o viria a explicitar, na Constituição Norte-Americana, garante dos interesses dos grandes proprietários esclavagistas (Robinson 2000). É aqui que se pode reconhecer não só o fio condutor que acompanhará as viagens geográficas e teóricas de Du Bois, mas também as afinidades entre negritude, pan-africanismo e humanismo, em suma, entre diferença e universalidade. Foi esse programa que justificou o seu sonho pan-africanista, como alternativa a uma emancipação que o seu país natal tardava em cumprir, com a organização de diversos congressos pan-africanistas, o primeiro dos quais em 1919, em Paris, retomando, de resto, ideais já desenvolvidos nas Antilhas, no Reino Unido ou em França. Estes movimentos haviam surgido, na sequência da participação de soldados oriundos das colónias europeias, bem como de afro-americanos na primeira guerra mundial. Esta experiência, à semelhança do que viria a suceder com a segunda guerra mundial, reforçaria o sentimento de exclusão, depois de promessas de igualdade e cidadania, assim contribuindo para esta nova forma de associação transnacional.

Hayden JeunesseHayden Jeunesse

A Harlém Renaissance evidencia outras interferências e trânsitos entre os autores e teorias aqui representados. Centro do orgulho de se ser negro, a Harlém dos anos 1920 não só afirmaria essa faceta como destacaria a noção de que esse processo de identificação correspondia, sobretudo, a constituir-se parte integrante e inspiradora de uma modernidade essencialmente cosmopolita. Tratava-se menos de se ser afro-americano, como o texto de juventude de W. E.B. Du Bois ainda sugere, do que de afirmar-se como globalmente local: Harlem emergia como centro do progresso e do modernismo, agora apropriado pelos que dele haviam sido escorraçados.

Nas artes, na literatura, canta-se a África na América, os trópicos em Nova Iorque (Claude McKay) ou o orgulho na diferença, celebrando-se uma cultura urbana vanguardista, de que o texto introdutório de Alain Locke (1885-1954) – negro americano, licenciado em filosofia por Harvard, com um percurso académico em Inglaterra e na Alemanha – à antologia O Novo Negro (1925) que aqui se inclui, é representativo. O mundo, a África, os negros em geral, têm de se modernizar, de aprender com esta vanguarda que descobre a modernidade, na sua associação entre modernismo e primitivismo, vanguarda que assume traços peculiares quando traduzida de um modo distinto, do outro lado do Atlântico. Se Michel Leiris celebrara o jazz, confessando que a sua ‘negrofilia’ (Clifford 1988) teria determinado a sua opção por se vir a tornar antropólogo – reconhecendo, mais tarde, a inadequação dessa fantasia primitivista (Leiris 1996 [1939]) – esse modernismo primitivista é criativamente apropriado do outro lado do Atlântico, sendo devolvido, de forma renovada à Europa. É em Paris, em Londres, em Lisboa, que a negritude e os laços diaspóricos se renovam e se descobrem afinidades, até então insuspeitas, entre os modernismos de vanguarda e a modernidade necessária a uma África colonizada.

Em 1936, ano atribulado na Europa, Alain Locke publicará dois textos, The Negro and his Music e Negro Art Past and Present 1969). O primeiro revela-se fundamental para se compreender estes tráfegos e interdependências, salientando-se a importância da música negra para a cultura norte-americana e internacional. Locke apresenta uma síntese das diferentes fases e influências dos sorrow songs e espirituais, passando pelos blues, até ao jazz, para analisar as relações da música negra americana com a música ocidental. Ao enfatizar a influência que o jazz teve na música europeia erudita – assim demonstrando o modo como este modelo ainda constituía a norma – Locke assinala também a riqueza harmónica e rítmica da música do continente africano e, de um modo mais interessante ainda, as afinidades entre a música negra americana e a praticada na diáspora – em Cuba, nas Caraíbas, no Brasil –, assim introduzindo uma noção de relações transnacionais e transculturais que antecipam o Atlântico Negro de Gilroy.

 No texto dedicado à arte, Locke retraça a história da representação dos negros na arte europeia, desde o século XVII, associando-a com os processos de colonização, passando pela descoberta da arte primitiva pelos modernistas europeus, contrastando-a com a presença escassa – obedecendo predominantemente a estereótipos negativos – dos negros na arte americana, até à respectiva reabilitação por artistas de origem europeia radicados nos EUA. Sucumbindo parcialmente a um exotismo que reaparecerá na negritude de um Senghor, Locke atribui, no entanto, aos contributos africanos uma modernidade que reclama igualmente para a produção dos novos artistas negros americanos. Assim, a identidade racial revela-se menos um regresso às raízes do que um modelo de vanguarda transnacional, tema que também ecoa na célebre introdução à antologia The New Negro, na sua associação entre a emancipação dos negros americanos, a industrialização e um sonho pan-africanista de auto-determinação dos povos colonizados, numa aliança que deveria ir para além da ‘raça’ e da nação.

É ainda esse misto de raízes e rotas (Gilroy 1993, Clifford 1997) que reencontramos nos intercâmbios e viagens dos principais representantes da negritude francófona, desenvolvendo-se entre a África, a Europa e a América.

Já anteriormente desenvolvida no Haiti por autores como Jean-Price Mars ou Antenor Firmin (Depestre 1980), a noção menos do orgulho racial do que do valor e da contribuição das culturas africanas para além do seu continente de origem tornava-se, cada vez mais saliente.

Será na Europa que Léopold Sédar Senghor (1906-2001) e Aimé Césaire (1913-2008) descobrirão, também em diálogo com a Harlem Renaissance, a sua negritude, negritude de que tomam consciência, menos através da militância política, do que de encontros e saraus literários, nomeadamente em casa das irmãs Jane e Paulette Nardal, tradutoras de Alain Locke, amigas de Claude MacKay, poeta da nostalgia das Caraíbas em Nova Iorque (Sharpley-Whiting 2002, Edwards 2003), mas também autor de Banjo, romance de denuncia do racismo europeu.. Trata-se, assim, de uma negritude que nada tem de exótico, como o demonstra não só a recorrente apropriação criativa do surrealismo por parte dos poetas da negritude, como o modo como as linguagens modernistas seriam utilizadas não so nesta fase, mas também posteriormente para desmontar a ideia das ilhas e da sua literatura como feita da “açúcar e baunilha”, “ turismo literário”, segundo Suzanne Césaire, mulher do poeta (apud Kesteloot 1967: 42).

Senghor e Césaire cruzar-se-ão pela primeira vez, em Paris, no liceu Louis Legrand, no ano de 1931. É aí que descobrirão a necessidade de afirmar a sua identidade negra, inspirando-se em modelos literários alternativos, como os que lhes chegavam de Harlem e dos seus poetas, vindo ambos a fundar o primeiro órgão da negritude, L’Etudiant Noir, em 1934, depois de Légitime Défense, publicação, de curta duração (1932) que agrupara estudantes das Antilhas que contestavam já as politicas de assimilação da Republica Francesa, em nome de uma negritude que, de característica humilhante, adquiria conotações positivas (Kesteloot 1967, Jules-Rosette 1998).

