O rebentar sul-americano, encruzilhadas do neoliberalismo
Neoliberalismo pós-globalizado
“Pessimismo da razão, otimismo da vontade”, sintetizou noutros tempos, tristemente parecidos com estes, o sagaz pensador sardo Antonio Gramsci.
Há três anos, alguns cientistas sociais que acompanhavam atónitos o referendo do Brexit ou a campanha presidencial de Trump sugeriam que estes acontecimentos internacionais anunciavam o fim da globalização. Sem encontrar melhor nome, começaram a denominar este novo período de “pós-globalização”. Existem, no mínimo, dois eixos para caracterizar este momento.
Por um lado, o norte global dava mostras de sair da crise económica que, desde 2008, atingia os países centrais do capitalismo. A estabilização desses Estados coincidiu com o progressivo retroceso nas condições macroeconómicas dos países da América do Sul, que esgotaram o boom das commodities vivido no início do século XXI. A região entrou numa recessão processual: as nossas competitividades internacionais retrocederam, baixou o valor das nossas moedas quanto ao dólar, os nossos mercados laborais reduziram e, com eles, os nossos mercados internos.
Estas situações foram usadas com grande habilidade mediática por forças económicas e políticas que, apesar de bem conhecidas, apresentaram-se como novidade: disfarçaram-se de boas ouvintes dos novos desejos da população; de moralizadoras e modernizadoras dos Estados. Munidas de discursos de persuasão massiva – como a performance dos balões amarelos de Mauricio Macri, nas eleições de 2015, que prometia a “revolução da alegria” –, constituíram uma narrativa hegemónica que anunciava a chegada de uma nova direita não-neoliberal. Mentiam.
Personagens como o próprio Macri ou Sebastián Piñera no Chile, protagonistas de uma ampla trajetória de corrupção empresarial do Estado, apresentaram-se frente aos eleitorados sul-americanos como solução para a suposta “corrupção” (económica, moral, política) dos governos progressistas. Estes últimos, entre enjoados e surpreendidos, demoraram a incorporar as autocríticas necessárias e a assumir o descontentamento e os novos posicionamentos dos populares. Incapazes de interpretar o contexto, continuam a pagar, até hoje, uma persistente miopia.
Por outro lado, o avanço das direitas sul-americanas acompanhou a subida da direita dos países no norte global. O espectro político das democracias deslocou-se em bloco para a direita. Os discursos de ódio retomaram a esfera pública global e anunciaram o final da hegemonia multicultural que caracterizou o neoliberalismo globalizado desde a queda do muro de Berlim. É certo que o multiculturalismo representava um modelo insuficiente de gestão da heterogeneidade cultural e social: o seu resultado desembocou em políticas e acontecimentos extremadamente violentos para os povos originários, afrodescendentes e latino-americanos; tal como para as mulheres, transsexuais, travestis e demais identidades não-normativas (ou, como se diz no jargão político, “as minorias”). Mas o que se seguiu ao multiculturalismo, o projeto da pós-globalização para abordar as diferenças e diversidades planetárias, acabou por ser ainda mais nefasto.
A expressão pública do ódio surgiu (e foi cultivada) duplamente como condensadora e catalizadora do mal-estar social. O nacionalismo, o racismo, a misoginia e o macartismo atravessaram a esfera pública em diversos cantos do planeta. A sua naturalização – ou seja, a capacidade dos cidadãos comuns aderirem a estas lógicas e de senti-las de forma cotidiana – foi lentamente preparada, como diz Rita Segato, através de uma sofisticada pedagogia da crueldade. Acostumamo-nos ao sofrimento alheio. Difundida pelo cinema, música, redes sociais e videojogos, esta pedagogia cultivou em cada um/a de nós dispositivos para banalizar o sofrimento dos demais e, simultaneamente, converter-nos em perpetradores de diferentes formas de violência.
