Os Olhos Negros de Toni: homenagem a Toni Morrison um ano após a sua morte

Toni MorrisonToni Morrison5 de Agosto de 2020. Faz hoje um ano da morte de Toni Morrison (TM) aka Chloe Ardellia Wofford (1931-2019). Recordo-me que, na altura, entrava fascinada e vagarosamente no seu universo e, de repente, ela escapava-se-me, aos 88 anos. Deixou mais de uma dezena de livros – romances, contos, peças de teatro, livros infantis e crítica literária –, e inumeros vídeos incontornáveis: documentários, entrevistas, discursos e conferências. Além do mais, a sua obra originou um manancial de artigos, teses e reflexões. Com tudo isto, como podia eu responder às perguntas que no dia a seguir à sua morte uma jornalista me fazia, apressadamente, por telefone? Que poderia eu dizer que não fosse apenas uma rendição total ao trabalho, carisma e ícone em que se transformou TM? Que fazer para além de confessar o que sentia revelar-se em mim quando a lia?  

Talvez por essa razão tenha demorado a escrever este texto e, ainda assim, não esteja certa de conseguir o que queria. Paradoxalmente, a escrita beneficiou dos meses de confinamento da pandemia COVID-19 – meses que fustigaram tanta gente, sobretudo mulheres negras. Elas, os seus corpos e as suas mãos negras desinfectaram e limparam maçanetas, corrimãos, superfícies e bancadas, corpos de doentes e idosos. Foram elas que durante a quarentena da classe média branca mais se arriscaram nos transportes públicos apinhados. Ao final do dia, cansadas, depois de garantirem as condições sanitárias dos outros, retornam aos bairros da periferia nos quais as condições de vida não se coadunam com o distanciamento social decretado e o confinamento é imposto à força da repressão e da bastonada. 

Em Portugal, por decisão estatal não há recolha de dados étnico-raciais (quem não sabe é como quem não vê, ou quem não quer ver é como quem não quer saber?). Porém, em países onde existe recolha percebe-se que a população negra está sobre sobrerepresentada entre as vítimas da pandemia: no Reino Unido é quatro vezes mais provável morrerem com COVID-191; nos EUA a taxa de mortalidade com o vírus é três vezes superior à da população branca2; no Brasil – onde sabemos que a recolha de dados relativa à pandemia tem sido sabotada e por isso dá-se uma subavaliação da gravidade da situação – sabe-se que, enquanto 55% da população negra infectada acaba por falecer, na população branca infetada a taxa de mortalidade corresponde a 38%3

Se Toni estivesse viva haveria de contar tudo isto à sua maneira, literariamente impecável, e pontiaguada na  crítica. Haveria de pronunciar-se sobre o assassinato de George Floyd e as mobilizações à escala global do Black Lives Matter/Vidas Negras Importam. Não o fará mas o património que nos deixa permite imaginar como os “olhos negros da Toni” haveriam de enquadrar, sob uma outra perspetiva, o assassinato de Giovani Rodrigues e de Bruno Candé e a agressão policial a Cláudia Simões. Procuro analisar essa outra “perspectiva”, num registo exploratório, que entra menos por questões literárias e mais pelo modo como o seu trabalho nos oferece ferramentas para pensar outras representações. 

TM celebrando o Prémio Nobel.TM celebrando o Prémio Nobel.