Apesar das distintas experiências e origens – sendo Senghor senegalês, Césaire oriundo da Martinica – essas diferenças, como muitas outras que se firmariam aos longo dos anos, nunca poriam em causa a respectiva amizade. Senghor evoluiria de uma negritude militante para uma noção de crioulidade e de assimilação como processo de apropriação criativa, que lhe permitiria reconciliar-se com a francofonia, recusando sempre qualquer via marxista, pese embora a sua adesão a um modelo de socialista mais local do que universal. Já Césaire, depois da descoberta da sua negritude em França, vira-se para o internacionalismo comunista, de que, contudo, se viria a distanciar na célebre “Carta a Maurice Thorez” (1957), ao reconhecer as limitações que essa abordagem desracializada apresentava para os negros franceses e a causa anti-colonial. Mais tarde viria a admitir (Cooper 2005) as vantagens de uma não-independência para a sua Martinica natal, tornando-se, tal como Senghor, antes da independência do Senegal, deputado francês desse novo território ultramarino, o que não invalidaria a sua permanente militância pela causa da diferença, nomeadamente no contexto republicano francês, acentuando a necessidade de se acrescentar à tríade liberdade, igualdade, fraternidade, a causa da identidade (Césaire 2005).

obra de Dominique Zinkpéobra de Dominique Zinkpé

É exactamente a diferença que constitui o tema central do texto de Senghor aqui apresentado “O contributo do homem negro” (1939).

Contra as visões pejorativas de África e dos seus habitantes, que Hegel consagrara nas suas Lições sobre a Filosofia da História, sintetizando selectivamente (Buck-Morss 2009) estudos e opiniões desenvolvidos, sobretudo, ao longo do século XVIII (Sanches 2002), Senghor inventa uma africanidade que se define como o oposto das Luzes, em que a comunidade, a partilha, o sentimento, o ritmo, a totalidade concreta se opõem às abstracções racionalistas, cunhando a célebre frase de que, se a razão é helena, o sentimento é africano. O texto contém propostas problemáticas, justamente criticadas, segundo a ideia de que Senghor se filiaria numa tradição romântica diferencialista que reproduziria, em última instância, os estereótipos que o Ocidente criara dos negros (Depestre 1980, Appiah 1985, Mbembe 2010). Mas esta questão pode ser vista de forma mais matizada, se se considerar a importância dessas tendências em contextos muito diferenciados, desde a afirmação de uma localidade ameaçada por uma civilização política e economicamente niveladora, como sucede com Herder – numa Alemanha ainda inexistente no século XVIII –, até ao III Reich, em que o diferencialismo assumiria formas claramente segregacionistas. Estava-se em vésperas da segunda guerra mundial, em que Senghor também participaria, lutando no exército francês. Por outro lado, há ainda a considerar o modo como a negritude em Senghor possui sobretudo características culturais, não excluindo de modo alguma a capacidade de processos de apropriação criativa de que o texto aqui apresentado é também exemplo.

Com efeito, e mais relevante do que estes aspectos, para a presente proposta, é o modo como, sobretudo na parte final do seu texto, Senghor utiliza a música – citando, de resto, Alain Locke – e a literatura afro-americanas para caracterizar a negritude que revela ser simultaneamente arcaica/primitiva e moderna, ao mesmo tempo que recorre a vários campos (a história, a antropologia, a filosofia e a arte) para celebrar uma diferença que não exclui os intercâmbios transculturais – para evocar um termo cunhado por outro autor interessado em redescobrir a africanidade das Antilhas, Fernando Ortiz. Note-se, de resto, o papel fundamental da experiência cubana, em geral, na Harlem Renaissance e de Nicolás Guillén, em particular, para o movimento da negritude e, por essa via, a sua influência nos futuros frequentadores da Casa dos Estudantes Império, em Lisboa (Andrade, Laban 1994: 77) – o que revela como essas narrativas de identidade superavam claramente as línguas nacionais impostas pelos processos coloniais, agora criativamente reapropriadas por esses processos de transculturação.

Mas eram outras as Antilhas, menos crioulas, as que, em Paris, as irmãs Jane e Paulette Nardal evocavam, antecipando, de resto, as posições de Césaire e Senghor que aquelas terão influenciado (Sharpley-Whiting 2002). Reunindo em sua casa a maior parte dos imigrados das colónias que em Paris prosseguiam os seus estudos, ambas as irmãs manifestarão interesse pelo programa modernista proposto por Alain Locke na sua antologia The New Negro cujo prefácio a primeira chegou a verter para Francês (Edwards 2003). Note-se também o seu papel marcante na elaboração de um ideário negro francófono, de uma forma pioneira, antes do emergir, nos anos quarenta, da mítica revista Présence Africaine, fundamental, também para os estudantes africanos lusófonos, na Lisboa dos anos quarenta e cinquenta.

Com o texto de George Lamming, “Presença Africana” (1960), extraído do volume The Pleasures of Exile (1960), situamo-nos na década de 1950. O texto descreve uma viagem desde o Gana, entretanto independente à Harlem dos anos cinquenta, assim enfatizando a relevância destes tráfegos. Num registo pessoal e autobiográfico, o texto recusa as grandes abstracções políticas, centrando-se em experiências individuais, a partir das quais lê as afinidades e as diferenças entre a sua experiência de colonizado e a realidade africana, num momento de euforia independentista, atento às cumplicidades e discriminações que ainda atravessam a antiga colónia inglesa. Lamming sublinha as diferenças entre a população local e a da suas Caraíbas natais, esta última forçada a emigrar, privada de uma língua e de uma história próprias. Mas o viajante reconhece, no Gana, afinidades e diferenças, ao mesmo tempo que se sente estranho e familiar numa Harlem agora já distante das promessas utópicas dos anos vinte. Para Lamming, essa sensação de errância fatal é algo de positivo, sao os “prazeres do exílio”, ao mesmo tempo que acentua a complexidade das relações entre Próspero e Calibã, tema a que regressa recorrentemente no volume para analisar, as relações e interdependências entre colonizador e colonizado. Dito de outro modo: a sua leitura da realidade africana permite ver como o narrador constrói processos de identificação complexos que o levam a aproximar-se e a distanciar-se desse lugar de origem, ao mesmo tempo que a experiência nos Estados Unidos o leva a acentuar as diferenças entre a sua identidade caribenha e a sua experiência inglesa, salientando-se as maiores afinidades com a metrópole colonial que o marcara decisivamente. São as aporias e ambiguidades dessa elite (Robinson 2000) que o texto encena de forma sedutora e irreconciliada, ao mesmo tempo que sugere o modo como Calibã se apropriou de modo eficaz da cultura metropolitana, sem que as relações de assimetria radical tenham sido efectivamente questionadas.

A multiplicidade de perspectivas surge igualmente nas propostas do texto de C. L. R. James aqui apresentado e que retraça os acontecimentos que ligam a América a África e à Europa. Nascido, como Lamming, em Trinidad, a sua biografia caracteriza-se também por constantes viagens entre as Américas e a Europa, criando laços e relações entre a diáspora africana, bem como por uma riqueza de experiências, cuja evocação pormenorizada o âmbito desta introdução tem de dispensar. Tendo partido para Londres nos anos trinta – optando também ele pelos “prazeres do exílio”, a fim de realizar o seu sonho de criação literária como muitos outros seus compatriotas, entre eles Lamming–, James contactaria aí com os círculos de Bloomsbury (James 2003), mas também com George Padmore (1903-1959), um dos principais representantes do pan-africanismo. Será na década de 1930 que escreverá Black Jacobins, texto em que a Revolução no Haiti (1791-1804) – nas palavras de James “a única revolta dos escravos bem-sucedida” – surge como um dos grandes acontecimentos de uma revolução mundial. Adepto do trotskismo, durante o longo período que viveu nos EUA (1938-1953) desenvolverá a noção, contra os dogmas dos partidos marxistas, da importância dos negros americanos para a revolução mundial e da afinidade da sua luta com a causa anti-colonial, como o tornaria claro, em “Black Power” de 1963, onde tece a genealogia que vai de Garvey e da negritude, de Du Bois e Fanon a Stokely Carmichael, passando por Malcom X e Lenine.

