Se tocarem Cristina, que confusão vamos fazer!

Na noite da quinta-feira passada, primeiro de setembro, a Argentina viveu um dos seus momentos políticos mais tensos desde o regresso da democracia: um atentado contra Cristina Fernández de Kirchner (CFK), atual vice-presidenta da Nação. A cena durou somente alguns segundos, os necessários para empurrar o país a um estado liminar de catástrofe.


Fernando Andrés Sabag Montiel, de 35 anos e de origem brasileira, colocou-se entre seguidores/as de CFK que a esperavam na entrada de sua residência (no bairro portenho de Recoleta) e, sorteando a escolta da Polícia Federal, posicionou-se no cordão mais próximo a vice-presidenta. Quando Cristina acercou-se para cumprimentar, o homem empunhou uma pistola Bersa (modelo Lusber 84), calibre 32, apontou-lhe à cabeça e tirou o gatilho. 

O que sucedeu num par de segundos extrapola o mistério. Nos vídeos que registraram a cena escuta-se o golpe do percutor; a arma estava carregada com cinco balas e apta para disparar. No entanto, o tirou não saiu. Ao que parece, o agressor não conseguiu puxar completamente o gatilho da arma para trás, o que impediu que a bala se posicionasse corretamente na recamara. Se tivesse conseguido puxar o gatilho uma segunda vez, a bala teria saído. Por um golpe de sorte e por fortuna, as pessoas à volta deram-se conta da situação e impediram-no (a polícia chegou depois). Cristina, percebendo que algo estranho acontecia, mas sem saber exatamente o que a enfrentava, baixou-se, protegendo a cabeça com as mãos. 

Eram dez e meia da noite de quinta-feita quando tomei conhecimento destes acontecimentos pela televisão: imediatamente, todos os canais começaram a transmitir ao vivo da residência de CFK. O país entrou num estado de estupor. A polarização política e a naturalização dos discursos do ódio haviam conduzido a um beco sem saída. Não falta quem diga que “mão de Deus”, uma vez mais, favoreceu a Argentina, freando a bala, impedindo-a de chegar a Cristina. “Se a houvessem matado, dava-se início a uma guerra civil”, repetem as pessoas nas ruas, nas entrevistas a diferentes meios de comunicação. A afirmação parece desmedida, mas não é.

Durante todo o mês de agosto, especialmente na última semana, a polarização política alcançou níveis cruciais. Um dos detonadores foi a campanha midiática em torno das acusações do fiscal Diego Luciani na “Causa Autoestradas” (Causa Vialidad, em espanhol). Luciani tenta responsabilizar CFK pela corrupção nas obras públicas comandadas por um dos seus ex-funcionários durante seu exercício como Presidenta. As alegações do fiscal, amplamente difundidas nas redes sociais, arrastaram-se por nove dias: só a primeira intervenção durou oito horas e meia. O país acompanhou a causa com curiosidade e nervosismo. As grandes corporações de telecomunicações e jornais argentinos, opositores ao governo peronista, iniciaram um “bombardeio” comunicativo promovendo a culpabilização de CFK. Horas e horas de comentários em diversos canais televisivos; páginas e mais páginas de jornais sentenciando a vice-presidenta.

Dia 22 de agosto, nas alegações finais, Luciani solicitou ao juiz doze anos de prisão para Cristina e sua inabilitação vitalícia ao exercício de cargos públicos. Ao escutar as mais de sessenta horas de alegações do fiscal, senti um déjà vu desagradável que me varreu o corpo com uma sensação de urgência. O goteio incessante e potente do lawfare articulado entre os setores judiciais, as elites alinhadas à direita (ou à extrema direita) do arco político e os meios de comunicação hegemónicos repetiam uma fórmula que se está tornando reiterativa na América do Sul.

Entre 2016 e 2019 acompanhei as vinte e três causas imputadas a Luiz Inácio “Lula” da Silva (líder do Partido dos Trabalhadores, PT) no meu país de origem, no âmbito da Operação Lava a Jato que, de “ação exemplar da justiça”, passará à história como uma das maiores agressões à democracia brasileira. As alegações do fiscal Deltan Dallagnol contra Lula passaram aos anais da história também, mas pelo absurdo que significaram. É impossível esquecer o momento icônico quando o fiscal apresentou um PowerPoint ilustrando as supostas vinculações do ex-presidente com os delitos de corrupção (alheios à causa em questão), sem preocupar-se de entregar qualquer prova juridicamente qualificada daquilo que afirmava.

