As lutas pela memória de Eusébio

As lutas pela memória de Eusébio começaram. Ao consenso gerado logo após a morte do grande futebolista sucedem-se as disputas.

Elemento de uma cultura popular tentacular e poderosa, gerador de uma economia da felicidade accionada por hábitos e memórias profundas que tocam afectos e pertenças, o futebol é, como outras actividades culturais, um espaço onde se projectam formas de conceber o mundo, onde se exprimem valores, ideias e sentimentos. É, neste sentido, um objecto apropriável, tanto pela opinião do adepto comum, exibida entre um grupo de amigos, como pela palavra de políticos, dirigentes desportivos e outros fazedores de opinião com acesso ao espaço mediático e, portanto, com um poder maior de fazer vingar uma visão da sociedade.

A possível transladação do corpo de Eusébio para o Panteão Nacional está a dar lugar a um debate onde esse tipo de apropriações se fazem sentir. Desde logo porque Eusébio, simultaneamente o melhor jogador moçambicano de sempre e o melhor jogador português de sempre, pode ser disputado por duas nações: por Moçambique, onde nasceu e cresceu num contexto de ocupação colonial, e por Portugal, administrador da colónia africana da África oriental que representou enquanto jogador e onde passou a viver até à sua morte.

Adeptos à espera da chegada do caixão de Eusébio REUTERS/RAFAEL MARCHANTEAdeptos à espera da chegada do caixão de Eusébio REUTERS/RAFAEL MARCHANTE

A nacionalização de Eusébio é, desde logo, uma matéria tensa. Eusébio faz parte de uma narrativa nacional portuguesa imperial e pós-imperial. Esta, vista por muitos como um encontro cultural, foi, na verdade, e apesar de uma inegável história em comum, erguida pela violência, pela exploração e por relações de poder radicalmente desiguais. Tudo questões de índole pouco comemorativa que não interessam à moderna diplomacia económica, legitimada por uma ideia de lusofonia global mais preocupada com os negócios do que com a vida das populações.

Acrescenta-se ainda o facto de Eusébio ser também disputado por outra comunidade, não definida nacionalmente, que é a dos adeptos do clube que representou e em relação aos quais, na verdade, é mais adequado enquadrar a sua actividade enquanto futebolista. Por esta razão, a “nacionalização” de Eusébio tem um lado de usurpação em relação às condições em que despertou o seu génio, relacionadas com a comunidade do seu clube e, noutra dimensão, com a comunidade de adeptos de futebol, que excedem em muito as fronteiras do estado nacional e que criou partilhas próprias guiadas por uma paixão e um interesse comuns. Foram as redes internacionais da cultura de massas que tornaram Eusébio tão grande, como salta à vista na impressionante cobertura internacional da sua morte. Os interesses nacionais reagiram, assim, a um processo que não criaram mas do qual tentaram rapidamente beneficiar. Aconteceu durante a década de 60, nos tempos do luso-tropicalismo salazarista, e volta a acontecer agora.

O primeiro negro 

Não há propriamente um guião que defina de forma objectiva quais as características que devem conduzir alguém ao Panteão Nacional. O decreto-lei que enquadra a questão oferece uma margem grande para interpretações. Neste contexto de indefinição, há ou não razão para considerar que um jogador de futebol extraordinário pode aceder ao Panteão Nacional?

Parece evidente que não foram apenas as qualidades de Eusébio enquanto futebolista que o tornaram elegível para ocupar o lugar. Antes do jogador do Benfica, a fadista Amália Rodrigues alterou os critérios de entrada, rompendo com um padrão anterior dominado por políticos e homens de letras. Segundo algumas opiniões ter-se-á aberto um precedente perigoso: “Se Amália entrou por que não Eusébio?”

Os casos de Amália e Eusébio são exemplificativos do modo como a cultura popular urbana se impôs como uma força inaudita no século XX, uma força tão relevante que os estados nacionais, que sustentavam os seus discursos míticos, por um lado, na codificação da cultura do “povo autêntico”, e, por outro, na celebração dos vultos da cultura erudita nacional, se viram obrigados, por razões diversas, a abraçar estes novos actores. Quase sempre personagens impuras, não propriamente “autênticas”, porque urbanizadas, e portanto “corrompidas” pela modernidade, não tinham também sido distinguidas pelo universo da cultura erudita já que se expressavam em actividades menos nobres e não revelavam um domínio dos instrumentos de distinção cultural, nomeadamente aqueles herdados por condição familiar e pela exposição a uma educação escolar.

