O que se pode fazer ao ver com os olhos de um outro

Loup de verdure  | 2017 | Louise Narbo (cortesia da artista)Loup de verdure | 2017 | Louise Narbo (cortesia da artista)Decidi partilhar a minha recepção à exposição de fotografias de Louise Narbo, por considerar que ela expõe algumas das interrogações que as memórias herdadas do passado podem colocar a quem resolve explorá-las. Primeiro, porque o título dessa exposição apresentada na Galeria Adorna Corações no Porto - Ver com os Olhos de um Outro[fn]Exposição apresentada entre 19 de janeiro e 28 de fevereiro de 2019. - é, por si só, sugestivo para quem - tal como eu - se interessa por assuntos relacionados com a transferência/transmissão intergeracional de memórias. Segundo, porque o que as fotografias de Louise Narbo são particularmente provocadoras no que toca a alguns processos que parecem compor a pós-memória, isto é uma memória “de segunda geração, filha de uma primeira de testemunhas (vivenciais, presenciais, experienciais), marcada pelo silêncio”1.

O que nos é dado a ver decorre forçosamente de outros olhares que não o nosso, como sugere o título da exposição. Mas Ver com os Olhos de um Outro é mais do que essa constatação, uma vez que permite imaginar múltiplas constelações de visões que podem resultar de uma combinação de olhares. Deste modo, o que esta exposição começa por fazer, a partir do seu título, é questionar-nos sobre o que somos capazes de ver desde os olhos de outros. Questão por si só complexa, uma vez que não remete para um jogo simples de substituição de olhares. Quem vê, desta maneira, não o faz apenas através dos olhos de outro. Aquele ou aquela que está a ver, vê também a partir de um corpo que equivale a um percurso de vida acumulador de experiências, de sensações e de sentidos, para além daqueles fornecidos pelos olhos que tomou por empréstimo ou que lhe foram implantados à força. Consequentemente, o que esse corpo vê, embora seja mediado pelo olhar do outro, não pode deixar de ser diferente do que veem os olhos desse outro. Por isso é que não estamos perante uma mera substituição de olhares. O que é sugerido é um processo bem mais complexo de justaposição, articulação, intersecção, cruzamento e confronto de olhares não necessariamente convergentes. Os resultados ou visões que podem derivar dessa justaposição são incontáveis, tendo em conta o número indeterminado de combinações possíveis. O que as fotografias de Louise Narbo nos propõem é a redução dessa combinação a uma relação entre dois olhares particulares: o de uma mulher combinado com o olhar inusitado do seu pai. Esta proposta constitui o elemento a partir do qual ela estrutura o processo de descoberta de uma perceção de si cujo resultado desemboca numa solução, que deixa em aberto, para ultrapassar o problema da justaposição de olhares que ela procura compreender.
A exposição reuniu fotografias de duas séries: Vision fantôme e Jeux de greffes. A primeira corresponde a um trabalho que explora o autorretrato. Através do reflexo da autora num espelho embaciado, a maioria das fotografias revelam pouco mais do que uma silhueta. Alguns desses reflexos desvendam algumas partes de um corpo feminino entre as quais os seus olhos; olhos à vista, desembaciados, mas fechados. Para Louise Narbo esse trabalho, que começou por ser um exercício sobre o avanço da idade, acabou por constituir o ponto de partida para a exploração da representação do campo de visão do seu pai. Isto sucedeu quando, no decorrer deste trabalho, se lembrou de uma outra fotografia, mais antiga, que ela tinha intitulado “o fantasma”. Percebeu que esse fantasma correspondia, provavelmente, ao que o pai dela conseguia ver. Diz-nos Louise Narbo: “Esse momento foi, para mim, uma revelação; a do seu olhar a espreitar na sombra do meu”.
É na serie Jeux de greffes que Narbo explora explicitamente esse olhar do seu pai, afetado pela sua baixa visão, que se foi agravando ao longo do tempo. Nestas fotografias, a artista procura essencialmente descobrir as relações entre o campo visual do seu pai e a sua própria perceção de si e do mundo. Trata-se de um trabalho onde experimenta várias combinações de visões através de diferentes enxertos que implanta nos olhos do seu pai. Um olhar aparentemente estilhaçado pelos fragmentos de elementos que lhe vai aplicando; um olhar turvo ou tapado por diferentes componentes que remetem para formas naturais e artificiais (nervuras, folhas, árvores, céu, nuvens, cordel); um olhar amplificado por óculos que desvelam diferentes tipos de olhos apontados em diversas direções. São olhos enxertados com artefactos que parecem constituir filtros ou acessórios instalados sobre os olhos do seu pai para lhe proporcionar diferentes experiências de perceção da realidade. Esta série inclui também retratos, menos embaciados do que os da outra série, com feições visíveis, mas como que riscadas, rasgadas ou invadidas por alguns dos elementos que constituem diferentes visões possíveis através dos diferentes implantes aplicados aos olhos do pai. Um outro ‘fantasma’ assombra esta coleção, numa foto onde reaparece uma silhueta que se apresenta apenas como uma sombra que tanto pode ser a da própria artista, como a de outra pessoa ou até a de outra coisa qualquer. O que parece jogar-se, neste Jeux de greffes, é um exercício a partir do qual se procuram soluções para o problema colocado pela baixa visão. Na Vision fantôme, a partir desse campo de visão - que ela, de algum modo, incorpora - as fotografias interpelam a perceção que Louise Narbo apresenta de si. Uma perceção desfocada, embaciada, ofuscada; uma perceção pontualmente marcada por tentativas de se tentar ver com os seus próprios olhos que, embora fechados, atravessam ocasionalmente a bruma de vapor colada no espelho por onde passa o seu reflexo. Neste trabalho ela não procura apenas descobrir e compreender como o seu pai vê e como essa visão afeta a sua. Ela explora essa visão através das diversas experiências que vai ensaiando e que desembocam naquilo que me parece ser uma resposta às interrogações que vão decorrendo desse exercício.