TM deu importantes contributos para a construção de um imaginário próprio sobre a subjectividade e experiência das mulheres negras na diáspora, centralizando a interseção entre raça, género e classe. O seu universo literário fala da e para a mulher negra – talvez da linha de Sintra ou Margem Sul – que não se encontra representada em nenhum livro, submetida à representação de escravizada, servil e invisível; de “indígena” animalizada; de assimilada, de “mulata” hipersexualizada ou tão branqueada que desaparece. Além do mais, durante o tempo que foi editora sénior da Random House (1965-1983), TM criou espaço para a produção cultural negra, publicando (auto)biografias como as de Angela Davis, Huey P. Newton e Muhammad Ali; romances e poesia de autores afro-americanos como Gayl Jones, Toni Cade Bambara e Henry Dumas, e também africanos através da colectânea de textos Contemporary African Literature que incluía, entre outros, trabalhos de Wole Soyinka e Chinua Achebe. Organizou e editou uma antologia de fotografias, ilustrações, textos e outros documentos da experiência negra nos EUA, da era da escravatura/escravização à década de 1920, The Black Book (1974). Por fim, já enquanto professora universitária, ofereceu-nos, na sua produção não-ficcional, meios para mapear e decifrar a branquitude no cânone literário norte-americano, como adiante veremos.

Na origem deste engajamento encontramos idiossincrasias familiares e pessoais, mas também o contexto histórico-político em que TM se constituiu com escritora. Nasceu e cresceu na era Jim Crow, contemporânea de duas fases importantes da mobilização política afroamericana. Ela não só atravessa, ainda jovem, todo o período do Movimento pelos Direitos Civis, como inicia o seu percurso de escritora no auge do Movimento Black Power das décadas de 1960 e 1970, num momento em que o feminismo negro conquistava particular visibilidade e capacidade organizativa num contexto de efervescência do Black Arts Movement. Contudo, se o trabalho de TM é marcado por um compromisso ético e político, a sua relação com a militância organizada era distanciada, como refere numa conversa com Pierre Bourdieu4, havia algumas tensões com os movimentos sociais afro-americanos, quer porque deles discordou pontualmente (lembremo-nos da sua crítica à bandeira Black is Beautiful5), quer porque algumas das suas obras, ao sublinhar problemas que também são internos à comunidade negra, não foram inicial e inteiramente bem recebidas pelos próprios movimentos sociais. É o caso de The Bluest Eye (1970), o seu primeiro livro. Aí, TM relata o percurso de Pecola Breedlove, uma menina negra que sonha ter “olhos azuis”. É uma história no feminino sobre a interiorização do “olhar branco”, a prisão das representações racistas (pickaninny, mammy, coon, sambo, etc.) sobre nós mesmas, o colorismo, a violência de género e sobre como tudo isso, desde tenra idade, interfere na capacidade de nos amarmos e às outras/os. 

TM e Wole SoyinkaTM e Wole SoyinkaQuando a li pela primeira vez pensava que ela contava histórias sobre personagens, lugares, objectos e enredos referentes ao universo das pessoas negras. Sim, mas não só. Soube-me tão bem, tinha tanta fome de ver esses retratos que eram, em muitos aspetos, o meu próprio retrato ou o que poderia ter sido. De vez em quando, num rasgo, eu via-me refletida ali, como quem ao abrir uma porta dá consigo, inesperadamente, de corpo inteiro, reflectida num espelho. Mas havia algo mais, algo que se movia, embora não conseguisse descodificar exatamente o quê. 

Não se tratava apenas da maestria literária na construção de narrativas não-lineares, dos ziguezagues temporais com largos e bruscos saltos de avanço e recuo no tempo narrativo, ou no uso de um fluxo de consciência polifónico, em que são várias, e por vezes dissonantes, as vozes, ou o facto de a história ser orquestrada sem um/a narrador/a omnipresente. Somos, por ela, conduzidos a “buracos” de não-definição, que exigem ao leitor criatividade e envolvimento activo no seu preenchimento. Tampouco se tratava apenas da riqueza dos seus ambientes, em que o fantasmagórico, o terror e o insólito convivem de mãos dadas com uma magia de tonalidades primaveris e com as praticalidades triviais da vida quotidiana. Não se tratava também da eloquência na confrontação política ou na reabilitação da imagem do negro e da negra, propósitos aliás não explicitados. 

Mas então o que era aquilo que se movia e que eu, inicialmente, só podia pressentir?