De regresso à sua Trinidade natal, a convite de Eric Williams, seu discípulo, James, em breve se desiludirá com a nova nação independente. Regressado a Londres, retomará os ideais pan-africanistas que opõe ao programa limitadamente nacionalista que via surgir nas Caraíbas, fragmentando um espaço que se propõe re-unir, como sugere no seu novo posfácio a The Black Jacobins de 1936 (Scott 2007).

Escrito como apêndice à segunda edição desta obra, o texto aqui apresentado estabelece, agora à luz do ano da sua reedição em 1963, relações fundamentais entre a revolta no Haiti – entendida agora como acontecimento maior do pan-africanismo –, a herança das Luzes e da Revolução Francesa e os projectos anti-colonialistas do século XX. Construindo uma genealogia que vai de Toussaint-L’Ouverture a Fidel Castro, passando por Garvey, Césaire, Padmore e a sua influência nos líderes do continente africano, como Nyerere e Nkrumah, James salienta a especificidade da contribuição caribenha para uma modernidade plena e inclusiva. Ao mesmo tempo enfatiza as características locais de um movimento ecuménico iniciado com a Revolução Francesa, mas transformado nas colónias. Relevante, ainda, é o modo como James sublinha a importância de um lugar periférico para uma utopia de cidadania igualitária que assim desloca e amplia a Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão, revelando que, se a modernidade ainda continua por cumprir (Habermas 1985), esta não tem de ser forçosamente eurocêntrica e que a universalidade não tem de ser incompatível com as aspirações locais que também são globais. A prova disso é a influência desse acontecimento determinante – embora silenciado no imaginário ocidental – para a política napoleónica em relação à escravatura, tal como hipoteticamente para o pensador da modernidade por excelência, Hegel (Habermas 1990), como Susan Buck-Morss o sugere (2009), ao assinalar o papel central desse acontecimento na construção do conceito da dialéctica do senhor e do servo.

Ao reconhecer o modo como a modernidade também faz parte do mundo colonizado, James insiste menos numa abordagem eurocêntrica (Scott 2004), do que no facto de esta não ser mera parte do Ocidente, dada a respectiva apropriação criativa e os desafios colocados a esse projecto pelas reivindicações dos espaços periféricos. São estas, com efeito, as propostas mais inovadoras de James, como que invertendo a marcha da história que deixa de se fazer da Europa para o resto do mundo. Terminando com uma alusão à literatura local, James imagina – a semelhança de outros autores das Caraíbas, como José Martí, René Depestre ou Roberto Fernandez Retamár, para citar os mais conhecidos – um projecto de federalismo político e cultural caribenho, assente numa comunidade de interesses e aspirações, para além das línguas coloniais, sem que as literaturas europeias, determinantes, de resto, para a formação de James (como o torna claro no texto Beyond a Boundary de 1963), sejam excluídas (Said 1994).

De assinalar ainda a forma como o texto salienta as afinidades entre negritude e pan-africanismo, nomeadamente o modo como estes se manifestaram, sobretudo, em autores de origem caribenha que, na senda de L’Ouverture, líder da Revolução do Haiti e da libertação dos escravos, recuperavam a sua africanidade não só como elemento identitário, mas também, e sobretudo, como forma de reivindicar uma ordem social, política e económica mais justa. E é também nas Caraíbas que James encontra um modelo racial que não exclui a participação de todas as ‘raças’ nessa luta comum, como o lê tanto nos líderes brancos locais, como na poesia de Césaire. Tal questão também serve para assinalar o modo como o projecto da negritude não se limitou a ser uma mera celebração essencialista da ‘raça’, mas antes a reivindicação de uma vertente identitária como garante de uma igualdade efectiva para além da ‘raça’ e da cultura.

São temas afins os que emergem no percurso de Mário Pinto de Andrade, cujo prefácio à antologia Poesia Negra de Expressão Africana (1975) aqui apresentado pode ser entendido como estando situado na charneira entre as questões abordadas por estes textos e as enunciadas pelos ensaios reunidos na segunda parte deste volume.

Pinto de Andrade é mais um exemplo das possibilidades destes trânsitos e viagens de teorias para além das línguas coloniais herdadas (Andrade, Laban 1997: 67-102). Com efeito, ainda antes da sua partida para Paris, em 1954, Pinto de Andrade fora um dos fundadores do Centro de Estudos Africanos em Lisboa. Mas, já antes, o grupo de jovens negros ‘assimilados’ aí reunidos – e que incluíam, entre outros, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Noémia de Sousa, além do próprio Andrade, que se haviam cruzado em Lisboa, na Casa dos Estudantes do Império – haviam encontrado na negritude e no pan-africanismo alternativas a uma política de assimilação forçada e uma forma de recuperar uma identidade de que podiam orgulhar-se, a sua “reafricanização”, para usar uma expressão cunhada por Amílcar Cabral (Tomás 2007: 72 ss., ver ainda Cabral neste volume).

Serve ainda este dado para questionar mitos de mestiçagem exemplar que o Estado Novo ajudaria a cimentar e que o próprio Partido Comunista Português então partilhava (Andrade, Messiant 1999: 201). De salientar ainda que foi na década de 1950, com o emergir dos primeiros movimentos de auto-determinação, a que se seguiu a luta armada – também nas colónias portuguesas – , que o Império Português redesignaria as suas colónias de ‘províncias ultramarinas’, abolindo-se o estatuto do indígena, ao mesmo tempo que se recorria ao lusotropicalismo de Gilberto Freyre para sancionar as politicas coloniais portuguesas, entretanto condenadas a nivel internacional. De resto, Freyre apressar-se-ia a colaborar com a retórica de um colonialismo português mais brando e mestiço (Castelo 1999, Almeida 2000, Barbeitos 1999) e que Andrade teria ocasião, mais tarde, de denunciar explicitamente (Andrade 1955) – tal como Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane, este último num dos seus textos aqui incluídos.

Mário de Andrade é, sem dúvida, uma das figura mais representativas das tendências tramsnacionais entre os africanos oriundos de colonias portuguesas. Emigrando em 1954 para Paris, Andrade teria a possibilidade, como ele próprio o referiu, de, nessa “capital africana” (Messiant 1999: 205), se “abrir ao mundo”, “descobrir um ritmo africano”, a “África na sua globalidade (Messiant 1999: 203). Foi enquanto secretário de redacção e colaborador directo do fundador da revista Présence Africaine, Alioune Diop, que conheceu os mais importantes intelectuais negros em Paris, bem como os seus aliados, entre os quais Sartre. Por outro lado, o 1º Congresso dos Escritores Negros em Paris, no ano de 1956, seria determinante para o seu pensamento, sobretudo, as intervenções de Césaire e Fanon (Andrade, Messiaent 1999, Andrade, Laban 1997: 130ss.).

