Defesa da ‘correcção política’ em tempos de penúria económica e intelectual

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A recente crise mundial e os seus efeitos na Europa têm vindo a silenciar questões relativas ao modo como os portugueses se auto-representam, atolados que se vêem em sucessivos anúncios de medidas de excepção, sobrepondo-se a premência económica à não menos complexa – mas agora, aparentemente, menos urgente – tarefa de se repensar a forma como nos definimos em tempos pós-coloniais.

Saliente-se, desde já – e mais uma vez – que o pós-colonial, só sendo possível como um depois do colonial(ismo), não se cinge a mera perspectiva cronológica, mas é também imperativo político, pensando o passado colonial como afectando de forma mais ou menos explícita o que somos actualmente, perspectiva que insiste na necessidade de se repensar consensos históricos e identidades deles resultantes, na atenção a modelos epistemológicos que questionem as visões unilaterais baseadas em triunfalismos nacionais ou transnacionais, leia-se, ocidentais.

Estas questões que poderão parecer particularmente abstractas - se não mesmo académicas, no pior sentido que a palavra pode adquirir - tornam-se, contudo, particularmente prementes, se não mesmo evidentes, face a dois acontecimentos – os atentados noruegueses e os motins britânicos - ocorridos durante este verão na Europa, continente a que Portugal quer e não quer pertencer.  É o que se pode, agora ainda mais, depreender, em tempo de crise identitária europeia, dos mais variados comentários de fazedores de opinião, que acerrimamente propõem o reforço de laços numa UE finalmente federalista, a criação de títulos de dívida europeia, a saída mais ou menos programada do Euro, ou, ainda, last but not least, o reforço do espaço lusófono, por vezes, associado à exploração renovada de oceanos antes navegados como escape necessário ou caminho de redenção.

Fala-se já da ‘presença portuguesa’ no mundo, ou das ‘nossas’ relações históricas com o Oriente, a África ou o Brasil, as ‘comunidades lusófonas’ a substituir as europeias, regresso – ou processo de compensação - inusitado e silencioso a uma geografia e a um imaginário imperiais.

Não querendo discutir as vantagens da diversificação de parceiros comerciais e intercâmbios culturais, nomeadamente aqueles que a astúcia da razão colonial ajudou a estabelecer, o que também parece ser, mais uma vez, adiado é a necessidade de um debate sobre o passado colonial - não só sobre a memória mais recente da guerra – tópico cada vez mais recorrente -, mas também a mais longínqua, mas não menos relevante, história da escravatura, história essa silenciada sob a ideia de uma natural bonomia lusa, de eternos brandos costumes, patentes no modo aquiescente com que a população portuguesa parece empenhada em evitar tumultos, ao estilo grego ou britânico. Isto de par com uma outra noção, a da subalternidade de Portugal, em contextos imperiais - nação tardia, não em termos de unidade nacional, mas de ‘desenvolvimento’ e da sua incapacidade de se afirmar face a outros herdeiros de impérios mais poderosos.

Ora é essa oscilação entre a ideia de um atraso e uma lacuna constantes face aos ‘desenvolvidos’ – leia-se a ‘Europa’, o ‘Norte’ - que levam a que opiniões de quadrante político distinto tendam a refugiar-se num discurso que agora ousa, de novo, querer-se menos europeu, numa reciclagem inesperada de teorias lusotropicalistas ou terceiro-mundistas, consoante os interesses ou tendências.

São essas noções que transparecem quando se celebra o reatar de novos laços com ex-colónias, de forma leviana ou nostálgica, algumas delas agora manifestamente mais poderosas do ponto de vista económico do que a antiga metrópole, ou se recomendam esses lugares como destinos de emigração para portugueses devidamente qualificados por políticas europeias de ‘desenvolvimento’, assim compensando a anterior ideia humilhante de portugueses atrasados ou subalternizados nas Américas ou na Europa, agora finalmente capazes de dar provas da sua efectiva ‘civilização’.

Mas uma análise mais atenta destes processos poderá demonstrar que o que está em jogo é uma ambivalência interessante: a da inferioridade portuguesa perante uma Europa a que pertencemos, segundo uma narrativa evolucionista, e uma não-Europa que também ajudámos a ‘desenvolver’.

E são mecanismos afins que ressurgem igualmente no desejo de sermos finalmente tão multiculturais como a restante Europa – e ainda mais mestiços que ela - sem que nos interroguemos, adequadamente, sobre o passado que determinou essa condição.

É neste contexto que os dois acontecimentos de verão que comecei por referir merecem ser analisados, considerando as questões anteriormente enunciadas.

