O Brasil é uma heterotopia

Os acontecimentos e as pessoas também desaparecem no indefinido ou no indiferente onde normalmente são isolados, daí eles se impõem por sua própria força e suas próprias evidências, pela justeza e justiça de suas posições.

- Édouard Glissant, 2009

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Não é a primeira vez que releio esse texto de Michel Foucault, Heterotopias (2013), e já faz alguns anos que venho querendo pensá-lo sob o signo do nosso tempo e espaço, mas nunca tanto como agora. A cratera política que se abre no Brasil, escancarada e aprofundada por um fenômeno mundial, a pandemia, exige mais do que nunca esse gesto: pensar o nosso país na sua singularidade atroz e ao mesmo tempo colocá-lo em relação (Glissant, 2009).

Aliás, a nossa dificuldade para pensar a singularidade em relação indica ainda a gravidade da incidência colonialsobre a nossa sociedade. Ou só pensamos o Brasil, ou só pensamos o mundo, leia-se EUA e Europa, que por sua vez permitem que nos pensemos a partir de suas teorias. Teorias que sobredeterminam o modo mesmo como concebemos o nosso país. Logo, o desafio é ainda o de discutir o local, encontrando laços que criem algum espaço comum, mesmo que sejam espaços conflituosos, e através desse movimento do pensamento entender a nossa dificuldade em denunciar a maneira como o Brasil e os brasileiros são historicamente desrespeitados fora (dentro1) dele. Isso, aliado à nossa fome pelo exterior, participa da mesma necessidade de isolar esse país, para que alguns, dentro e fora, desfrutem com menos empecilhos de suas benesses.

Sua extensão territorial e o fato de ter sido o único país da América Latina que fala o português, também contribuiu para com esse isolamento. A vastidão pode ser muitas vezes uma superfície de desorientação e de absorção – pensem nas experiências no meio do mar, ou do deserto. Mas, de fato, a meu ver, nada é mais estrutural e estruturante em nós do que esse gesto de isolamento, hoje agonizante através da derrocada das instituições brasileiras levada a cabo pelo atual governo, em meio ao próprio processo de isolamento pandêmico mundial. Por isso quando dissemos que aqui uma indignação é mais forte quando trata de algo que aconteceu alhures perpetuamos, mesmo sem saber, esse mesmo gesto2. Isolar significa minorar e diminuir tudo o que é nosso, e com a ajuda daqueles que alimentaram e ainda alimentam essa tese acabamos o serviço tendo que dizer que ninguém nos diminui com tanta eficiência quanto nós mesmos. Diferente disso, pensar o local na relação com o mundo exigiria de nós sermos sempre mais vastos e ao mesmo tempo mais precisos. Aliás, um mundo só existe em relação. E nunca, como hoje, estivemos diante do fato do Brasil não participar mais do mundo e do risco que isso dure. Quando dissemos que juntos somos mais fortes acreditamos mesmo nisso? E de quem o Brasil esteve/está junto? E quem esteve/está junto do Brasil?

Esse gesto de isolamento3 - e seus gestos subsequentes, tais como os do desconhecimento acerca de nós mesmos e dos outros sobre nós, o da imprecisão subsequente, assim como o apreço maior pelo externo - remonta certamente à estrutura colonial, neste caso a das guerras entre nações europeias onde potência significava riqueza e território anexados, leia-se conquistados. A imbricação entre potência e conquista e conquista como dominação é um dos maiores danos do legado viril (macho e branco) do ocidente. Esse gesto – amplo e muitas vezes irrestrito – é perpetrado em maior ou menor grau naqueles que puderam até hoje comandar ou descrever esse país. Com ele vou me debater aqui, relendo Foucault, descolonizando Foucault e até, se necessário, pensando com ele contra ele mesmo.

Heterotopias é um texto que fala dos espaços e dos lugares, logo fala do tempo e é por ele também marcado. O final dos anos sessenta, quando o autor fez essa palestra para o Círculo de Arquitetos de Paris, já não corresponde ao que vivemos hoje. Nem na sua configuração ditatorial, nem no modo como se buscava pela liberdade. Mas o assunto agora não trata das nossas diferenças com os anos sessenta europeus, americanos, brasileiros ou africanos, todos entre si muito diferentes. Mas sim com um Foucault ‘destorcido’ pela nossa cruel tropicalidade.