Abordando, neste prefácio, o tema da poesia escrita em Português em África, Pinto de Andrade inclui, tal como já sucedera na colectânea anterior, Antologia de Poesia Negra de Expressão Portuguesa (1958), os autores cabo-verdianos que não considerara no Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, que, em 1953, co-organizara com Francisco José Tenreiro, associando-os, agora, sobretudo, a uma negritude diaspórica. Distingue, porém, agora a fase mais passiva e apolítica dos claridosos de uma poesia política e socialmente empenhada, que, seguindo as propostas de Amílcar Cabral, pretendia também recuperar a africanidade do arquipélago. Assinalando, embora, a relevância da negritude como elemento identitário, ela surge, agora, superada através de uma dimensão nacional – a particularização – para se exprimir, depois de 1958, no apelo dos poetas à acção. Tal posição estaria mais de acordo com os movimentos de luta pela libertação – que se reclamavam crescentemente da via proposta por Fanon, em que a violência era a arma necessária para se pôr cobro ao colonialismo (Andrade, Laban 1997: 150) –, do que com qualquer teoria da mestiçagem integradora, como sugerido nas propostas de Senghor. Com efeito, Fanon viria a desempenhar um papel decisivo no contexto da luta armada pela independência de que Mário Pinto de Andrade e, sobretudo, Amílcar Cabral seriam alguns dos principais protagonistas e em quem exerceria uma influência directa (Tomás 2007).

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Por outro lado, o texto fornece uma breve história da recepção da negritude e pan-africanismo, no contexto dos autores africanos de língua portuguesa, desses tráfegos e intercâmbios que se começou por assinalar. Mas, sobretudo, o texto revela tambem a importancia central da literatura – da cultura – para a constituicao de uma identidade nacional e a afirmacao do direito a independencia.

Entre os primeiros textos aqui reunidos nesta primeira parte e este ultimo texto de Pinto de Andrade, insinuam-se transformacoes que a segunda parte ajudara a entender.

 

2. Poder, colonialismo, resistência trans-nacional

Os movimentos anti-coloniais, embora caracterizados pelos traços transcontinentais e transnacionais acima assinalados, não podem ser, contudo, dissociados de uma forte componente nacionalista que também os caracterizará. Esta tendência distingue-os da maior parte das abordagens pós-coloniais, em que a crítica da nação é uma constante, face à desilusão perante as utopias nacionalistas ou à globalização que, de um modo mais ou menos radical, também as tem de questionar ou reforçar. Não é, assim, acidental que a questão das identidades tenha ganho renovada virulência ou se tenha vindo a assistir a reinterpretações mais ou menos estimulantes desses processos desde finais do século XX, de que os Estudos do Subalterno na Índia e na sua diáspora serão os mais importantes (Guha, Spivak, 1988).

Interessante será reler as abordagens que, no contexto da luta anti-colonial, se debruçaram sobre questões de cultura e identidade, desenvolvendo abordagens complementares às anteriormente apresentadas

A antropologia, como ciência, de um modo mais ou menos consistente, ao serviço da administração colonial, ocupa aqui um lugar proeminente. Não é certamente por acaso que Chinua Achebe termina o seu romance Things Fall Apart, resposta a Coração das Trevas de Joseph Conrad, com a referência a uma etnografia, ou que Yambo Ououloguem se reporta à figura do proto-antropólogo Leo Frobenius em Le Devoir de Violence, através da personagem Shrobenius, para caricaturar esse substituto do missionário, agora coleccionando ‘arte africana’, em vez de destruir ‘ídolos pagãos’.

Contudo, a verdade é que foi na antropologia que algumas críticas mais contundentes ao colonialismo começaram a surgir. O texto de Michel Leiris aqui apresentado, “O etnógrafo perante o colonialismo” (1950), é emblemático neste sentido. Seduzido pela negrofilia dos anos 20, mas também em contacto com os surrealistas adeptos do primitivismo, o antropólogo-escritor revelaria na sua etnografia-poética Afrique Fantôme (1934) mais as suas hesitações interiores do que dados sobre as culturas visitadas, salientando, contudo, os elementos arbitrários de uma expedição destinada a coleccionar e a saquear cultura. Recusando-se a prosseguir a etnografia do ‘Outro’, Leiris optaria pela persistente auto-observação em La Règle du Jeu (1938-1976). Contudo, a emergência dos movimentos anti-coloniais e o contacto com intelectuais como Césaire possibilitariam uma reaproximação à antropologia numa perspectiva crítica.

Fundamental é o modo como Leiris insiste na importância da atenção ao papel parcial do antropólogo, em contextos de poder desigual. De salientar ainda a forma como inclui a vertente da mudança histórica contra as abordagens deliberadamente a-históricas de um Lévi-Strauss. Leiris assinala o risco do exotismo que cega o observador às mudanças, vendo nos ‘assimilados’ críticos um ‘objecto de estudo’ ideal, ao mesmo tempo que salienta a inexistência de uma antropologia dos europeus por parte de africanos.

Entretanto Maurice Delafosse (1870-1926) descobrira, nos anos 1920, a história da África, com a sua nobreza, anterior a outros contactos e processos de transculturação, assim criando uma ideia de pureza, com afinidades com a negritude e o culto da negrofilia, temas rapidamente recuperados pelo discurso colonial em França. Com efeito, a desconfiança gerada pelos congressos pan-africanistas e pelos seus adeptos – entre os quais se contavam alguns ‘assimilados’ ocidentalizados – levara à defesa do relativismo cultural e do direito à diferença (Edwards 2003), o que aponta para a complexidade das posições que só adquirem a sua dimensão efectiva quando adequadamente contextualizadas.

Significativamente, Leiris insiste na necessidade de que, em vez das culturas ‘autênticas’ e ‘incólumes’ que deleitam jovens antropólogos, se reconheça a relevância dos mecanismos de transformação, ou seja, se veja a cultura como mudança e a sociedade colonial como um todo, incluindo na sua análise as relações entre colonizadores e colonizados, numa perspectiva que prepare, mas não substitua, o direito dos povos à auto-determinação. Nesse sentido, Leiris como que antecipa muitas das questões mais tarde introduzidas pela chamada antropologia ‘pós-moderna’ (Sanches 2005) – em que foi, de resto, uma figura particularmente influente –, tais como o papel da subjectividade do etnógrafo, os processos de mudança associados ao estudo da diferença, bem como a fatalidade da hibridização ou transculturação. Com efeito, para Leiris a cultura é um processo dinâmico de reinvenção e adaptação de práticas quotidianas a factores endógenos, em que todos são actores, pese embora a desigualdade gerada pelo contexto do poder colonial.

Georges Balandier (n. 1920), autor paradoxalmente esquecido nas abordagens pós-coloniais – embora agora recuperado numa França finalmente mais receptiva a esta tendência (Smouts 2007) – introduz em “A situação colonial” (1951) uma perspectiva decisiva. Esta permite estudar as interacções entre estruturas de domínio colonial e as culturas e sociedades colonizadas (2003: 33 ss.), nomeadamente – e à semelhança de Leiris –, a necessidade de o colonialismo ser analisado como um todo, permitindo, assim, entrever as relações de poder que o constituem, bem como as complexidades que o caracterizam a diversos níveis.

Com efeito, Balandier parte da necessidade de se estudar menos as sociedades tradicionais do que o colonialismo como facto total, na senda de Émile Durkheim, assim possibilitando um olhar mais diferenciado – e consequentemente mais complexo – sobre as relações entre ambas as partes envolvidas. A situação colonial, definida como essencialmente “patológica”, caracteriza-se por uma relação predominantemente conflitual, em que os seus momentos mais ou menos explicitamente violentos são distintamente interpretados pelos ‘coloniais’ e ‘colonizados’, sendo, contudo, essa relação sempre fundada numa desigualdade estrutural. Esta tem sempre de ser ideologicamente sancionada, segundo a ideia de uma inferioridade cultural ou racial dos colonizados como momento inerente a uma ‘missão civilizadora’ ou à afirmação da necessidade da sua ‘modernização’.

