Marxa Cabral 2022

Vinte de janeiro de 1973, Conacri: Amílcar Cabral é assassinado a tiro por um grupo de homens armados. Vinte de janeiro de 2010, Praia: um grupo de jovens ativistas do hip-hop assinalam a data do assassinato deste herói bissau-guineense e cabo-verdiano através de um ato de insubordinação simbólica que acabou por inaugurar uma importante manifestação cultural de resistência e resgate da história denominada de Marxa Cabral, chamada na altura também de Marxa do Hip-Hop. O seu desencadeador foi o Festival Hip-Hop Konsienti – FHHK, promovido pela associação Djuntarti e liderado pelo artivista Dudu Rodrigues, que entre os anos de 2008 e 2009 funcionou organicamente na lógica do djunta-mon como uma plataforma que juntou todos os elementos da cultura hip-hop ativos na cidade da Praia e seus respetivos protagonistas.


Dois coletivos cabo-verdianos sediados na diáspora tiveram forte influência em todo o processo: o movimento Shokanti, liderado por um rapper radicado nos EUA que através de um workshop realizado na Praia, enquadrado num projeto de liderança comunitária, impulsionou a associação Djuntarti na criação do FHHK; a associação Fidjus di Cabral, coletivo pan-africanista radicado na Holanda, que apoiou em 2010 esta organização artivista a organizar a primeira Marxa.

Encaixada numa programação ampla que incluiu conversas de promoção da língua cabo-verdiana, intercâmbio cultural entre ativistas do hip-hop e ativistas comunitários e um grande espetáculo final na Praça Alexandre Albuquerque, no Plateau, centro da cidade colonial e de poder simbólico pós-colonial, a grande novidade introduzida em demonstrações do tipo foi a utilização das TIC como forma de luta e o trabalho em rede ligando ativistas de praticamente todos os bairros “periféricos” da cidade sob o slogan unidade e luta de Cabral. Autointitulando-se “netos de Cabral”, este movimento reinventado tinha como agenda a luta pela independência cultural e criativa dos jovens e a palavra revolução foi apresentada como emblema.

A semente deixada em 2010 dá frutos em 2013, quando o movimento Korrenti Ativizta – KA liderada por João José Monteiro aka Uve a retoma e passa a ser chamada também de Marxa do Povo. Foi posteriormente continuada pela associação Pilorinhu, parte institucionalizada do KA e foi-se transformando ao longo dos anos num importante espaço de consciencialização cultural, identitária e política. Além dos ativistas do hip-hop e organizações pan-africanas, passou a juntar batucadeiras da comunidade dos Rabelados de Espinho Branco e da Achada Grande Frente, coletivos da Capoeira, organizações de imigrantes oeste-africanos, um conjunto de ativistas sem filiação partidária, mas que se revêm na ideologia ou na teorização cabralista e a organização da Tabanka de Achada Grande Frente.

Juntamente com os bairros de Várzea da Companhia e de Achada Santo António, o bairro de Achada Grande Frente, casa do Pilorinhu, viu a tabanka a instalar-se ali durante o século XX acompanhando a migração forçada do campo devido às sucessivas crises famélicas e ausência de intervenções estruturantes no mundo rural. A confluência entre a Tabanka e a Marxa dá-se de imediato, o que pode ser explicada da seguinte forma. Embora apresentada como uma manifestação africanizada das festas juninas, na prática, a Tabanka funciona como uma associação comunitária. A biblioteca colonial a representa como uma espécie de agremiações fundada em diferentes lugarejos que se traduziam no modo de ser gentílico das suas gentes que, a partir do século XVIII, no epicentro da crise do sistema esclavagista, passam a ser denominadas de badius. Segundo o sociólogo e historiador cabo-verdiano António Correia e Silva, esta categoria foi criada pelo sistema esclavagista e colonialista com o objetivo de estigmatizar um conjunto de homens com uma identidade africana fortemente vincada, caraterizando-os inúteis, festeiros, agressivos e vadios, numa manifesta estratégia de mobilização das forças de ordem para um projeto de (re)escravização ou de assalariamento forçado.   

O termo Tabanka, importado dos rios da Guiné pela população escravizada, significando comunidade, ganha novo sentido em Santiago, onde se transforma numa congregação de associados (negros de santo) de auxílio mútuo, principalmente nos serviços fúnebres, em caso da morte de um dos associados, mas também em festejos dos santos devotos através da organização de marchas acompanhados de tambores, ao som de cornetas e búzios. Reprimido durante todo o período colonial por representar rituais africanos e, por conseguinte, tido como um folclore produzido por gente incivilizada, foi proibido de subir ao centro da cidade, assim como o batuku, situação só revertida com a proclamação da independência em 1975.

Ela é hoje uma manifestação promovida como um dos produtos turísticos de Santiago, visto que as suas marchas arrastam um grande número de população. A associação com a Marxa significa para a Tabanka a sua revitalização como uma importante organização sociopolítica e instituição comunitária. Para a Marxa, a retoma no contexto urbano da herança da resistência dos africanos auto-libertos e potencializadora do resgate de uma parte da história santiaguense/badiu ignorada pelos manuais escolares.

É de referir que foi igualmente no terreiro da tabanca onde o batuku foi preservado e onde o seu elemento oral, o finason, ancestral cabo-verdiano do rap, surge como um instrumento de consciencialização e mobilização. Por outras palavras, como um canal fundamental para a (re)africanização dos espíritos e das mentes preconizado por Amílcar Cabral, ideia materializada pelos Rabelados, fiéis representantes do espírito djulangue e sujeitos de articulação entre Cabral, Marxa e tabanka.

Vinte de janeiro de 2022, Achada Grande Frente, Praia: depois de dois anos consecutivos de perseguição policial e tentativa de bloqueio da Marxa, em pleno estaldo de contingência devido à situação pandémica, a Marxa Cabral 2022 é organizado no bairro de Achada Grande Frente, num formato mais comunitário. Em parceria com a Fundasom Deug 27 criada por Ras Munda Uve, um dos seus impulsionadores a partir de 2013 agora radicado na Etiópia e o Movimento Federalista Pan-Africano de Cabo Verde, a Marxa 2022 entra numa nova fase de redefinição e numa nova era de consolidação da luta cabralista pan-africana num mundo marcado por novas formas de colonialidades.

por Redy Wilson Lima
A ler | 19 Janeiro 2022 | Amílcar Cabral, hip hop, marxa cabral, música, resistência