Sempre achei que esse, como muitos outros textos desses autores brancos e europeus que nos formaram, mereceriam hoje ser revistos através de um exercício que buscasse descolonizar seus pensamentos, e imaginá-los descentrados deles mesmos. Entre o sempre e o possível o fato é que essa revisão é recente e minoritária. Devemos isso ao feminismo e, no Brasil, sobretudo, ao feminismo negro. O fato de ainda termos medo de exercitarmos esse gesto, apesar das mudanças no campo do saber, indica a nossa própria condição de subalternidade, que é por sua vez filha direta do nosso isolamento. E também da nossa infantilidade – posto que seguimos carregando através de um “eterno sempre” a condição de jovialidade. A atribuição dessa qualidade (e defeito) de sermos um ‘país jovem’4 indica também o índice atual da dominação colonial de nosso pensamento, posto que parte do pressuposto de que a história e a cultura desse país começaram apenas quando aqui aportaram os portugueses. Dessa jovialidade deriva também o modo como é tratado: a sua alegria, ah a sua alegria!5 Há sempre algo de permissivo na jovialidade, e na irresponsabilidade juvenil, basta ver a jocosidade irresponsável que pontua o linguajar do presidente eleito em 2018, dividindo, sem precedentes, a nossa sociedade já tão partida por seu cruel apartheid racista.

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Mas descolonizar o pensamento, o nosso e o daqueles que lemos, é, em todo caso, e para qualquer um, um gesto arriscado. Sobretudo em momentos de extrema penúria, desamparo e abandono. Em momentos onde parece que a consciência das injustiças históricas se agudiza, dado a imensa quantidade de tragédias que se abatem sobre nós. Em consequência, em momentos onde tudo isso junto nos leva a acirrar as emoções, e muitas vezes às incompreensões mútuas. Ali onde havia um aliado eis que acabamos, sem querer, criando um inimigo. Quando vemos, nos encurralamos tanto que acabamos jogando para escanteio o que poderia ser, quem sabe, um campo de zonas e de bordas comuns. Deixamos que vá se criando entre nós essa onipotência arriscada, esse FLA X FLU do edifício do pensamento que acha que rever, localizar e buscar marcar o pensamento de certos autores brancos que ainda demonstram alguma potência, para continuarmos o árido exercício do pensamento, deveria equivaler à jogá-los fora – água suja e bebê, tudo no mesmo balde, como se diz.

Tudo isso, em menor grau, decerto, vai ajudando a marcar o nosso tempo sob o signo da destruição e do brutalismo (Mbembe, 2020). Em menor grau porque o jogo do pensamento não se dá sobre o mesmo tempo e espaço onde se decidem as políticas de morte e extermínio, mas está por ele marcado, e quanto a isso todos nós deveríamos estar atentos. A história nos mostrou que o pensamento num ou noutro momento é sempre apropriado pelas tramas e teias do exercício do poder, e pode acabar desembocando em verdadeiros tratados políticos de extermínio.

Ainda assim acredito que nem tudo no jogo da construção de um edifício é para ser dinamitado, mesmo que tudo seja para ser revisto, deslocado e atualizado. Hoje, a meu ver, nada deveria ser dinamitado, dado o risco de seu retorno rápido sobre um corpo social que dele não guardou sequer um traço. Deveríamos estar mais maduros para lidarmos com as ruínas, as salas vazias, a falta de luz e mesmo com a ocupação desse edifício sem precisar destruí-lo por completo. Fazer o contrário acaba por reafirmar como a cultura branca não tem nenhum respeito nem pelo outro nem por ela mesma, autofágica, não se importa de destruir-se, sabendo que sua violência vai impor seu ressurgimento em algum outro lugar. Isso é terrível, num momento onde os velhos morrem, equivale a dizer ah, mas já estavam mesmo velhos. Também não me parece a melhor maneira de combater o retorno do conservadorismo. Ser progressista não significa ser destruidor de tudo pelo que passamos. Deveríamos já sermos capazes de mostrar que conseguimos nos deslocar – e ao edifício - apesar do mundo nos dizer que não podemos, ou que não somos capazes. Somos ainda tão jovens, eles dizem. Acontece que agora e aqui até os jovens estão morrendo. Esse é o nosso país, que mata jovens e velhos. Nele, se seguirmos assim, já não haverá esse tempo da madureza que quiseram nos roubar desde os primórdios. Por isso, a única saída é fazer o próprio tempo. Assim, rasgando e dizendo: ouçam!