Encruzilhadas
Porém, o segundo semestre de 2019 dá-nos provas claras de que a expressão sul-americana deste neoliberalismo pós-globalizado chegou a uma encruzilhada. O ponto de saturação, assim como os cotornos que a saturação tem tomado, é particular em cada cenário. Na Bolívia, as eleições celebradas a 20 de outubro confirmam o apoio popular a Evo Morales que, na sua campanha, expressou com transparência cristalina a sua oposição ao modelo neoliberal. No Peru, um dos países mais aplicados do continente na execução de receitas neoliberais, a recente dissolução do Congresso expõe a tensão política e os desacordos sobre as vicissitudes do modelo.
Notamos em diversas partes da região que a pedagogia da crueldade não nos preparou para naturalizar o próprio sofrimento e que, perante os becos sem saída das reformas propostas, as pessoas sentem que já nada ou quase nada têm a perder. Assim sendo, estão em disputa tanto as condições para contestar o neoliberalismo, quanto as agonísticas propostas para a sua permanência. As apostas de contra hegemonia e de hegemonia estão no mesmo tabuleiro.
No Chile, com as revoltas dos últimos dias, temos um modelo radical de resistência e de resposta estatal. O movimento estudantil, mais uma vez, partiu para as ruas ocupar o espaço público para expressar o descontentamento popular frente ao agudo recrudescimento do modelo. Não é algo que surpreenda: desde 2009 tem sido a principal válvula de expressão pública da insustentabilidade das medidas neoliberais. Representado por sucessivas gerações de líderes e de porta-vozes, os/as estudantes chilenos/as tiveram que negociar com as forças políticas do centro e direita que governaram o país na última década. Foram dez anos de petições frustradas; dez anos de negociações que terminaram em demasiados planos de ajuda, longe de dar resposta ao pedido de educação universal e grátis (compreendida como um direito).
Se há algo que o movimento estudantil aprendeu neste lustro, é que, sem uma transformação de modelos, é inútil negociar. Os/as aposentados/as massacrados pelo sistema neoliberal privatizado de pensões também já chegaram a essa conclusão: há quatro anos que se manifestam pelas ruas do país. Assim como os usuários dos sistemas de saúde públicos e privados, que protestam contra pagar muitíssimo acima da média internacional, enquanto recebem serviços conhecidos pela sua má qualidade. As mobilizações no Chile são ainda uma produção cultural de uma resposta política. Nela se constroem posicionamentos políticos que permitem o reconhecimento mútuo entre sujeitos designados a formas heterogéneas de identidade e de agência cidadã. O movimento é transclasse, transgeneracional e transgénero. Esta é a principal diferença em relação a outras lutas que, atomizadas em frações sociais, não puderam converter-se numa narrativa geral. Esta narrativa vem reinventando um ethos coletivo que vinha sendo esmagado pelos caminhos do neoliberalismo chileno.
Os governos chilenos encabeçados pelas forcas políticas que se autodenominaram a “Concertación” [Concertação] e, logo, a “Nueva Mayoría” [Nova maioria] – e que também se posicionaram como coligação de centro-esquerda –, dirigiram o país por extensos períodos desde a redemocratização. Os seus governos coincidem notavelmente com os da direita, como o do atual presidente Piñera, num aspecto nefasto: são potentes guardiões da estruturação neoliberal do Estado, desenhada por Pinochet a partir da sua, ainda vigente, Constituição, outorgada em 1980. Na transição democrática, o Chile manteve uma Constituição que carece de várias salvaguardas democráticas básicas. Piñera apoiou-se nesta constituição para decretar Estado de Emergência nacional e atribuir o poder de decisão às forças armadas. O recolhimento obrigatório, a rápida e violenta ocupação das ruas de Santiago pelo exército e a imediata repressão do exercício da cidadania são os primeiros indícios de uma virtual supressão de direitos dos cidadãos. Usada no xadrez político, esta supressão aponta para um novo horizonte de resposta ao descontentamento popular e democrático contra o neoliberalismo pós-globalizado.