Um marco central da obra de TM é a construção de um imaginário literário que tem por referência a mulher negra norte-americana, mas não num sentido panfletário ou de reabilitação romantizada. Não se trata apenas de uma representatividade numérica ou de colocar mulheres negras em papéis de destaque – é contá-las com contradições, anti-heróicas, corroídas e corroendo as malhas da dominação. É o caso de Seth que, com o assassinato brutal da sua filha, Amada, transgride a ordem escravocrata colocando-se não mais como objecto, mas como sujeito de amor e emancipação. Pagando o preço de uma vida e morte assombradas, Seth e Amada seguram, como podem, as rédeas do seu destino (Beloved, 1987). Refira-se também Sula, protagonista do romance com o mesmo nome (1973), que se irá confrontar com as tensões de uma vida de intensa liberdade e de teste sistemático ao amor. Outra personagem inesquecível é Pilate, em The Song of Solomon (1977). Nascida sem umbigo, com um brinco enigmático na orelha e uma aura mágica, Pilate guia os passos de outros e segura, desapegadamente, as pontas das relações partidas da sua genealogia familiar e comunitária. 

TM e James BaldwinTM e James Baldwin

TM mobiliza amiúde o arquétipo da anciã negra, com uma forte carga espiritual negro-africana (não necessariamente com poderes mágicos), conselheira sábia, guardiã da memória e dos valores colectivos, griot feminina, como é o caso de Pilate, mas também de Baby Suggs, em Beloved; de Thérèse, em Tar Baby (1981); ou da “old woman, blind but wise” que TM evoca na palestra que deu quando foi distinguida com o prémio do Nobel da Literatura, em 19936. Este arquétipo é, aliás, uma marca da literatura negra feminina, incorporando em personagens tão diversas como Tituba de Maryse Condé (1986), a tríade Eyabe, Ebeyse e Ebusi que Léonora Miano (2013) desenvolve em A Estação das Sombras (2013) ou Vó Rita em Becos da Memória e Nêngua Kainda em Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo (2006 e 2003). As questões da interseccionalidade são também abordadas por TM sem recorrer a (anti)heroínas, como acontece, por exemplo, em Tar Baby (1981), Paraíso (1997), Love (2003), God Help the Child (2015) ou Home (2012), onde as cicatrizes do racismo, do sexismo e dos conflitos de classe internos e externos à comunidade negra se entrelaçam. 

Não era também apenas o facto de a sua ficção se sustentar numa arguta contextualização histórico-sociológica, que recusa a “grande narrativa” dos vultos e eventos eleitos pela historiografia, colocando no centro a experiência das pessoas “comuns” e do quotidiano. Por exemplo, Beloved (1987), Jazz (1992) e Paraíso (1997) formam uma trilogia na qual são exploradas formas afro-americanas distintas de expressão, respectivamente as slaves narratives, a polifonia e poliritmia do jazz e a linguagem litúrgica dos sermões e do gospel das igrejas protestantes afro-americanas. Mas para além disso, as três obras remetem para configurações históricas da experiência negra na sociedade norte-americana, entre meados do séc. XIX e XX. Este substracto histórico da obra de TM não serve somente para “acertar” os detalhes do cenário, serve à própria criação de personagens e enredos que, entre outras coisas, traduzem características e tensões de uma dada configuração histórica negra. 

Em Amada, quando TM se debruça sobre a resistência à escravatura de uma mulher negra no sul rural, oferece-nos aqui e ali pistas sobre o movimento abolicionista e o Underground Railroad. Os dois livros seguintes acontecem (seja em retrospectiva ou não) no período pós-Guerra Civil (1861-1865) e da abolição da escravatura (1862), recobrindo a era da Reconstrução (1865-1877) e o backlash de quase um século de regime Jim Crow (1880s-1960s). Uma das configurações que surgirá do período da Reconstrução foram as vilas negras – as chamadas Freedmen’s town ou All-black towns – de que nos dá conta Paraíso (1997) através da comunidade ficcionada de Ruby (e da sua ancestral, Haven). Estes eram territórios constituídos e governados por negros, formando uma espécie de enclave e protecção perante o regime Jim Crow, mas também, paradoxalmente, condenadas a não se desenvolver devido à segregação e perseguição. Paraíso, a sua história e personagens, expressa os paradoxos do colorismo na América segregacionista, o confronto entre os negros libertos que formaram as cidades negras e o Movimento pelos Direitos Civis na década de sessenta.