Em Agosto de 2011, os atentados noruegueses começavam a ser noticiados, pressupondo-se, de imediato, que, por detrás deles, estariam os suspeitos do costume – muçulmanos – mais uma vez reduzidos, mesmo depois da ‘primavera árabe’ -  a fanáticos e fundamentalistas. Seria mais um exemplo do que, poucos meses antes, os líderes cimeiros europeus, Merkel e Sarkozy, secundados por Cameron, haviam anunciado: a morte do multiculturalismo.

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Mas a verdade é que, como muitas outras crónicas de morte anunciada - como a hegeliana da arte, ou da história, mais recentemente da modernidade e das suas utopias - essa grande narrativa do fundamentalismo atávico de muçulmanos, vistos sempre como exteriores à Europa, viria a ser contrariada pelo facto de o seu autor ser um jovem ‘ariano’, inimigo do marxismo e dos seus herdeiros, em que se incluiriam a Teoria Crítica da chamada Escola de Frankfurt (de Theodor W. Adorno a Walter Benjamin) até Edward Said, com o seu perigosíssimo Orientalismo. Em centenas de páginas, o assassino norueguês, procede, em nome dos seus valores cristãos e iluministas - e mediante um método já tornado clássico para quem esteja atento à verdadeira pirataria na internet, o do cut’n’paste - à condenação daqueles que recusariam a ‘autêntica’ identidade europeia.

Depois de uma certa perplexidade, os media, também os portugueses, tornar-se-iam militantemente adversários de qualquer manifestação anti-muçulmana, abraçando a tão criticada ‘correcção política’, vendo nos excessos tendências, confortavelmente associadas, como sempre, à chamada extrema-direita. E, mais uma vez, ignorou-se a forma como partidos com responsabilidades governativas haviam contribuído - e ainda o fazem - para tal panorama.

Mas tratava-se de sol de pouca dura, este abraçar da bandeira e do respeito pela diferença, como se tornou particularmente evidente, nas repercussões de outros eventos, os motins em Londres e no Norte de Inglaterra.

Estes causaram perplexidades, interrogando-se os comentadores, neste caso falando a uma só voz europeia, sobre o racismo por detrás dos eventos, para, em breve, as explicações económicas substituírem as ‘étnicas’, invocando-se argumentos que iam das guerras urbanas, próprias do mundo pós-moderno dividido em ‘diferenças’ e ‘reivindicações étnicas’, ao sempre bem-vindo reforço policial, até à ‘crise de valores’ ou a ‘decadência moral’, não faltando o historiador de serviço politicamente incorrecto, David Starkey, que veio à BBC denunciar a ‘negrificação” da juventude britânica, corrompida por rappers mal-afamados, tributários da cultura gangster da Costa Oeste norte-americana, violenta e destruidora, sedutora, mas corruptora no seu consumismo. Historiador que, estranhamente, parece ignorar o modo como estas versões reproduzem estereótipos clássicos que os negritudinistas do inícios do século XX há muito desmascararam.

David StarkeyDavid Starkey

Mas, para além das causas dos motins, que revelam que as explicações unilaterais serão sempre insuficientes, a verdade é que, também entre nós, os comentários se dividiram entre as mais banais condenações do multiculturalismo britânico – que cindiria a sociedade em guetos, em nome do direito à diferença – à necessidade de reforço da segurança policial britânica, incomparável com a continental, coincidindo quase sempre as opiniões, aqui como ‘lá fora’, na excessiva indulgência de sociólogos ou de todos aqueles ‘multiculturalistas’ que tentassem compreender o fenómeno social ou questionar os modelos económico-sociais que têm causado esses modelos de segregação ‘étnica’ ou racial. Ou os que lembrassem  narrativas de inferiorização herdadas de histórias e estereótipos coloniais, significativamente ausentes.

O que, assim, ficou mais uma vez silenciado – também e sobretudo entre nós - foram as causas mais remotas por detrás da marginalização de populações de origem caribenha, africana ou asiática, o facto de elas viverem na Europa como consequência de antigos impérios. Embora haja sempre quem venha afirmar que a segmentação da sociedade britânica mais não faz que reproduzir o modelo colonial britânico, com o seu governo indirecto, dividindo para reinar.

O que leva a que também seja tempo de se considerar o questionamento de ideias de partilhas linguísticas e memórias comuns entre antigas colónias e metrópoles. Se é evidente que essas interdependências são inevitáveis, seja sob a forma de cumplicidades, por vezes, questionáveis, seja sob o reconhecimento de familiaridades que a violência das histórias comuns também ajuda a explicar, a verdade é que, sob a capa de meras políticas de defesa de língua - da lusofonia à francofonia -, se ocultam ainda memórias nostálgicas e estratégias comerciais em relação a antigos impérios que, em última instância, em nada contribuem para que se pense o que a Europa e as suas nações são actualmente, em tempos pós-coloniais.