Se por um lado destruir nos parece ainda uma alternativa muito branca, deveríamos ressignificar as potências do esquecimento6. Muitos pensadores e um conjunto grande de conceitos que já não nos servem mais talvez mereçam mesmo o lugar do esquecimento. Esquecermos, nesse caso, pode ser algo digno, como criar um lugar heterotópico onde se deixa viver o acervo da humanidade – porque esquecer totalmente não existe, e isso as nossas feridas mais profundas deveriam estar agora mesmo nos ensinando, através da exigência crucial que hoje temos de tirá-las do seu próprio esquecimento.

Mas quais são as nossas maiores feridas, falando desde aqui e agora, o que decerto não era considerado por Foucault7? É tão simples responder que, de fato, só mesmo sendo muito mal caráter para buscar evitar fazê-lo hoje: a escravidão, nunca sanada. Ela cria uma sociedade racista em toda a sua estrutura, onde vigora um apartheid silenciado e mascarado, fazendo com que as relações entre brancos e negros advenha, no âmbito coletivo, uma marca constante da injustiça social e alvo frágil e certeiro das políticas da morte, nunca de fato ultrapassada, e, no âmbito intersubjetivo, uma neurose (Fanon, 1952; Gonzalez, 1984) ou uma constante ameaça. O extermínio histórico e o desrespeito nevrálgico pelos povos ameríndios e suas respectivas culturas. Que no tempo atual assumem as feições de um verdadeiro racismo ambiental nutrido com o apoio das maiores potências mundiais, que hoje querem nos dizer, em meio ao maior ataque que vivemos, orquestrado pelo governo brasileiro e seus financiadores, que eles, ao contrário de nós, sempre cuidaram muito bem de suas florestas. Em seguida, os 21 anos de uma ditadura civil-militar desconhecida por muitos de nós e por quase todos os estrangeiros, e mesmo os mais intelectualizados. Ditadura que produziu mortos, presos, torturados, censurados, jogados nos porões e nas prisões ou internados em asilos de alienados junto com todos os indesejáveis de nossa sociedade, mostrando um conjunto de gestos e ações que caracterizará, mais uma vez, expandido para além das populações negras e indígenas, o ideal de limpeza que subjaz nesse país.

Aqui se deve, no entanto, sublinhar um outro elemento que hoje retorna grosseiramente: a ideia de que o desejo de justiça e de mudança em sua potência de esquerda, quer dizer, de força maior do Estado de bem estar social, de transformação das bases e das massas, equivale à configuração de mentalidades e subjetividades assassinas e/ou usurpadoras. Isso foi criado, fixado e caracterizado pela ditadura civil-militar no Brasil. Ali onde nutrir ideias de justiça social equivalia a ser assassino, ou moralmente desprezível. Toda uma desmoralização do individuo de esquerda que hoje retorna e avulta de forma aviltante. Todos esses gestos e traços indicando não apenas uma democracia frágil, ou melhor, a ausência de um verdadeiro estado democrático e sua aptidão constante para o silenciamento e o apagamento de seus próprios traços ultra autoritários. Alias, é preciso entender que a nossa ausência de arquivos, comumente atribuída à nossa ausência de memória (um país novo não tem memória, não é mesmo?), nada mais é senão que o gesto material que apaga no plano simbólico os textos correspondentes aos corpos silenciados em vida. Ou seja: a ausência de arquivo enquanto instituição pública e patrimônio de direito equivale à naturalidade do extermínio de corpos em políticas públicas de ‘segurança’. Ou ainda: no Brasil, aos gestos de apagamento (desmonte e destituição) de arquivos correspondem políticas de extermínio de corpos. Nosso problema nunca foi falta de memória e sim manipulação e aniquilamento de traços.

Sobre essas constatações prévias é que desenvolverei a hipótese de que no nosso caso foi todo um país que acabou se tornando uma heterotopia, e não apenas alguns espaços específicos, ou melhor, contra espaços, no interior desse país ou dessa sociedade, como previa Foucault quando formulou esse conceito.