Em certos aspectos, Paraíso (1997) recorda-me um outro clássico incontornável da literatura afro-americana feminina, De Olhos Pousados em Deus, de Zora Neale Hurston, escritora e antropóloga. Também aí o cenário é uma cidade negra – Eatonville – e também aí se aborda a luta de mulheres negras anónimas pela sua emancipação. Zora foi uma figura central e controversa do Harlem Renaissance, dos anos 1920. Morrerá na miséria e será praticamente esquecida até ser “desenterrada” pela pena de Alice Walker7, a autora de outra obra célebre A Côr Púrpura. Nestas três histórias, encontramos personagens femininas complexas, cheias de contradições, violentadas no seu caminho de transgressão e libertação, encurraladas pelo racismo e machismo no interior e exterior das comunidades negras. Seja o amor livre e independência das mulheres do “Convento” que TM nos oferece em Paraíso; seja a aventura de Janie na sua entrega a um amor sem outro interesse que não o próprio amor, contada por Zora; seja a longa caminhada de independência e o amor lésbico de Celie por Shug Avery em a Côr Púrpura, estas três obras dão um importante contributo para o imaginário feminino e feminista negro.

TM e Angela DavisTM e Angela DavisA segregação, o Ku Klux Klan, os ataques racistas provocados por multidões brancas, linchamentos, a destruição pelo fogo e pela bala de comunidades negras prósperas (caso de Tulsa, conhecida como Black Wall Street e destruída em 1921) e o garrote económico a que estavam sujeitos nos estados do Sul, foram factores importantes na formação de uma migração em massa para o Norte. A chamada Grande Migração (1916-1970) irá mudar a face dos EUA, constituindo os bairros negros das grandes urbes norte-americanas e movimentos político-culturais como o Harlem Renaissance, realidade que TM retrata em Jazz (1992). Esse contexto histórico de declínio do mundo rural das plantações sulistas e de ascensão do Norte industrializado e terceirizado expressa-se na história e quotidiano de Viole(n)t, Joe Trace e Dorcas, no seu sentimento de deslocamento, nas suas disrupturas interiores e amorosas, na brusquidão dos (des)afectos. 

Mas talvez o que mais me fascina é que TM liberta-se do “olhar branco” (white gaze) do seu universo literário. Com dez anos a separá-los, This Amazing, Troubling Book (1996), Playing in the Dark – Whiteness and the Literary Imagination (2007) e A Origem dos Outros – Seis Ensaios sobre Racismo e Literatura (2017) são textos não-ficcionais de análise crítica literária que, na senda de autores, como James Baldwin, buscam refletir sobre o racismo colocando a tónica, não nos racializados, mas na forma como a branquitude estrutura o imaginário literário. Escalpelizando grandes obras literárias do cânone norte-americano e fundamentais na construção da identidade nacional (William Faulkner, Edgar Allan Poe, Mark Twain, Ernest Hemingway, entre outros), TM segue o rastro da utilização de figuras negras nesses clássicos e mostra-nos que, para além da fixação dessas personagens à condição de escravo ou outra categoria de subalternidade, das formulações racistas explicitamente aviltantes ou paternalistas, existem níveis menos visíveis de estruturação racial do imaginário literário. 