Ao afirmar que “o país está em Guerra”, Sebastián Piñera tentou recuperar o terrorismo de Estado para legitimar a repressão. E ao dizer que os protestantes “são aliens” – nem sequer seres humanos –, a primeira dama Cecília Morel tentou excluir do mapa representativo político aqueles que impugnam as elites governantes. Como noutros momentos da nossa história na América do Sul, o Chile é usado como laboratório de “tecnologias” de violência estatal que asseguram o avanço do neoliberalismo. Mas o Chile não está em Guerra: é o Estado militar que deseja fazer uma guerra contra a liberdade de expressão da maioria.
Apoiando irresponsavelmente estes desenlaces, os meios de comunicação internacionais descrevem as recentes revoltas populares na América do Sul como “insurreições desordenadas”, “irracionais”, “criminais”. Vaticinam, ademais, que são eventos violentos antidemocráticos que, devido à sua “natureza” caótica, só podem fracassar. Insistem em personificar os desastres políticos regionais e atribuem-nos a imperícia de certos políticos de direita que, “apesar das boas intenções”, “não souberam fazer bem as coisas”; “foram ineptos”, “perderam o rumo” ou, inclusive, merecem o qualificativo de “idiota” (sendo que há pouco eram celebrados como “grandes líderes” pelas altas esferas económicas, e com a benção do Fundo Monetário Internacional).
No Equador, por sua vez, a contra-hegemonia se entrelaça na sociedade civil organizada. A partir do movimento indígena camponês construiu-se uma expressão pública de rejeição às reformas e cortes anunciados por Lenin Moreno (que, como aconteceu na Argentina de Macri, tentavam responder às exigências do Fundo Monetário Internacional). A Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) foi central em toda esta articulação. A sua experiência histórica e protagonismo político são difíceis de ignorar: participou da derrocada de diversos presidentes nos últimos 25 anos; entre eles, Abdalá Bucaram (1996-1997), Jamil Mahuad (1998-2000) e Lucio Gutiérrez (2003-2005). Aqui, a insurreição social começou pela tomada do espaço público da capital do país, Quito, por um setor social organizado como grupo de pressão. Mas tornou-se nacional na medida em que outros setores e grupos afinaram os slogans e saíram ás ruas para resistir à reviravolta neoliberal. A contra-hegemonia ao neoliberalismo aparece, uma vez mais, emoldurada nas regras do Estado democrático, mas a resposta dos poderes públicos manifesta na atuação do exército, na declaração do Estado de Exceção e no recolher obrigatório, constitui uma tentativa de ruptura desta moldura. A densidade da mobilização popular, a sua massividade e resistência nas ruas do país por doze dias seguidos, conseguiram que o Estado recuasse. A resposta desde a hegemonia é instável, mas aponta para uma vitória do movimento social organizado que tem como efeito revalidar o marco democrático.
No caso argentino, a aprendizagem social da crise de 2001 marcou os limites e as possibilidade de lideranças políticas na atualidade. Nos inícios do século XXI, o descrédito popular em relação à política marcou os protestos e a expressão de uma raiva acumulada durantes anos de perda de direitos, poupanças, e poder de compra. As manifestações foram reprimidas brutal e impiedosamente por forças de segurança e as mortes contabilizadas significaram um trauma político e uma profunda aprendizagem. Esta aprendizagem refere-se às contas dos custos sociais, económicos e políticos num contexto de ruptura de toda a contenção social.
A nova e radicalizada experiência neoliberal de Cambiemos levou o país, durante quatro anos, a níveis de desemprego e inflação tão ou mais graves do que em 2001. Mas, neste caso, o capital social e político dos acontecimentos de 2001 permitiu que as forças opositoras buscassem construir uma coligação que, atendendo às expectativas médias da sociedade, pudesse apresentar-se como alternativa eleitoral. Construí-la foi uma verdadeira odisseia: basta dizer que é a primeira vez que existe com tanta transversalidade em mais de 70 anos do peronismo.