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Heterotopias são lugares dedicados a se oporem, a neutralizarem, apagarem ou purificarem os lugares demarcados de nossas vidas – eles devem portar algo de absolutamente diferente dos lugares onde ‘vivemos’. São verdadeiros contra espaços, constituídos cada um deles pelas sociedades que, desse modo, podem ser classificadas segundo as heterotopias de sua preferência. (Foucault, 2013). Uma sociedade onde existem muitos lugares distintos da ‘casa’ e destinados ao sexo – bordéis, motéis entre outros –, pode ser lida, compreendida e mesmo classificada, segundo o autor, a partir dessa heterotopia. Isso porque as heterotopias que, no passado, destinavam-se a marcar os lugares das crises subjetivas e coletivas, tais como a morte, o nascimento, a puberdade, passam, nas sociedades modernas, a marcarem os desvios dessa mesma sociedade. Por desvio deve-se entender algo que se localiza entre o interdito e o transgressivo, entre o oculto e o esperado, entre aquilo que a própria sociedade produz e aquilo que ela precisa fingir que não produz localizando-o como ‘improdutivo’ ou ‘dispendioso’. As sociedades formadas por outras sociedades – as sociedades coloniais, por um lado herdam os desvios da metrópole, mas também passam a depender (para ter um lugar) do lugar onde se situam como sociedades ou proto sociedades, nessa relação com o colonizador. Essa relação será determinante tanto dos novos desvios, novas heterotopias, que a estrutura colonial e a metrópole vão necessariamente por em marcha nas suas colônias, quanto da sua própria constituição como lugar (topo) social no mundo.

Sob este aspecto já deveríamos começar indagando se as favelas, tal como elas desenvolveramse nas sociedades coloniais latino-americanas e especificamente nas brasileiras, não estariam atuando como heterotopias. Espaços onde a marginalidade é por vezes heroicizada8, onde a fantasia do sexo fácil é vendida para os ‘turistas’ do asfalto, onde o comércio de drogas é ‘legal’, e onde, para isso, o próprio tráfico de drogas cria no interior da favela um contra espaço com lei própria. Contra espaço que, como sabemos, só se cria em relação e dependência para com os espaços instituídos, neste caso: o Estado que nunca se interessou frontalmente por incorporar esses espaços, que vivem em condições ultra precárias de saneamento básico, que vêm servindo como canteiros de obra e de desova, de morte e de extermínio sem que o poder instituído se preocupe com o fato de que a imensa maioria que ali vive é a massa trabalhadora dos grandes centros urbanos do país, em sua maioria pobre e preta. A vida artístico-cultural e a organização de inúmeras dessas comunidades tem nos brindado com exemplos éticos e estéticos de luta e de enorme potencial de inovação. Mas a força dessa organização não vem do Estado. Ainda: a exploração sexual de meninas moças, e mesmo o imaginário sexual que se criou em torno das comunidades pobres e das mulheres negras brasileiras, continua mostrando indícios da presença colonial – como se de fato nada tivesse mudado. Mulheres e também homens ao prazer e gozo dos colonizadores, que sempre atuaram nesses contra espaços sem recalque ou limite.

A questão é que os contra espaços hoje e aqui se estendem muito além dos bordéis ou das casas de prostituição, como ainda pensava Foucault. Atingindo áreas extensas geograficamente e, sobretudo, camadas político-subjetivas inumeráveis e incontáveis, confundindo, desse modo, moradia com heterotopia. Sob esse aspecto, as favelas vêm servindo no imaginário nacional e internacional como lugar aglutinador de heterotopias. O próprio carnaval, que funciona em si como uma heterotopia cíclica, encontra sua fonte no espaço-mundo das comunidades periféricas. Tudo isso aplaudido durante o período de festa é depois esquecido ao longo do ano, e ejetado da ‘normalidade’ das vidas. Normalidade que será, como sempre foi, a da violência policial, a do racismo e a da segregação. O Brasil e o fora do Brasil ainda se espantam com o número de mortos pela pandemia em nosso país, mas sem governo -ou com um governo que vê na pandemia uma oportunidade de eugenia- e sem nunca termos afrontado essa teia de problemas que, repito, participa de uma estrutura colonial atualizada mundialmente, não poderíamos, infelizmente, estarmos agora noutro lugar nessa lista draconiana dos países mais afetados pela covid-19.

Nesse sentido a pergunta que colocou Foucault deveria ser posta para todos aqueles que consumiram, desfrutaram e/ou corroboraram para a constituição da favela como heteretopia no Brasil e fora dele – o que isso diz de nós mesmos como sociedade?