TM mostra-nos que a utilização de figuras negras tende a surgir como resposta às necessidades de uma narrativa que é produzida, na maior parte dos casos, por escritoras/es brancas/os, mas que sobretudo se dirige a e coloca no centro (com maior ou menor consciência) um leitor branco virtual tomado como “universal” e “a-racial”. As figuras negras tendem a ser utilizadas como forma de ignição de momentos de ênfase (descoberta, mudança, intensificação, etc.), servem de atalho metafórico para, graças à economia do estereótipo e respetiva cadeia de significados, sem muito trabalho criativo, colorir, dar emoção, humor, para viabilizar reflexões morais, exorcizar a culpa e proporcionar uma introspecção moral do leitor branco. Esta limitação a um papel de “mediação” ou de “meio” para impelir uma narrativa, esta construção da figura negra como um “outro” esvaziado de um sentido próprio, isto é, a natureza parasita da branquitude, são todas formas de desumanização. 

TM e Alice WalkerTM e Alice Walker

Na sua obra ficcional, TM construiu um imaginário literário em que os negros da diáspora estão verdadeiramente no centro, enfrentando o desafio de construir histórias que sendo racialmente específicas não fossem racistas e que não querendo ser racistas não caíssem na ratoeira do (pseudo-)universalismo “colorblind”. As histórias são sobre negras e negros norte-americanos e têm como referência uma leitora imaginária negra. O “leitor branco” – as suas dúvidas, medos, curiosidades, referências, etc. – não são o centro da construção da narrativa. Numa entrevista à jornalista Jana Wendt (JW), TM diz que, na sua escrita, “a alegoria ou o paralelo é a música negra. Porque a música negra é esplendida, complicada e maravilhosa como é, porque a sua audiência estava lá dentro, a sua audiência original. (…) E também queria sentir-me livre, não ter o “olhar branco” (white gaze) neste sítio que é tão precioso para mim” (1998).

Toni Morrison interview with Jana Wendt (1998):

 

A luta e o trabalho de Toni Morrison foram libertar-se (e a nós) de ter que gerar empatia ou culpa aos leitores brancos, de ter que os confrontar, convencer, confortar, seduzir, entreter, antecipar os seus medos e curiosidades, e poder centrar-se no seu mundo visto a partir dos seus próprios olhos. Isto não significa que essa produção artística não possa ser apreciada e recriada por outros, a questão é que no processo da sua criação, nem ela nem a/o escritor/a, tenham que se “desconectar” ou “periferizar” aquela que é a sua identidade e humanidade. Ora frequentemente este princípio da sua escrita foi questionado, sendo a referida entrevista um exemplo paradigmático disso:

JW: Pensa em alguma vez mudar e escrever livros que incorporem, de forma significativa, vidas brancas?

TM: Você não consegue imaginar o quão poderosamente racista é essa pergunta, pois não? Ninguém alguma vez perguntaria a um autor branco “Quando é que você vai escrever sobre pessoas negras?”. Até mesmo esse questionamento vem de uma posição que é a de se estar no centro. (…) Ser um escritor afro-americano é mais ou menos como ser um autor russo que escreve sobre a Rússia, na Rússia, para Russos. O facto de se ser traduzido e lido por outras pessoas é um benefício, é um plus, mas ele não é obrigado a, nem a ter de considerar, escrever sobre franceses ou americanos ou outros.

Os desafios que aqui discuti colocam-se às escritoras e escritores negros que os enfrentam de formas distintas, como fica patente no trabalho de toda uma nova geração de autores afrodescendentes em Portugal. São questionamentos presentes em obras como O Canto da Moreia (Luísa Semedo, 2019), Um Preto muito Português (TVON, 2017), Essa Dama Bate Bué! (Yara Monteiro, 2018), Esse seu Cabelo (Djaimilia Pereira de Almeida, 2015), Os pretos de Pousaflores (Aída Gomes, 2011), assim como em Também os Brancos Sabem Dançar, O Angolano que Comprou Lisboa e Estórias de Amor para Meninos de Cor (2011) (Kalaf Epalanga, 2018, 2014 e 2011 respetivamente) ou em Debaixo da Nossa Pele: Uma viagem e A Verdade de Chindo Luz (Joaquim Arena, 2017 e 2006). Na poesia, Ingenuidade Inocência Ignorância (Raquel Lima, 2019), a obra colectiva Djidiu – A Herança do Ouvido (Afrolis, 2018), Dois corvos amarelos (Bernardete Pinheiro e Matamba Joaquim, 2018) e Erosão (Gisela Casimiro, 2018), aquelas questões são levantadas, tal como no fanzine Hair (Andreia Coutinho, 2018) e no livro infantil O Pequeno Rasul (Akil de Sousa e Andreia Tavares, 2018).