Uma resposta que deixa em aberto com a Alice, a fotografia que representa a face de uma mulher a quem implantou olhos de quem vê. Olhos bem abertos e ampliados, que contrastam com os olhos diminuídos do seu pai. Olhos que, desta vez, ela implanta em si mesma e que evocam a possibilidade de adquirir uma outra visão do mundo que não aquela que ela incorporou do seu pai. Uma visão emancipada, mas que não deixa de ser uma visão que também é de um outro. Por isso é que esta proposta, dada através da Alice, não é de todo uma solução que ela apresenta para resolver o problema que o campo de visão diminuído lhe coloca. Trata-se, julgo eu, de uma proposta que deixa em aberto a possibilidade de pensar noutras combinações de olhares possíveis para além daquela que decorre da sua com a do seu pai.
Considero, para terminar, que esta exposição Ver com os Olhos de um Outro desafia a nossa capacidade para imaginar múltiplas constelações de visões possíveis do mundo e de si, muitas das vezes díspares, que podem resultar da justaposição de olhares. Foi, pelo menos, nesse sentido que esta exposição chamou a minha atenção na medida em que as interrogações, provocações, soluções provisórias e abertas que as fotografias de Louise Narbo colocam, em relação à forma como ela vê o mundo a partir do olhar do seu pai, podem interpelar aqueles que se interessam pela problemática da pós-memória. A pós-memória, como a cunhou Marianne Hirsch, descreve a relação que a segunda geração estabelece com as experiências traumáticas que lhe precederam2. Nesse sentido a pós-memória corresponde a um olhar que faz referência a uma relação com o passado que, segundo a opinião da mesma autora, diz respeito a “uma verdade assegurada pela mediação não de lembranças, mas de projeções, de criações e de investimentos imaginativos”3. Esta relação particular com o passado constitui, assim, uma relação condicionada por múltiplas interferências que afetam a transmissão de pontos de vista sobre o passado e que não podem deixar de condicionar os olhares de quem as recebe. Através do trabalho de Louise Narbo podemos interrogar esta relação de quem herda o olhar de um passado através de um outro. Ela sugere que o olhar do outro, que comporta em si certas capacidades, interfere na visão de quem o herda; que esse olhar, diminuído ou amplificado, pode nublar, embaciar, deformar a visão de quem o recebe; mas pode ao mesmo tempo constituir o motivo pelo qual o herdeiro desse olhar se interroga sobre essa visão que não é exclusivamente a sua, mas que também já não pertence exclusivamente àquele que lhe transferiu o seu olhar. E que essa interrogação, que parte, antes de mais, do reconhecimento dessa herança, pode também constituir o ponto de partida para outros olhares que não aqueles que involuntariamente podemos herdar ou incorporar, mas que escolhemos adotar.
Quando vi esta exposição não pude deixar de recordar as palavras de Margarida Calafate Ribeiro a respeito da pós-memória quando diz que se trata de um “poderoso tipo de memória que surge mais do silêncio que das palavras, mais dos fragmentos do que de narrativas completas, mais de interrogações do que de respostas”4Ver com os Olhos de um Outro explora a influência dos fragmentos do olhar do outro num percurso que procura descobrir como o processo de justaposição de diferentes combinações de olhares interfere na construção da visão que se tem de si e do mundo; é um trabalho que examina como os olhares dos outros ocultam, revelam, ofuscam, perturbam e interpelam a visão de quem os herda. Mais do que respostas, o que esta exposição propõe são interrogações em relação não só ao que somos capazes de ver com os olhos de um outro, mas sobretudo ao que somos capazes de fazer a partir do que esses olhos nos revelam.
Louise Narbo nasceu na Argélia onde viveu até 1962, ano em que esse país se tornou independente do domínio francês. Inicia-se na fotografia nos anos 1980 e a partir de 2006 começa a expor o seu trabalho não só em França como também na Bélgica, nos Estados Unidos, em Inglaterra, na Itália e em Portugal.

 

____________________________

 

Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horiz
_______

 

  • 1. Ribeiro, Margarida Calafate (2016), A Casa da Nave Europa - miragens ou projeções pós-coloniais?, in António Sousa Ribeiro; Margarida Calafate Ribeiro (org.), Geometrias da Memória: configurações pós-coloniais. Porto: Afrontamento, 15-42, p.34.
  • 2. Hirsch, Marianne, « Postmémoire », in Témoigner. Entre histoire et mémoire. Revue pluridisciplinaire de la Fondation Auschwitz, no 118, 2014, p. 205.
  • 3. Ibid.
  • 4. Ribeiro, Margarida Calafate (2016), op. cit., p.34.

por Fátima da Cruz Rodrigues
A ler | 23 Março 2019 | Fotografia, Louise Narbo, Memoirs, memória