Também não podemos nos furtar a colocar insidiosa, utópica e constantemente a pergunta sobre como serão as heterotopias pós-pandêmicas – criaremos por fim a ilusão realizada de que podemos viver num mundo sem contato? Acentuando já não apenas a morte, mas o apagamento subsequente das camadas populacionais periféricas? Depois, investiremos no imaginário de que a virtualidade e seus braços médico protéticos são suficientes para abraçar as relações entre os viventes? Nos tornaremos um corpo só olho e voz? Controlados e separados assumiremos de vez o grande apartheid racial e mundial entre países ricos que se nutrem de países pobres?

Já sabemos que as exclusões dos corpos, de parte dos corpos vivos e não-vivos, se acentuarão, e o controle também. E nós? Continuaremos a nos oferecer como território de gozo, lixeira ou necrofilia aos corpos predadores? Qual heterotopia nos caberá no mundo pós-pandêmico?

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Foucault identificava uma série de heterotopias de crise biológica, como chamou, e onde ele lia e inscrevia sociedades, como as sociedades ameríndias, nas quais o corpo ganha uma representação coletiva – a puberdade ou a primeira menstruação, por exemplo. Eu diria que nessas sociedades não se trata apenas de uma representação coletiva do corpo, mas sim da possibilidade de criar inscrições dignas do corpo no espaço comum. Enquanto nós ‘evoluímos’ para lugares onde as inscrições sociais dos corpos se fazem apenas pelo que queremos de fato excluir: assassinatos, estupros, violências, entre outros. Ou seja: o desprezo e o controle sobre os corpos são a marca política característica das sociedades ocidentais. São elas mesmas que criam a lista dos desvios e o modo das transgressões. Os indesejáveis e os descartáveis.

Atravessamos, nesse momento, uma crise que mostra como um conjunto muito grande de corpos humanos é descartável para toda a sociedade ocidental. A questão ambiental é também uma questão sobre qual noção de corpo humano queremos continuar abraçando. E mesmo sobre como continuaremos ou não abraçando o ser humano. E sob este prisma as políticas do vivo (Mbembe, 2020) exigirão pensarmos sobre uma reorientação no regime dos afetos – onde os humanos, até agora, assumiram o papel controlador e definidor. Ou então começaremos a nos habituar com o fato de que ele já era velho, melhor morrer.

Ele era tão pobre, melhor morrer. Ele era índio, não ia mesmo conseguir viver nesse mundo. Em breve estaremos prontos para dizer clara e abertamente: ele era tão preto, melhor mesmo morrer. Entendam bem que não há aqui nenhuma prerrogativa do retorno a sociedades ideais ou idealizadas, mesmo que haja a do deslocamento dos assentos e centros que caracterizam as organizações das sociedades hoje. Tampouco nenhum desejo moralizante dos ‘desvios’ das sociedades, mesmo que precisemos entender que esse desejo tenha crescido, não por acaso, nesse contexto, no seio de uma parte significativa e sem pertencimento ou representação coletiva nas sociedades contemporâneas. Esses habitantes das heterotopias desfiguram a ideia de que o lugar heterotópico sobrevive de visitas. Isso Foucault não pensou nesse texto. Seu ponto de vista é extremamente exterior e central - como o de qualquer visitante, mesmo quando assíduo, dos espaços heterotópicos e coloniais. Até porque, e essa talvez seja a questão central do gesto de reler e localizar hoje esse texto, não existiriam espaços heterotópicos de desvio sem o braço da sociedade colonial. E por isso entendemos que esses espaços – posto que não estamos olhando desde o centro, da Europa ou da América branca – sofreram uma verdadeira transfiguração, vindo alojarem-se numa primeira perspectiva em grandes bolsões urbanos, e em camadas que já não permitem vê-los como indicadores ou canalizadores dos desvios da sociedade, eles se tornam verdadeiras excrecências. Já não sendo mais um contra espaço, são um conjunto complexo de vidas que sem conseguir serem geridas, desregulam o Estado, que ali só entra, quando entra, para buscar exterminá-las.