Ilustração da Kara Walker aquando da morte da Toni Morrison.Ilustração da Kara Walker aquando da morte da Toni Morrison.Fecho este texto com algumas considerações exploratórias sobre a recepção do trabalho de TM em Portugal. Uma parte das suas obras foram recentemente traduzidas pela Editorial Presença. É o caso de Love (2019 [2003]), Deus Ajude a Criança (2016 [God Help the Child, 2015]), A Dádiva (2016 [A Mercy, 2008]), A nossa casa é onde está o coração (2015 [Home, 2012]) e, claro, a muito aclamada e premiada Beloved (2018 [1987]) que já havia sido traduzida, em 1989, pela então Difusão Cultural, com o título Amada, uma edição esgotadíssima. Não se pode dizer, portanto, que TM seja uma desconhecida em Portugal. Mas será verdadeiramente conhecida? Sabemos que os seus textos, politicamente tão duros, são por cá traduzidos sem que se estabeleça ligação com os debates actuais sobre o racismo e o sexismo ou com o mundo literário afrodescendente. Indicativo disso são as sinopses (ver anexo) em que se assiste a um quase esvaziamento das relações de poder – de classe, raça e género – e do peso da história, numa terraplanagem que quase coloca a sua obra na categoria de romance “delicodoce”. Mas, então, quem são as leitoras e leitores dos seus livros? Serão deglutidos nas férias de verão da classe média branca, que a lê entre um mergulho e uma palitada nos dentes? Ou há uma comunidade de leitores atenta ao caráter crítico da sua obra e ao trabalho de descolonização literária que TM desenvolveu? Quantas leitoras e leitores negros se encontraram com o trabalho de TM em Portugal?

Um ano depois, despeço-me da Toni que tanto nos inspira e inspirará, que nos deixa um imaginário descolonizado da mulher negra, que construiu ferramentas para que possamos desembaraçar o nosso imaginário das armadilhas da “dupla consciência” (W.E.B. Dubois) e da “zona de não ser” (Frantz Fanon). Adeus Toni, és enorme. Rest In Power.

 

Listagem de sinopes das traduções portuguesas de obras de Toni Morrison 

Love (2019 [2003])

Sinopse: “May, Christine, Heed, Junior, Vida - e a própria L - são mulheres obcecadas por Bill Cosey. Desejam-no como pai, marido, amante, protetor e amigo. Esta visão ousada de uma genial contadora de histórias sobre a natureza do amor - o desejo, o sublime sentimento de posse, o deslumbramento incontrolável - é rica quer em personagens poderosas e acontecimentos dramáticos, quer numa sensibilidade intensa à forma como o passado continua vivo dentro de nós. Sensual, melancólica e inesquecível, Love é uma obra que encerra o círculo de um primeiro amor, indelével e extasiante, que nos marca para sempre.”

 

Deus Ajude a Criança (2016 [God Help the child, 2015])

Sinopse: “No centro do primeiro romance da autora ambientado na atualidade, está Bride, uma jovem ousada, confiante e bem-sucedida, de uma beleza extraordinária, «negra como a noite, negra do Sudão». Mas a mãe, Sweetness, de tez mais clara, nega à filha a mais simples forma de amor, precisamente por causa do seu tom de pele. Às vezes é preciso uma vida inteira para perceber «que o que fazemos aos nossos filhos importa. E que eles podem nunca esquecer.» Depois há também Booker, o homem que Bride ama e que vive atormentado pelo passado, e Rain, uma misteriosa criança branca que cruza o seu caminho. Neste romance intenso e provocador, Toni Morrison mostra-nos como a infância afeta todos os aspetos da vida adulta, como uma música de fundo que nunca deixamos de ouvir.