Com efeito, algumas práticas culturais, apesar de tudo partilhadas por muitos descendentes de imigrados depois do colonialismo para a Europa, permitem um termo de comparação mais interessante do que aquele que é sugerido pelas histórias de (pós)colonialismos nacionais. Os processos de identificação a que muitos desses europeus(afro)descendentes recorrem alimentam-se de um imaginário que tem menos a ver com as línguas herdadas do colonialismo, do que com as paisagens mediáticas (Appadurai) que os meios de comunicação contemporâneos permitem disseminar, para o melhor e o pior – desde o rap ao reggae globais, a uma negritude ou a um pan-africanismo reinventados, identidades diaspóricas também partilhadas pelos descendentes dos ‘nativos’ das nações europeias.

Mas o que parece persistir, nos discursos sobre os passados e os presentes (pós)coloniais europeus, é a ideia de que existe sempre uma excepcionalidade no modo de colonizar – o universalismo republicano francês, o respeito pela diferença britânico ou holandês, a mestiçagem portuguesa herdada do consenso lusotropicalista – excepcionalidades que ocultam a violência passada e presente dessas nações pós-coloniais, agora, reduzidas à sua territorialidade europeia, pesem embora as continuadas desterritorializações financeiras e económicas em tempos de globalização. 

Todas multiculturais e mestiças –  por mérito do que por necessidade – essas sociedades pós-coloniais têm de aprender a redefinir-se, nomeadamente no que diz respeito ao modo como encaram o seu passado, narram as suas histórias.

No caso português, assinale-se, mais uma vez, o silêncio eloquente em relação ao passado colonial, à memória da escravatura, de que Portugal não só foi pioneiro, mas um dos mais longos e persistentes protagonistas, com a bênção católica, lembre-se, de bula papal. Para quando um museu da escravatura? Para quando um debate sobre o passado colonial que vá além de memórias recentes de uma guerra? Para quando uma abordagem da condição pós-colonial que não a limite sobretudo a literaturas africanas de ‘expressão portuguesa’ ou a defina como memória descomplexada de ‘fazendas em África’ por parte de uma geração que entende, apressadamente, que a elas pode regressar sem pesados sentimentos de culpa que apenas contribuiriam para a tão famosa auto-flagelação (nacional)?

Num momento em que a subalternidade portuguesa em relação aos poderosos da Europa - a Alemanha, a França, o Reino Unido - parece cada vez mais afectar os discursos em torno da ‘portugalidade’, favorecendo apelos a consumos estritamente internos, revivalismo de um ‘Portugal dos pequenitos’ - face da mesma moeda de um país que não era pequeno, cobrindo a Europa de Minho a Timor -, fará, porventura, sentido lembrar algumas ‘factos europeus’:

Que, na Berlim da Sra. Merkel, existe também uma memória crítica do passado nazi e da história da nação em geral, que as políticas culturais não se limitam sempre a uma mera celebração da mestiçagem ou multiculturalidade da Alemanha contemporânea, mas incluem uma abordagem crítica do passado, de que as histórias das migrações mais ou menos recentes são também parte integrante.

Ou que, na França de Sarkozy e de Marine Le Pen, têm tido lugar acérrimos debates em torno da memória e da historiografia, da escravatura e do passado colonial;

Que Liverpool possui um museu da escravatura, lugar de memória que não reduz a cidade ao berço dos Beatles e do Mersey sound, mas evoca temas e memórias conflituosas que os brandos costumes portugueses sabem sempre, parece, evitar.

Aparentemente afastados dos centros e dos ventos da história, os portugueses persistem em embalar-se com narrativas mais suaves que pouco ajudam a que uma autodefinição mais conforme com o seu passado e presente se torne possível. Mais, na ausência de um debate e de uma mobilização efectiva da sociedade portuguesa para esses temas, é como se o presente existisse suspenso no tempo.

Não que essa reflexão seja garante de mais direitos para os descendentes de imigrados em tempos depois das independências ou das descolonizações; mas ela pode constituir um antídoto a consensos pouco estimulantes, paralisadores de qualquer agonística, que é, finalmente, condição necessária para uma renovação da reflexão e do debate em torno dos processos de negociação das múltiplas identidades que constituem - sempre constituíram - o estado-nação. Também o português.

Debates tanto mais necessários, quando, em tempos de crise, questões como as que abordei podem correr o risco de surgir como secundárias. E de os descendentes dos antigos ‘indígenas’ serem ainda mais subalternizados e segregados.

Por isso mesmo, há que ousar a correcção política. Em tempos de penúria económica e intelectual

por Manuela Ribeiro Sanches
A ler | 14 Novembro 2011 | crise, crise financeira, economia, euro, Europa, História, Portugal