Aqui, a resposta ao neoliberalismo afirmou-se a partir da experiência do estilhaçar anterior. A frente eleitoral, que procurou evitar a repetição histórica da crise, foi apoiado maioritariamente nas eleições Primárias Abertas e Obrigatórias (PASO) de agosto. A contra-hegemonia ao neoliberalismo nasce do processo eleitoral, emoldurada pelas regras mais clássicas – para descrevê-las sumariamente – do Estado democrático. A resposta das forças hegemónicas – que agora detêm o poder do Estado – parece, pelo menos até agora, aderir também a esta estrutura.
Horizontes críticos
Estes desenlaces políticos, tal como a minha avó recomendava ao dar-me um prato de sopa quente, têm de ser levados a boca com prudência e dos cantinhos do prato. A partir desta posição excêntrica – que vai da periferia ao centro do processo político –, podemos observar com mais agudeza dois pontos centrais.
Primeiro: se há algo de irracional e violento nas revoltas sul-americanas não é certamente a resposta de uma população que, saturada, toma as ruas e queima automóveis, edifícios e infraestrutura pública. O irracional é antes a atuação de uma elite política e económica que espera que o brutal processo de destruição das classes populares e médias – através das perdas de direitos e de acesso a consumos básicos (alimentação, medicação, transporte, saúde, reforma ou educação) – sejam pacificamente aceites por quem o padecerá. Por detrás desta expectativa, está a crença de que as pessoas aceitarão de forma apática e silenciosa as medidas que podem resultar na sua aniquilação. É necessário um elevado nível de irracionalidade para supor que os/as cidadãos/ãs de um país democrático aceitarão quietinhos um anúncio como o das 53 medidas de corte que Lenin Moreno anunciou no dia 3 de outubro.
A irracionalidade aqui é totalmente das elites. Como assinalou Alejandro Grimson, as elites sul-americanas foram predatórias e autodestrutivas em diferentes momentos históricos (o atual dista muito de ser o primeiro ou uma exceção), mas também têm a curiosa mania de apontar a população como fonte de toda a irracionalidade política.
Segundo: Mesmo que reconheçamos a inaptidão particular de certas figuras políticas dos direitos sul-americanos, o problema que enfrentamos aqui não pode ser subsumido à impostura ou má conduta individual. Esta explicação, muito de acordo à noção neoliberal de individualismo político, mascara algo muito mais difícil de digerir e de assimilar: o problema é o modelo. O neoliberalismo constitui um sistema de destruição massiva. É insustentável como regime e a sua reprodução está claramente em xeque.
Na Argentina, no Equador e no Chile, o povo diz “não” ao avanço neoliberal pós-globalizado. Fá-lo agora, como no passado. Esta negativa contempla resistências heterogéneas que, ainda que em uníssono, traduzem um infinitas demandas sociais. Recusa-se o ataque político ao direito das minorias; recusa-se a normalizada e agudização das injustiças sociais e da desigualdade em diversas expressões; impugna-se a validade representativa de um discurso político que imobiliza a polarização entre adeptos e dissidentes do neoliberalismo como um abismo intransponível. Porém, ao mesmo tempo, também se grita pelo acesso ao consumo; ao direito de não viver endividado. Nos diferentes slogans, a luta pela dignidade parece expressar a condensação desta complexidade de representações da identidade cidadã. A violência aparente destas enunciações é absolutamente proporcional à que exercem sobre nós aqueles que impõem o neoliberalismo como destino histórico. Nenhum povo é obrigado a aceitar passivamente as condições da sua aniquilação ou marginação.
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O ruído do intervalo chega-nos como um trovão e se escuta a partir de diferentes latitudes da América do Sul. Vivemos o rebentar do neoliberalismo na sua versão mais recente. Sabemos que se trata de um modelo com grande expansão; que se reinventou inúmeras vezes nas últimas quatro décadas, sempre com resultados brutais. Mas também observamos os novos e claros limites que se vêm construindo com o seu avanço aqui e em outras partes do globo. Como noutros momentos, temos a esperança de superá-lo; e somos suficientemente lúcidos para compreender que caminhamos sobre um campo minado.
Artigo originalmente publicado na revista Anfíbia.