Para o seu estudo importa reter, escreve Balandier, os contributos da história, economia, sociologia, psicologia social e antropologia, articulando-os entre si, por forma a ter um entendimento mais substanciado das diversas tendências, desigualdades e regularidades internas desse sistema. O estudo das culturas locais tem assim de tomar em consideração as transformações históricas, económicas e sociais introduzidas pela presença colonial, em que os processos de discriminação racial e étnica assumem configurações distintas de outras sociedades, como, por exemplo, as colónias americanas em que a escravatura foi determinante. É esta perspectiva inter e transdisciplinar que permite um olhar distanciado e crítico, atento às transformações e desestruturações que a situação colonial acarreta para todas as partes envolvidas, argumentando-se menos a partir de um ponto de vista ético, do que de uma perspectiva atenta ao modo como o poder é constituído. Deste modo, Balandier antecipa os estudos recentes sobre colonialismo, surgidos depois do fim das utopias anti-coloniais (Cooper 2005).

Mas é menos esse olhar, envolvido e distanciado, que é privilegiado por Aimé Césaire no seu Discurso sobre o Colonialismo (1978 [1950]), cuja versão portuguesa, da autoria de Noémia de Sousa, e prefaciada por Mário Pinto de Andrade, seria publicada nos anos 1970 em Portugal. NesTe texto, escrito depois da segunda guerra mundial, o autor de Cahier d’un retour au pays natal (1939) questiona uma Europa incapaz de reflectir sobre a violência do seu passado colonial e os genocídios dele resultantes. Além disso, Césaire enfatiza o elemento racial presente na unanimidade da condenação do Holocausto num continente que assim deixava de se rever na sua superioridade ‘civilizacional’. O problema que Césaire sublinha é o facto de essa rejeição só ter surgido face ao genocídio de populações europeias, não arrastando consigo a condenação de outros actos semelhantes perpetrados no espaço colonial, o que revela finalmente que, dois anos depois da publicação na UNESCO de Racismo e Ciência (1951) – de que os célebres textos de Claude Lévi-Strauss, Race et Histoire e de Michel Leiris, Race et Civilisation são os mais conhecidos –, a ‘raça’ persistia, silenciosa, como factor de exclusão da maior parte da humanidade e de incapacitação de uma revisão efectiva da história.

Não recusando os contactos entre culturas, Césaire insiste, contudo, no modo violento e desigual como esses intercâmbios se processaram, assinalando ainda a forma como o colonialismo não só introduziu a barbárie no mundo colonizado, mas também nos colonizadores. Com a sua denúncia da presença de resíduos de nazismo na Europa de Schuman e Adenauer – quando se davam os primeiros passos para aquilo que se viria a designar de ‘construção europeia’ – o texto pode ainda ser lido como uma forma de assinalar o modo como essa exigência persiste actualmente numa Fortaleza Europa que, garantindo a mobilidade interna, persiste em recusar a abertura a um mundo que ainda sofre de desestruturações também criadas pela situação (neo)colonial.

“Cultura e Colonização”, como já foi assinalado, corresponde à intervenção de Césaire em 1956 no 1º Congresso de Escritores e Artistas Negros realizado em Paris e de que resultaram também as intervenções de Richard Wright e Frantz Fanon incluídas neste volume. Note-se que além de estes e de George Lamming, Mário e Joaquim Pinto de Andrade também marcariam presença nesse encontro, embora se estivesse ainda numa fase embrionária da organização dos movimentos de libertação angolana, tendo o Mário Pinto de Andrade colaborado, enquanto redactor da revista Présence Africaine, na respectiva preparação.

Neste congresso, em que W.E.B. Du Bois se viu impedido de participar pelo facto de lhe ter sido recusado pelo governo dos EUA um passaporte, as clivagens de um encontro baseado numa identidade ‘racial’ tornar-se-iam óbvias. Entre as visões de uma negritude mais conservadora ou arcaica, mas também mais conciliadora, como a defendida por Senghor, a denúncia das relações entre colonialismo e racismo, como seria o caso de Césaire e Fanon, as posições mais moderadas dos representantes negros americanos, ou as idiossincrasias de Richard Wright, o encontro evidenciaria rupturas, marcadas já pelo emergir da crise argelina e as formas de luta armada que viriam a ser determinantes para o processo de auto-determinação das então colónias portuguesas. A negritude não só era substituída pela luta política pela emancipação, como tendia, nalguns casos, a africanizar-se, a territorializar-se.

O texto de Césaire revela o modo como as viagens das teorias as afectam, transformam, as põem à prova, em contextos diferentes. A unidade do povo negro não é aqui unidade racial, nem territorial, mas unidade dos colonizados, da África às Américas. O colonialismo é, como Balandier o afirmava, o facto total que nada deixa incólume. Mas Césaire centra-se no modo como essas transformações não dão azo a mudanças culturais pacíficas, mas como estas – afirma, seguindo Malinowski – se fazem através de processos de desigualdade violenta. Assim, as culturas negras vêem-se destituídas de vitalidade, condenadas que se encontram a morrer e a estiolar, como Fanon também o denuncia no texto apresentado ao mesmo congresso. A hibridização – conceito popular na teoria pós-colonial, mas teorizada há muito pela antropologia norte-americana, através do conceito de aculturação de Melville Herskovits (1895-1963), que viria a influenciar a teoria do lusotropicalismo – é aqui recusada, se entendida como universal ou se se revelar indiferente aos processos assimétricos que caracterizam a situação colonial. Pois a apropriação criativa é impossível nesse contexto. Só em liberdade poderão os processos de empréstimo e contaminação dar os frutos que lhe são atribuídos, e não como uma vantagem universal, como actualmente as abordagens inadvertidamente ‘pós-coloniais; o pretendem. Questão ainda a considerar, quando se acusa levianamente de essencialistas os que ainda defendem a sua cultura como forma de protesto contra processos de exclusão social e racial.

A solidariedade de todos os povos colonizados é também abordada por Richard Wright no texto que apresentou ao mesmo Congresso, mas com um enfoque radicalmente diferente. Anos antes desta intervenção, já Wright, afro-americano auto-exilado na Europa, procedera no posfácio a Black Power (1954) a um balanço da sua visita ao Gana em vésperas de independência. Nesse ensaio com que encerra o seu relato, Wright propõe uma perspectiva reflectida sobre as experiências acumuladas nessa viagem. Dividido entre a descoberta das suas ‘origens’ que encontra – e não encontra – numa África que visita pela primeira vez, Wright hesita perante o apelo de uma independência e o tradicionalismo que também encontra na prática política de Kwame Nkrumah. Distanciando-se crescentemente de uma África que define como primitiva, tribal e atrasada, Wright reclama, nesse epílogo dedicado ao líder do pan-africanismo, a modernização e militarização da África, como única forma de conquistar a autonomia para o continente. Iniciando-se com a evocação das suas visitas aos fortes de onde os escravos haviam partido para as suas viagens forçadas pelo Atlântico Negro, o seu descendente cria desse modo uma afinidade entre essa exploração ocidental e a cumplicidade dos chefes tribais locais, assim associando o peso contraditório do progresso europeu com o tradicionalismo africano que denunciará no seu texto. São menos algumas das propostas – discutíveis – do que as hesitações patentes no texto que se revelam mais estimulantes, ao mesmo tempo que sugerem um convite a uma leitura que coteje esta utopia com a complexidade pós-colonial (Gilroy 1993, Diawara 2000). De salientar, contudo, o modo com Wright rejeita a possibilidade de uma modernização da África em colaboração com um Ocidente moderno, ao mesmo tempo que, considerando uma via local, persiste em acreditar no sonho da modernidade.