Mas a questão é ainda mais complexa do que essa. E se algo avulta, quando buscamos pensar esse texto de 1968 a partir de agora e desde aqui, é o fato de que os contra espaços têm hoje dificuldade para serem delimitados internamente como horizonte de funcionamento de uma sociedade – o desregulamento do capital, sua fluidez e imperatividade ao mesmo tempo, fazem com que os limites sejam parciais, mesmo que as desigualdades cresçam à galope. A fluidez vale para a configuração dos desvios e das heterotopias, mas não vale para a pobreza e a miséria. As fronteiras continuam rígidas quando se trata de delimitar indesejáveis. Para alguns custa entender que mesmo que o mundo pareça mais permeável, a real mudança de condição econômica e social de vida ficou muito, muito mais difícil. E, de fato, são esses que agora fingem se surpreender com a quantidade de mortes nesse imenso Brasil, agravada, obviamente, pelo interesse desse governo no extermínio de boa parte da população. Não por acaso, as mortes se iniciam não apenas nas evidentes e superpopulosas Rio de Janeiro e São Paulo, mas curiosamente em Manaus e Fortaleza. A primeira, lugar de total permeabilidade e impenetrabilidade ao mesmo tempo – selva e zona franca. A segunda, infelizmente conhecida não só, como todo o Brasil, por suas belezas naturais e praias paradisíacas, mas também pelo turismo sexual internacional, agudo e histórico.

Essa fluidez do investimento desejante do capital (e o Brasil vem funcionando como fonte internacional desse desejo, como lugar onde os desejos dos outros vibram, desabrocham e se liberam), aliada às perspectivas que nos levam a assumir a maioridade pelos nossos pensamentos, é que me leva a dizer que, no caso especifico do Brasil, a tese dos contra espaços só vale se entendemos que aqui, antes de mais nada, é todo o país que se constitui, para usufruto alheio – e mesmo quando o alheio é interiorizado –, como uma heterotopia.

Aliás, a interiorização do estrangeiro é um capítulo ainda a ser reescrito por nós. A máxima antropofágica rendeu, sem sombra de dúvida, um conjunto extenso e rico da nossa plasticidade multicultural. A antropofagia serviria também para refletirmos como aqui o estrangeiro é literalmente o mais familiar, fazendo com que a tese de Freud sobre o estranho-familiar como modo de funcionamento do inconsciente, e logo das pulsões, se espraie de novo em nosso horizonte para a elite que construiu as ideias desse país. País usina do inconsciente é irmão do país fonte dos desejos dos outros – lugar de liberação dos instintos e realização dos desejos mais recônditos ou desviantes.

O Brasil é uma heterotopia que permite há muitos séculos que aqui os estrangeiros de primeira classe gozem sem limites de todos os seus direitos de cidadania. Estrangeiros que acabaram por caracterizar historicamente um modo particular do ser brasileiro de ‘primeira classe’: brancos marcados pelo encontro de diferentes países, que em fluxo migratório vieram embranquecer o país, aqui e ali misturados aos nativos índios e escravos negros estuprados por colonizadores – fazendo de nós não a rica sociedade miscigenada, mas a envergonhada sociedade racista e inconsciente dos fluxos e da ordem de suas misturas.

O Brasil é uma heterotopia quando, desconhecendo os seus fluxos e ordenações, desconhece também os muros de seu apartheid racial e social.

O Brasil é uma heterotopia quando evita falar de suas relações com o passado da sua estrutura colonial. Brasil imenso que volta sobre Portugal, tão pequeno e acanhado, achando que o poder de sua música ou de suas telenovelas é suficiente para sanar as suas feridas coloniais.

Mas de fato as feridas coloniais são presentes e não apenas passadas quando elas se eternizam num modo de relação, num modo de olhar para o outro. Se De Gaulle diz que o Brasil não é um país sério, e nós continuamos não sendo levados, e muitas vezes não conseguindo nos levar a sério, isso significa que essa ferida colonial está aberta. Com Portugal, tudo é mais complexo, porque por um lado nós somos uma colônia que foi metrópole, abrigando os seus reis e deixando para nós uma independência fajuta, proclamada pelo filho do rei. Somos ainda esse país filho do rei, sonhando com seu futuro reinado. Essa relação de limites, só aparentemente tênues ou porosos entre Brasil e Portugal serviu não apenas para esconder as violências e as feridas, como também para criar essa soberba mentirosa do gigante-anão, que é como o Brasil vem se posicionando na geopolítica dos afetos com muitos dos seus ex-colonizadores.