O juiz do caso, Sérgio Moro, aceitou estas apresentações como suficientes e decretou a culpabilidade de Lula afirmando que “não tinha provas, mas tinha convicções”. O fato alterou terminantemente o processo eleitoral de 2018, favorecendo a vitória de Jair Bolsonaro. Lula era o primeiro colocado nas pesquisas eleitorais: sua inabilitação empurrou o país a um governo de extrema direita com resultados catastróficos nestes últimos três anos. Este mesmo juiz transformou-se, depois das eleições, em ministro de Justiça de Bolsonaro, naturalizando-se assim a perversão do sistema judicial. Soubemos então que se tratava efetivamente de um golpe político-midiático com intenções eleitorais. “Quem se importa com a separação dos poderes?”, preguntavam publicamente os apoiadores de Bolsonaro. Os grandes meios de telecomunicação e jornais brasileiros, que foram veículos primordiais de uma virulenta campanha anti-Lula, também são reconhecidos hoje como grandes responsáveis de alimentar a naturalização do ódio e da violência política. Em 2019, acompanhei com estupor a revelação de que o fiscal Dallagnol e o juiz Moro mantiveram conversações durante todo o curso da causa: que o segundo dava instruções ao primeiro sobre o que dizer para culpabilizar a Lula. Também na Bolívia, em 2019, empregaram-se estes mesmos mecanismos – a articulação midiática, judicial, embora recrudescida por uma terrível intervenção militar – para impedir a reeleição de Evo Morales.

A esta altura, já não se pode pensar ingenuamente que se trata de eventos isolados. A busca por inabilitar Cristina a um ano das eleições presidenciais argentinas, a construção de discursos de ódio alimentados midiaticamente por grandes corporações e a corrupção do sistema judicial são a nova cara da intervenção geopolítica na América Latina. Que ninguém pense em interpretar que, ao dizer estas coisas, estou defendendo a corrupção. Essa seria uma conclusão absurda (e, ademais, muito útil ao modo operandi do lawfare que busco denunciar). Todos e cada um dos delitos devem ser julgados conforme as regras jurídicas pactadas pelas cartas magnas dos países. A justiça deve sustentar sua institucionalidade, sua transparência, sua procedimentalidade democrática. Mas o que ocorreu no Brasil, na Bolívia e agora na Argentina, não é isto. Hoje sabemos que Lula foi encarcerado sem provas; que as eleições de Bolívia foram intervindas ilegal e violentamente.

O modo como se vem conduzindo o caso de Cristina repete este mecanismo. O ministro da Corte Suprema da província de Santa Fe e professor de direito penal, Dr. Daniel Erbetta, foi uma das poucas vozes da justiça argentina que se animou a dizê-lo publicamente. Segundo Erbetta, a Causa Autoestradas tem ao menos cinco irregularidades que fazem dela um “exemplo pedagógico” de como não deve ser uma causa, e de como não devem comportar-se juízes e fiscais. Primeiro, saltou-se o princípio de inocência: vem-se alegando que é a própria imputada, Cristina, quem deve provar-se inocente (quando a lei pregoa que as pessoas o são até que a justiça prove o contrário). Segundo, há um problema de admissibilidade da prova: o juiz aceitou a provas que foram incorporadas em momentos indevidos do processo, sem o correto conhecimento das partes implicadas, sem verificação de sua validez, veracidade e pertinência. Terceiro, está a questão da imparcialidade dos julgadores: juiz e fiscal são membros da mesma equipe de futebol amador. Frequentaram juntos torneios deste esporte organizados em uma propriedade do ex-presidente Mauricio Macri; diversas fotos provam estes vínculos. Macri é o principal opositor político de Cristina e seu partido é um dos grandes beneficiários da sua inabilitação eleitoral. Isto afeta o princípio de independência e imparcialidade do juiz e do fiscal da causa. Quatro, as alegações não podem ser lidas: devem constituir uma expressão oral, prescindido do guião redigido. Nas várias horas de exposição, Luciani leu tudo quanto disse: sua intervenção não cumpriu as normas dos juízos orais. Quinto, o juiz negou a Cristina seu direito de resposta, impedindo que se defendesse das acusações do fiscal. Trata-se, por tanto, de uma causa repleta de irregularidades procedimentais.