São estas também as posições defendidas no ensaio aqui traduzido, “Tradição e Industrialização”, apresentado ao Congresso de Escritores Negros em Paris, no ano de 1956. Note-se que, em Paris, Wright começara por contactar, não com Senghor ou Césaire, com quem não partilhava afiliações culturais – a negritude –, nem políticas – o comunismo –, mas com Sartre, Beauvoir e Camus. Fora através de Sartre que conhecera Alioune Diop, fundador da revista Présence Africaine, de que se tornaria colaborador em 1947 (Fabre 1986). Salientando a sua consciência dividida, Wright assinala o modo como pertence e não pertence ao Ocidente. Enquanto negro, sempre deteve de um sentido de crítica distanciada em relação a estas tradições, o que lhe conferiria maior liberdade de pensamento e empatia com todas as vítimas do Ocidente. Mas estaria, porém, excessivamente ligado a esse mesmo Ocidente, ao seu processo de modernização e secularização, para se poder identificar com as visões de Senghor. Mesmo o racismo, que denunciara em Native Son (1940) e Black Boy (1945), surge-lhe agora como secundário, em claro contraste com a posição da delegação norte-americana – entretanto representada pelos seus elementos mais conservadores, para quem as questões da segregação racial eram prioritárias. Com efeito, os representantes dos EUA recusariam as posições de Wright que reivindicava novas formas de solidariedade anti-colonial, baseadas, porém, na sua experiência desterritorializada. Trata-se de uma forma de exílio modernista, centrado num individualismo radical que o leva a identificar-se com, e a defender, as elites ocidentalizadas do Terceiro Mundo. Note-se que esta visão era comum a George Padmore e a outros pan-africanistas, tornando-se aqui patente a tensão entre a negritude francófona e o pan-africanismo anglófono, que, contudo, não são totalmente incompatíveis, como o demonstra a intervenção de Césaire, com a qual Wright se identificaria.

É também a questão do racismo e a sua relação com o colonialismo que será abordada por Frantz Fanon no texto aqui incluído: “Racismo e cultura”. Esta intervenção constituiu, com “Cultura e Colonização” de Aimé Césaire, uma das tomadas de posição que mais impressionaram o jovem Mário de Andrade (Andrade, Laban 1997: 131-136). Nascido, como Césaire, na Martinica, Fanon reconhecera o estigma racial em França. Testemunho dessa situação é o livro aforístico de juventude, Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), em que Fanon considera a sua relação ambivalente com a negritude, recusando-se a abdicar, quer dos seus direitos de cidadão francês, quer da necessidade de denunciar o racismo, hesitando entre a evocação do peso “epidérmico” da raça e a vontade de dela se libertar, através de uma humanidade plena. Mas trata-se de uma humanidade que não pode iludir a importância do corpo (De Lauretis 2002), o que leva à recusa de uma superação hegeliana da negritude como mero momento numa dialéctica, tal como proposto por Sartre em “Orfeu Negro”, buscando antes uma libertação efectiva que Fanon virá a encontrar na luta anti-colonial na Argélia.

Os Condenados da Terra (1961), texto escrito pouco antes da sua morte, não constitui um hino à violência – como Sartre quase masoquistamente o sugere no prefácio que antecede a obra. A verdade é que a ênfase se coloca agora na nação, como força aglutinadora, baseada no campesinato, alternativa revolucionária ao proletariado urbano e assimilado. Mas, para que esse movimento seja eficaz, há que escapar tanto à assimilação – que corre o risco de prolongar a tutela (neo)colonial – como às amarras do tribalismo e da tradição, aspecto que ecoa algumas das posições de Wright. É nesse sentido que ambos os textos de Fanon, Pele Negra e Máscaras Brancas e Os Condenados da Terra dialogam também com a herança da negritude, para a questionar.

Em “Racismo e cultura”, Fanon recusa o racismo como algo de inato à ‘natureza humana’, como tem vindo a escrever-se recentemente (Stolcke 1994), sublinhando que ele é consequência – e não causa – da “situação colonial”, forma de criar desigualdades estruturais legitimadas por uma suposta diferença radical inata entre ‘raças’ ou culturas.

A luta continua, filme sobre as eleições em MoçambiqueA luta continua, filme sobre as eleições em Moçambique

Historiando o percurso que vai do racismo biologicamente fundamentado a outras formas de culturalismo diferencialista, Fanon sublinha a forma como a discriminação racial assume formas mais ou menos veladas, mas não menos presentes em situações de desigualdade estrutural. Relacionando os efeitos do racismo a nível transcontinental, nomeadamente ao estabelecer paralelismos entre a situação europeia e a norte-americana – para o que se baseia também, como já o fizera em Pela Negra, Máscaras Brancas, na obra de Wright – o texto enfatiza igualmente a forma como a dominação colonial leva ao estiolamento das culturas oprimidas que surgem “mumificadas”. Assim, as tradições não podem ser recuperadas pelo colonialismo cujo racismo não impede, antes pode estimular, a defesa da diferença, enquanto forma de exotismo. Recuperando críticas presentes em Pele Negra, Máscaras Brancas, que virá a retomar também em Os Condenados da Terra, Fanon assinala a necessidade e os riscos de um regresso às tradições fragmentadas, isto é, sem relação com as práticas contemporâneas.

A alternativa ao racismo reside, assim, menos na defesa da diferença racial, do que na luta pela libertação que permitirá uma renovação da cultura ao serviço dessa causa, conferindo-lhe nova vida. Nesse sentido, a cultura nacional constitui o garante dessa luta anti-racista, pois só ela permitirá um intercâmbio efectivo entre nações libertadas. Por outro lado, o nacionalismo não colide com o pan-africanismo, trata-se antes de um estádio necessário, na medida em que permite uma aliança em termos igualitários, do mesmo modo que é a libertação que permitirá a constituição de um universalismo efectivo. Ao associar as relações entre raça e cultura, fundadas numa relação de desigualdade estrutural, Fanon assinala um elemento que permanece de uma contemporaneidade tanto mais perturbadora na “Europa do apartheid” (Balibar 2004) apenas pretensamente liberta de preconceitos coloniais. Fica, contudo, por questionar até que ponto a nação permite  transcender o racismo, também naqueles estados-nação nascidos dos processos de libertação, depois de desmentidas as utopias nacionalistas através das elites cujo papel Fanon começava também já a entrever.

Por sua vez, no seu prefácio a Os Condenados da Terra de Fanon, Sartre distanciara-se de “Orfeu negro”, o ensaio que constituíra a introdução à Antologia de Poesia Negra e Malgaxe organizada por Léopold Sédar Senghor em 1948, outro texto fundamental para os jovens africanos reunidos em torno da Casa do Império e do Centro de Estudos Africanos na Lisboa dos anos 1950. Enquanto, no seu prefácio à antologia de Senghor, Sartre evidenciara a descoberta da negritude, da ‘raça’ como arma necessária, mas não suficiente – mediação hegeliana, negação necessária, anti-racismo racista, para se atingir uma nova forma de universalidade, a do proletariado – aqui trata-se, sobretudo, do direito à violência como única arma para derrotar o colonialismo. Tendo em mente o público europeu, Sartre assinala a relevância das posições eminentemente anti-coloniais de Fanon, na medida em que este não considera sequer os europeus, mas tão só os colonizados, numa perspectiva claramente antagónica à pós-colonial que enfatiza as interdependências e processos de contaminação cultural.

Tais processos, actualmente designados de hibridização, não podem ser desligados de outras interdependências que, como Césaire também o assinala, podem questionar a criatividade efectiva das práticas transculturais, nomeadamente sob a forma do neo-colonialismo, conceito que Kwame Nkrumah (1909-1972) é um dos primeiros a cunhar na década de 1960.