O Brasil é uma heterotopia quando ele perpetua o desconhecimento de suas feridas – toda ferida se produz em relação. Fingindo-se cordial evita afrontar e lidar com os conflitos que, no entanto, seriam definidores para que encontrássemos qualquer saída digna. O Brasil é uma hetrerotopia quando a alegria é só o que se espera de nós. Quando nós só esperamos isso de nós.

O Brasil é uma heterotopia quando aqui ou no exterior não se levaram, ou não se levam à sério, os riscos reais de um governo extremista e autoritário como o que vivemos agora.

O Brasil é uma heterotopia quando dizemos sem titubear que esse país é uma merda mesmo. E repetimos essa frase como se esse país não fosse nosso. Esse processo de irrealização do nosso pertencimento ao Brasil participa de todas as investidas autoritárias que vêm delimitando os contornos heterotópicos do lado de cá. Desde a sua condição colonial passada e atual até a sua estrutura profundamente racista negada, cínica ou inconscientemente, por grande parte da nossa sociedade. Além do nosso menosprezo por um presidente que acabou por religar o que quisemos esquecer, qual seja: como a maior parte das nossas fontes nacionalistas permaneceram entregues aos pensamentos totalitários e autoritários brasileiros. Fazendo com que desconheçamos o amor próprio como algo diferente daquilo que não seja o gozo liberado do estrangeiro ou o jugo do coronel, quer dizer, de nós mesmos como estrangeiros familiares.

O Brasil é uma heterotopia quando deixa que aqui se erga o maior território fundado num estranho pacto onde o amor próprio equivale a identificar-se com o seu agressor.

Tudo isso exigiria de nós dividirmos o número de nossos cadáveres com boa parte daqueles que ainda hoje ajudam a manter firmes as fronteiras heterotópicas – hoje fechadas para todos os brasileiros - desde dentro ou de fora desse país.

E tudo isso que nos constitui estranhos, estrangeiros, aqui e ali distintos do que a regra culta preza como distinção seria, sim, a nossa riqueza e contribuição ao mundo – desde que todos os ‘nossos’ erros milenares mirassem a reunião verdadeira entre os povos que, de fato, construíram essa nação.

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GONZALEZ, L. Racismo e Sexismo. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223- 244.

GLISSANT, E. Discours Antillais. Paris, Folio Essais, 1997.

___________. Poétique de la Rélation. Paris, Gallimard, 1990.

___________. Philosophie de la Rélation. Paris, Gallimard, 2009.

GLISSANT, E. & LEUPIN. A. Les entretiens de Baton Rouge. Paris, Gallimard, 2008.

FANON, F. Peaux Noire, Masques Blancs. Paris, Seuil, 1952.

MBEMBE, A. Politiques de L’inimitié. Paris, Découverte, 2016.

____________. Brutalisme. Paris, Découverte, 2020.

RIBEIRO. D. O que é lugar de fala ? Belo Horizonte, Justificando, Letramento, 2017.

SARR, F. Afrotopia. Paris, Editions Phippe Rey, 2016.

 