Terça-feira, 23 de agosto, dia posterior às alegações finais do fiscal, Cristina decidiu expor seus argumentos publicamente, num discurso transmitido por redes sociais. Explicando estas irregularidades e outras mais, convocou a uma defesa da democracia, articulando palavras que calaram profundamente na opinião pública: “Eles não arremetem contra mim; arremetem contra vocês” [“No vienen por mí; viene por ustedes”]. A situação causou uma comoção nacional e não somente dos partidários de Cristina. A coalisão peronista que exerce o governo nacional, Frente de Todos, está composta por forças políticas heterogêneas. Não todas apoiam a CFK, mas todas saíram a respaldá-la. Desatou-se uma profusão de convocatórias em todo o país para o sábado, 27 de agosto. 

Este dia, o Governo da Cidade de Buenos Aires, comandado por Horacio Larreta (del PRO, partido de Mauricio Macri) ordenou que suas forças de segurança circundassem a residência de Cristina com valhas, impedindo que as pessoas se aproximassem. A estratégia surtiu o efeito contrário: milhares de manifestantes, ao ver as imagens pela televisão, apresentaram-se e terminaram recebendo uma repressão cruel: gás lacrimogênio, carros hidrantes tirando água pressurizada, gás pimenta. Estas técnicas repressivas são profusamente empregadas em outras cidades sul-americanas, mas inusuais em Buenos Aires, onde desde 2001 há um consenso sobre a liberdade de manifestação pública da opinião política. As cenas filmadas neste dia mostram a intenção das forças de segurança portenhas de instigar reações violentas (agrediam verbal e fisicamente às pessoas presentes). Houve feridos/as, a valha foi derrubada. Desde este dia, fazem-se vigílias multitudinárias em apoio a CFK na porta de sua residência. Ao sair e entrar à casa, Cristina cumprimentava a multidão com a proximidade que lhe caracteriza (e que dificulta enormemente o trabalho dos seus seguranças). Foi num destes momentos que ocorreu a cena do tiro frustrado. Estupor, medo, angústia. O país parou. Um par de horas mais tarde, o presidente Alberto Fernández pronunciou-se em cadeia nacional repudiando o atentado, decretando 2 de setembro (dia seguinte) feriado e convocando o povo a manifestar-se a favor da democracia, contra os discursos do ódio e em defesa de CFK.

Na sexta-feira, às dez horas da manhã, os primeiros grupos começaram a chegar à Plaza de Mayo (no centro de Buenos Aires, onde se localiza o palácio do governo, a Casa Rosada). Várias forças políticas, organizações de defesa dos direitos humanos, cidadãos comuns. Famílias inteiras com filhos, pais, mães, avós/ôs. Uma manifestação pacífica e massiva. Entre os vários cânticos, um viralizou-se: “Se tocarem Cristina, que confusão vamos fazer!” [Si le tocan a Cristina, ¡qué quilombo se va a armar!]. Ouvi-o repetido por várias bocas, em diferentes colunas e fora delas também. Uma mulher, sendo entrevistada por um canal de televisão em plena praça, disse ao jornalista: “Tenho 39 anos, nasci numa democracia. Nunca pensei que teria que sair às ruas para defender a democracia”.

A sua frase condensa lucidamente os significados desse momento histórico. Poderia ter sido usada no contexto brasileiro de 2018, e no boliviano de 2019. Imediatamente pensei em toda a campanha da direita e da extrema direita nos países da América do Sul nestes últimos quatro anos. Nas mentiras, na vontade de romper com o consenso mínimo do diálogo democrático e lançar a sociedade civil numa guerra de todos/as contra todos/as. É o momento preciso para tomar consciência do papel histórico das forças democráticas; de opor-nos fortemente à naturalização da violência política na América do Sul. 

 

Uma versão em espanhol deste texto foi publicada em “El Desconcierto” (Chile)

por Menara Guizardi
A ler | 7 Setembro 2022 | América Latina, Argentina, atentado, Bolívia, Cristina Fernández de Kirchner, democracia, direita, evo morales, extrema direita, insurreição, Jair Bolsonaro, Plaza de Mayo, Sérgio Moro