 

A Dádiva (2016 [A Mercy, 2008]

Sinopse: “Da autoria da primeira mulher negra a ser distinguida com o Prémio Nobel da Literatura (1993), A Dádiva é um romance extraordinário que se passa na América do Norte de finais do século XVII. Profundas divisões sociais e religiosas, opressões e preconceitos exacerbados propiciam o cenário ideal para a implantação da escravatura e do ódio racial. Jacob Vaark é um comerciante anglo-holandês que apesar de se manter à parte do negócio dos escravos, que então dá os primeiros passos, acaba por aceitar uma menina negra, Florens, como pagamento de uma dívida de um fazendeiro de Maryland. Nesta parábola do nascimento traumático dos Estados Unidos, Morrison revela-nos o que se esconde sob a superfície de qualquer tipo de sujeição, incluindo a da paixão, e o quanto essa falta de liberdade é nociva para a alma.”

 

A nossa casa é onde está o coração (2015 [Home, 2012])

Sinopse: “Frank Money regressa da guerra da Coreia em luta com os seus fantasmas. É um homem perturbado por um profundo sentimento de culpa pelas atrocidades que se viu obrigado a cometer e pela relutância em voltar à sua cidade natal na Georgia, onde deixou dolorosas memórias de infância e a pessoa que lhe é mais querida, a irmã. Mas quando recebe uma carta avisando-o de que Cee corre risco de vida, Frank regressa, atravessando uma América dividida pela segregação. Através desta viagem, e da viagem interior que o protagonista vai fazendo, a autora dá-nos a definição do que é o lar, o lugar onde estão os nossos afetos, numa combinação entre a realidade física e social e a subtileza psicológica e emocional.”

 

Beloved (2018 [1987])

Sinopse: “Inspirado num facto verídico ocorrido no Kentucky em 1856, Beloved retrata o horror e a insanidade de um passado doloroso, numa época em que o país começava a confrontar -se com as feridas deixadas pela escravatura recém-abolida. Neste romance, Sethe, ex-escrava, mata a sua própria filha, ainda bebé, para que esta escape ao destino indigno e atroz da servidão. Consegue fugir para Cincinatti, Ohio, onde cheia de esperança pensa poder viver uma nova vida. Mas, dezoito anos mais tarde, coisas horríveis começam a acontecer: Sethe ainda não é uma pessoa livre, a sua casa não só é assombrada pelas memórias torturantes do passado, como também pelo fantasma da bebé que morreu sem ter um nome e em cuja sepultura está gravada uma única palavra: Beloved. Considerado pelo New York Times um dos romances mais importantes do século XX e vencedor do Prémio Pulitzer, Beloved é o mais famoso livro de Toni Morrison, distinguida com o Prémio Nobel da Literatura. Um retrato realista e pungente da condição cruel e infame dos negros americanos durante o século XIX, narrado com virtuosismo e arte.”

 

Amada (1989 [1987])

Sinopse: “Nos anos que se seguem à Guerra Civil Americana, um fantasma persegue, dia e noite, a ex-escrava Sethe – o fantasma da criança que ela preferira matar a ver perdida no mundo da servidão. Com a chegada de Paul D, um antigo companheiro dos tempos da escravatura, o fantasma desaparece, aparentemente. Para regressar, depois, na impressionante figura de Amada, a mulher que procura ao mesmo tempo o amor e a vingança. Um romance apaixonante e memorável, que ultrapassa as fronteiras da realidade e da magia.”

por Cristina Roldão
A ler | 5 Agosto 2020 | branquitude, EUA, Literatura, machismo, racismo, representações, sexismo, Toni Morrison