A sua biografia é também atravessada por viagens, nomeadamente até os Estados Unidos (1935-1945), onde estudou, se deixou influenciar pelo garveyismo e o pan-africanismo de um Du Bois e se corresponderia com C. L. R. James, ao mesmo tempo que reconhecia as afinidades entre a exploração dos negros americanos e dos africanos. Tendo partido para Londres, em 1945, aí contactaria com George Padmore, com quem organizaria, em Manchester, no mesmo ano, o 5º Congresso Pan-Africano, presidido pelo autor de The Souls of Black Folks. Tendo desempenhado um papel crucial no processo de independência do Gana (1956) – de que viria a ser presidente – e de um projecto de união africana ainda por cumprir, viria a morrer no exílio, na Roménia, em 1972.

A África Tem de se Unir (1963), cuja tradução foi feita nos anos 1970 para Português, inclui num dos seus primeiros capítulos uma síntese histórica dos diversos modelos coloniais, escrita num momento em que Portugal assumia um papel tanto mais agressivo, quanto determinado pelo seu estatuto subalterno, o que justifica a denúncia veemente, no texto, dos processos discriminadores e segregacionistas do colonialismo português face à retórica lusotropicalista. O pan-africanismo surge aqui como o modelo necessário a uma libertação nacional efectiva, ameaçada, como Nkrumah sugere no texto sobre o neo-colonialismo que aqui se apresenta, pelos limites de uma independência que não considere os riscos das tutelas, quando ela não é total, questão também central para Eduardo Mondlane e Amílcar Cabral, autores com que se encerra esta antologia.

Ynka Shonibare, Diary of A Victorian Dandy 1998 Ynka Shonibare, Diary of A Victorian Dandy 1998

Eduardo Mondlane, que Cabral (2008) vê como um exemplo clássico de um assimilado que regressou às suas raízes culturais, propõe no capítulo “A estrutura social: mitos e factos”, extraído do livro Lutar por Moçambique, de 1969, publicado postumamente, uma análise da estrutura social do colonialismo português. Escrito num momento histórico de viragem, o texto tem como objectivo, à semelhança do texto de Nkrumah, desmistificar – em sintonia com Pinto de Andrade (1955, 1978) – o carácter aparentemente mais tolerante e mestiço do colonialismo português, para o que o autor recorre a fontes diversificadas, desde documentos históricos, estudos feitos pela administração colonial portuguesa, a textos críticos do colonialismo, compondo assim uma imagem multifacetada dessa realidade. O segundo texto aqui publicado, “Resistência – À procura de um movimento nacional”, extraído do mesmo volume, revela as dificuldades e possibilidades da construção de uma nova nação, marcada pelas práticas divisionistas da administração colonial, reforçando antigas cisões tribais, assinalando-se o papel das diferentes composições étnicas nesse processo. Salientando o papel complexo de mestiços e assimilados, o autor reconhece as suas possibilidades e limites, enquanto população habitando entre-mundos, mostrando como a hibridização pode ser dolorosa, limitadora. Mas menciona também o modo como estes absorveram muitas das suas teorias em viagem, bem como o seu consequente afastamento das necessidades populares, o que corresponde a enfatizar mais as questões de ordem social que racial.

O texto apresenta ainda uma breve, mas importante, resenha dos antecedentes históricos dos movimentos anti-coloniais, desde o início do século XX. Nele se referem revoltas e associações críticas do colonialismo, bem como o papel de alguns periódicos locais, passando, pela formação da Liga Africana e pela organização do segundo Congresso Pan-Africano em 1923, em Lisboa. Menciona ainda os encontros dos frequentadores da Casa do Império e a criação do Centro de Estudos Africanos como redes de contactos que depois prosseguiriam em torno das lutas pela independência travadas pelos movimentos nacionalistas.

Estes temas reaparecem com um enfoque mais desenvolvido, do ponto de vista teórico, no texto de Cabral aqui apresentado, “Libertação nacional e cultura”, resultado de uma homenagem póstuma a Eduardo Mondlane, na Universidade de Syracuse, nos EUA, onde este leccionara.

As relações entre cultura e racismo, por um lado, e cultura, nação e direito à auto-determinação, por outro, são questões que Amílcar Cabral aborda, salientando a importância dos processos culturais no processo de libertação nacional, sem a qual as vanguardas políticas se verão destituídas de influência efectiva, ao correrem o risco de se tornarem vítimas de um elitismo estéril. Se em “A dominação colonial portuguesa” (Cabral 1978), Cabral denunciara o colonialismo assimilacionista português e a decorrente destruição das culturas locais, esta questão é agora retomada no texto “Libertação nacional e cultura”, com outra ênfase, inspirada na prática da luta armada. Estas teses serão desenvolvidas e retomadas no texto posterior “O papel da cultura na luta pela independência”, apresentado à UNESCO em 1972 (Cabral 1978a).

Reconhecendo as afinidades e diferenças com o líder da FRELIMO, Cabral oferece no texto aqui apresentado uma reflexão mais aprofundada sobre o tema da cultura, enquanto elemento chave para a compreensão dos processos de colonização, numa abordagem que – à semelhança da análise proposta por Balandier – considera ambas as partes envolvidas e a sua interacção, ao mesmo tempo que dá destaque a factores de ordem socioeconómica que também determinam as transformações culturais. Ou seja, a cultura não é sinónimo apenas de tradição, mas constitui antes um processo multiforme e complexo, com características distintas, consoante os usos que os diferentes grupos sociais dela fazem, dando-se assim já conta de muitos fenómenos a que as ciências sociais têm vindo a dar crescente atenção em tempos recentes. Mas não se trata de uma mutabilidade flutuante, ao sabor das opções de consumo do indivíduo pós-moderno, como viria a suceder em algumas teorias em voga nos anos 1980 e 1990, mas antes de processos fundados em contextos históricos e de dependência colonial a que apenas a luta anti-colonial pode dar adequada resposta. Tal como para Mondlane, para Cabral é claro o papel ambivalente da pequena-burguesia, dividida entre um modelo de assimilação, que nela cria um complexo de inferioridade, e uma cultura autóctone de que se alienou. Ao optar pela cultura local, reafricanizando-se, ela pode constituir um grupo intermédio decisivo nesse processo de independência e de constituição de uma identidade nacional, contraramente ao que pretendia a ortodoxia marxista, empenhada em demonstrar o caracter contra-revolucionaria de uma classe excessivamente dependente de relacoes de propriedade.

A cultura é, contudo, vista, sublinhe-se mais uma vez, como um processo dinâmico, criado também pela luta pela independência que deverá ser capaz de aliar às tradições locais processos de modernização. Estes deverão poder contribuir para a união nacional, para além de tribalismos divisores e obscurantistas, num programa até certo ponto com afinidades com as teses de Wright e Fanon. Contudo, Cabral confere, contra este e Fanon, um papel determinante a esses processos identitários que possibilitam e fundam a resistência ao domínio colonial. Pois este nunca conseguiu destruir por completo a cultura local, pesem embora as políticas assimilacionistas ou segregacionistas que revelam ser, finalmente, duas faces da mesma moeda.