Originalmente publicado na Coleçao Pandemia Critica N-1 Ediçoes SP Brasil

  • 1. O texto desenvolverá a hipótese de que há um dentro do Brasil que se constitui como fora ou exterior a ele mesmo.
  • 2. Discussão que ficou de novo evidente no modo como o « Brasil » se indignou diante do assassinato pela polícia de George Floyd nos EUA de um modo muito mais pungente do que é capaz de fazer diante dos assassinatos da população negra desse país.
  • 3. No recente trabalho do jovem rapper Kellvn, de Gardênia Azul (favela na zona oeste do Rio de Janeiro que encarna a historia colonial das favelas de modo exemplar, posto que em suas terras permanece ainda hoje a casa grande da Fazenda Engenho D’Agua, desde os idos de 1600, permitindo que tracemos uma arqueologia das camadas coloniais às periferias atuais) fala-se justamente sobre os afetos que circundam o isolamento que estamos aqui buscando discernir, indicando também a sua extrema atualidade: “Me isolaram na favela”, ele diz. Ver https://www.youtube.com/watch?v=SR_17Iy81s8 (acessado em 16/6/2020).
  • 4. Foi essa mesma condição que atribuiu ao país a máxima de que ele seria o país do futuro. Como vemos essa própria atribuição faz parte dos sonhos produzidos pelos outros sobre nós – sonhos que deverão, na medida mesmo que não nos pertencem, figurar eternamente no lugar do sonho. Como vemos, Felwine Sarr faz em Afrotopia essa mesma constatação e adianta um caminho frutífero de aliança a ser travada entre os pensamentos do eixo Sul na reconstrução que enfrentaremos. Ele diz, entre outras: « Puisque le continent africain est le futur et qu’il sera, cette rhétorique dit, en creux, qu’il n’est pas, que sa coïncidence au temps présent est lacunaire. » (2016, p.11).
  • 5. Lélia Gonzalez (1984) fala da Alegria do Povo como Significante 1, ou primordial, aquele que indica o lugar de uma ausência que, a autora acrescenta ser, no caso do Brasil, o Negro. Ainda é relevante pontuar, aproveitando a abertura criada por Lélia, como a função da alegria nacional que vem na esteira significante desse lugar ausente, encarnada nas diferentes mitologias nacionais por personagens negros, é falada através de autores brancos, indicando que o mito da alegria é ele mesmo esse lugar ausente, que vamos tentando mascarar – branquear – num contínuo histórico extremamente duradouro, qual seja: até os dias atuais.
  • 6. Essa discussão sobre as potências do esquecimento indica de modo mais incisivo o teor que aqui estamos dando à função do pensamento como lugar de legitimação e de concepção de estruturas políticas e subjetivas. A destruição dos livros não equivale à mesma função histórica que teve a destruição dos monumentos. No último caso, vemos como é necessário – como marco de toda transformação social- derrubar ou inscrever sobre a matéria mesma do monumento outro capítulo da história. A queima dos livros, ao contrário, associa-se exclusivamente ao gesto repressor e intimidador. Por isso defendemos aqui que o deslocamento de um edifício do pensamento significará conviver com as ruínas desse edifício, sabendo como ocupá-las. Não por acaso as bibliotecas são por excelência espaços heterotópicos.
  • 7. Notamos que no texto, publicado no mesmo volume das Heterotopias no Brasil, e intitulado “O Corpo Utópico”, Foucault fala que por mais que o corpo tenha sido subjugado pela cultura ocidental ele sempre acabou por se fazer notar através de nossas feridas. O próprio corpo aparecendo aí como ferida. A questão é que, neste texto, sua forma de inscrever e perceber as feridas do corpo passam todas pelo olhar – em resumo, trata-se na maior parte das vezes de uma ferida narcísica, credora ainda de uma noção de corpo nutrida pelo espelho e construída através da ideia de imagem de si. Hoje sabemos como em outras culturas, como por exemplo na cultura do candomblé, mas também nas culturas indígenas, como aparece no livro de Kopenawa, D. e Albert, B. A Queda do Céu, deveríamos falar de um mundo-corpo, muito mais de que de um só corpo organizado através da função do olhar, da imagem e do rosto. Nessas culturas, os corpos se manifestam e se constituem não somente através do olhar, requisitando de nós mesmos uma sofisticação do aparato sensório-perceptivo. Sobre o Corpo Utópico ver também o texto publicado na Coleção Pandemia Crítica, SP, N-1, escrito por Daniela Lima.
  • 8. Em alguns momentos históricos como no Brasil dos anos 70, mais ainda no fim dos anos 80, houve da parte da comunidade artística (e aqui o caso do artista Hélio Oiticica é exemplar) uma heroicização do tráfico de drogas. Se, nos anos 70, e na bandeira eternizada na obra « Seja marginal, seja herói», de Hélio Oiticica, se tratava de um investimento na subversão dos costumes, nos anos 80 veremos como essa heroicização indica já uma descrença e uma falência do Estado no tratamento dessas estruturas com as quais ele acaba se mesclando e muitas vezes se confundindo, ou então sendo localmente por elas substituído. O que não seria diferente de outros países onde atua o poder do narcotráfico na América Latina. Vejam o exemplo de Pablo Escobar. No entanto, uma vez mais, no Brasil, essa heroicização se fez através de subterfúgios que buscaram mascará-la, criando a ideia de que a nossa sociedade não se identifica com esses seus pais criminais, violentos e incestuosos.

por Ana Kiffer
A ler | 16 Junho 2022 | Brasil, corpo, covid-19, pandemia, pos-colonialismo, representação coletiva, sociedade, sociedade ocidental, violência