A cultura nacional é, assim, a condição da libertação e de uma união solidária entre os países africanos e para além deles, transcendendo noções meramente culturalistas ou afinidades ideológicas ‘raciais’ ou continentais, como sucede com a negritude ou o pan-africanismo. Surgidas, como Cabral o sublinha (1978) na diáspora, com um papel decisivo num determinado momento, estas não oferecem vias para a auto-determinação e a conquista da independência. Para que esta seja efectiva, ela tem de se fundar numa identidade cultural forte e atenta aos processos de transformação, sob pena de se limitar a um culturalismo inócuo ou de sucumbir a processos de neo-colonialismo que prolongam dependências anteriores, como salientado por Nkrumah. Questão que a pós-colonialidade tem de reequacionar, face à crise e ao fracasso das nações pós-coloniais e à renovada relevância de uma diáspora africana em diversas frentes e com linguagens renovadas na literatura, artes visuais e música, para não falar da teoria pós-colonial. Com efeito, se há um elemento que aponta para esses impasses ele surge certamente representado por exílios, voluntários ou forçados, a que muitos dos autores aqui representados foram levados. Mas não se esgotam os textos nos autores, muito menos na circunstâncias e contingências das suas biografias.

 

 

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Ynka Shonibare, Sir foster cunliffe playing archerYnka Shonibare, Sir foster cunliffe playing archerEntre as viagens do jovem W. E. B. Du Bois e as C. L. R. James e as de Kwame Nkrumah, Pinto de Andrade ou Amílcar Cabral, um longo percurso foi percorrido – com acontecimentos marcantes e traumáticos que não impediram o renovar das esperanças utópicas, muitas delas novamente traídas –, encerrando-se assim esta apresentação que se espera possa servir de ponto de partida para uma leitura renovada destes à luz dos desafios da nossa contemporaneidade.

Com efeito, a experiência dos eventos que sucederam às independências permite o cepticismo e uma leitura mais complexa e matizada das culturas dos colonialismos (Thomas 2006, Stoler et al. 2007) e das propostas anti-coloniais que, porventura, nalguns casos, não terão ido para além do modelo que o Ocidente lhes impôs (Mbembe 2010).

Talvez também por isso se justifique uma perspectiva pós-colonial mais ambivalente, menos crente nas narrativas do progresso, incluindo as do Terceiro Mundo e da sua emancipação. A teleologia redentora da nação e da liberdade mostra agora os seus limites, instalando-se a noção de que talvez a contingência e o acaso explicarão, porventura, melhor a multiplicidade de histórias impossíveis de ser reunidas numa ‘História Universal’ que geraria a Liberdade, segundo uma dialéctica da violência e da necessidade histórica, herdada de hegelianismo. A não ser que se pense essa história de forma alternativa (Buck-Morss 2009), imaginando-se novas formas de universalism, formas menos impostas do que negociadas, na atenção às histórias silenciadas pelos poderes coloniais.

O mundo dividido entre colonizadores e colonizados, radicalizado por Fanon, dificilmente poderá constituir o modelo através do qual contextualizamos, na nossa contemporaneidade, a leitura destes textos. Daí a ênfase nas viagens das teorias, nas interdependências e contaminações entre os diferentes autores aqui representados, que não podem ser reduzidos a uma mera oposição Europa/ Ocidente e os seus ‘Outros’. Basta olhar para os lugares de nascimento e morte da maior parte dos autores aqui representados: nascidos nas Américas, morrendo em África (DuBois), em França (Senghor), no Reino Unido (James, Pinto de Andrade), Fanon (EUA), por motivos muito distintos, que vão da militancia política, ao exílio voluntário, à contingência mais absoluta. Talvez estes dados biográficos circunstanciais ajudem também a confirmar a posição aqui esboçada segundo a qual não existe uma narrativa e um sentido único para os sonhos fundados em expectativas forçosamente diferentes das nossas, segundo as experiências que o tempo foi sedimentando (Koselleck 1988, Scott 2007).

O que equivale a dizer que não se trata de trabalho meramente arqueológico, e que, com esta antologia, não se pretende fixar, tal fotografia, o passado que assim deixa de afectar os que com ele lidam (Kracauer 1992). Porque não pensar antes a memória como trabalho de arqueologia (Benjamin 1992), escavando repetidamente nos fragmentos do passado, assim garantindo uma iluminação do nosso presente e um futuro que possa ficar em aberto?

 

Finalmente, uma nota para quem lê estes textos na Europa, compilados na Europa. As interdependências criadas pelas longas relações coloniais não se esgotam nos processos de migração e hibridização que alguma teoria pós-colonial escolheu como tema de eleição. Essas cumplicidades são atravessadas por afectos e memórias contraditórias, desde a melancolia pós-colonial (Gilroy 2004) a novas experiências identitárias e alianças inesperadas, em que a pureza da nação – esse mito nascido na Europa e perpetuado, em algumas nações ‘pós-coloniais’ – é reiteradamente questionado. Essas interdependências também assumem novas configurações, em que os mais fracos, também nas nações nascidas da independência do colonialismo, acabam por ser mais uma vez os ‘condenados da terra’.

Por outro lado, o fim da história está longe de cumprido, como o demonstram os acontecimentos mais recentes, o emergir de uma crise global e de novos parceiros naquilo que constituiu o Terceiro Mundo, contribuindo assim para uma deslocalização da Europa, do Ocidente, do mundo, criando novos desafios, nomeadamente aqueles que se prendem com as atitudes defensivas próprias de momentos de viragem.

E assim termina esta viagem, longe de concluída, esperando-se que ela prossiga, em lugares diferentes, com recurso a experiências mais ou menos distintas, capazes de conferir a estes textos, meio século depois de eles terem sido escritos, novos significados e novas questões.

Trabalho de memória ou de (re)descoberta, consoante as gerações que os lerem, estes textos anti-coloniais aguardam, em qualquer dos casos – nas suas promessas por cumprir ou a rejeitar, em suma na sua incompletude – uma reactualização crítica e novas afiliações, nos contextos pós-coloniais nossos contemporâneos.

Com uma certeza apenas: a de que, tal como sucedeu com os textos aqui compilados, também estes contextos da sua re-apresentação se transformarão rapidamente em futuros passados (Koselleck 1988, Scott 2004) para as novas gerações. E competirá a estas menos proferir um julgamento, do que ensaiar uma leitura que permita desfazer e refazer de modo mais criativo – menos nostálgico, mais crítico – as malhas inevitavelmente tecidas por impérios cada vez mais passados, mas não menos presentes.

 

Lisboa, 2009 – Nova Iorque 2011


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MALHAS QUE OS IMPÉRIOS TECEM. TEXTOS ANTI-COLONIAIS, CONTEXTOS PÓS-COLONIAIS 2

Índice

Manuela Ribeiro Sanches, Viagens da teoria antes do pós-colonial

Agradecimentos

I – Viagens transnacionais, afiliações múltiplas

W. E. B. Du Bois, Do nosso esforço espiritual

Alain Locke, O novo Negro

Léopold Sédar Senghor, O contributo do homem negro

George Lamming, A presença africana

C. L. R. James, De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro

Mário de (Pinto) Andrade, Prefácio a Antologia Temática de Poesia Africana

II – Poder, colonialismo, resistência trans-nacional

Michel Leiris, O etnógrafo perante o colonialismo

Georges Balandier , A situação colonial: uma abordagem teórica

Aimé Césaire, Cultura e colonização

Richard Wright, Tradição e industrialização

Frantz Fanon, Racismo e cultura

Kwame Nkruhmah, O neo-colonialismo em África

Eduardo Mondlane, A estrutura social – mitos e factos

Eduardo Mondlane,  Resistência - A procura de um movimento nacional

Amílcar Cabral, Libertação nacional e cultura

por Manuela Ribeiro Sanches
A ler | 29 Maio 2011 | anti-colonial, negritude, pan-africanismo, pos-colonial