Noutro sentido, importa não esquecer que foram os próprios meios de comunicação e representação associados ao espectáculo de massas que fabricaram figuras maiores: o grande estádio, a sala de concertos, a imprensa e a reprodutibilidade da fotografia, a rádio, o cinema e, por fim, a televisão. Independentemente da urgência em incrementar uma crítica ao estado actual da cultura de massas, dos seus aproveitamentos mercantis e ideológicos, não deixa de ser evidente que esta não é uniforme nem simples e que os meios pelos quais se traduz possibilitam aos seus melhores intérpretes uma mestria formal complexa. À celebração destas personagens se deve a circunstância de pela primeira vez ter chegado ao Panteão nacional uma mulher e, provavelmente, um africano negro. A ideia inerente a uma economia dos bens culturais segundo a qual apenas o que tido como raro tem propriedades para ser distinto e bom é uma construção que deve, então, ser questionada.

Sobre o estilo interpretativo da popular Amália Rodrigues, o musicólogo Ruy Vieira Nery, na Enciclopédia da Música Portuguesa no Século XX dirigida por Salwa Castelo-Branco (vol. 3 pp. 1132-1138), oferece uma leitura que, não substituindo certamente a comunicação da performance, a encara como o resultado de inúmeras subtilezas e complexidades e de uma história particular que se tornou corpo. A “colocação da voz”, o “desenho da melodia”, “a dicção rítmica”, “a intensidade expressiva”, que serve “a clareza da divisão sintáctica” dos poemas cantados, ou o “percurso narrativo” característicos dos seus fados são alguns dos elementos identificados por Nery a propósito do estilo de Amália. A performance de uma simples canção poderia assim proceder, de um modo excepcional e tecnicamente singular, a uma reinvenção permanente de tradições, transformadas e adaptadas num espaço urbano por inúmeros contactos e influências, servida ao grande público pelos meios da cultura de massas.

O desprezo por actividades que revelam uma aprendizagem corporal e performativa mas que não construíram um discurso sobre si mesmas, nomeadamente porque os seus praticantes não são normalmente “pessoas do discurso”, estende-se certamente ao futebol. Actividade que comprovadamente provoca um conjunto de experiências estéticas nos espectadores, o futebol não criou uma estética, nem ainda proporcionou uma explicação, pese embora os esforços recentes em explorar a dimensão táctica do jogo ou a lógica dos seus mecanismos mais profundos.

O futebol, como outros desempenhos corporais e performativos, é ainda dificilmente traduzível por palavras, nomeadamente as dos próprios intérpretes, que raramente enunciam o seu princípio criativo, reservado ao universo do indizível, do incorporado, não exprimível por palavras. Não se tratará de intelectualizar o futebol e retirá-lo de uma esfera popular, mas apenas oferecer-lhe o que muitas outras actividades modernas já há muito alcançaram.

Discurso simplista

A compreensão das artes de Amália e Eusébio são antídotos importantes contra diversos elitismos, alguns dos quais presentes naquelas opiniões que consideram que um espaço de comemoração de um qualquer domínio formal não pode nem deve receber cantores e futebolistas. Mais elitistas, porém, terão sido as insistências no “elogio do homem” para sustentar o seu valor social. A economia da felicidade gerada por Eusébio, e que está na origem da sua enorme popularidade, relaciona-se com o que oferecia e comunicava por intermédio da sua mestria enquanto jogador de futebol.

Como o referiram muitos dos indivíduos, adeptos anónimos, emocionados pela morte do atleta, sobretudo aqueles que o viram jogar, Eusébio fazia coisas invulgares, como um ilusionista, alguém que conseguia mudar o rumo dos acontecimentos de um certo processo, alguém com o poder de lhe dar outro sentido e outra ordem. O jogo de futebol era certamente uma metáfora narrativa para as coisas da vida e Eusébio era aquele que a encantava. Estes adeptos pareciam conseguir dizer mais alguma coisa para lá da ideia simples de que Eusébio jogava bem. Não era só o que ele jogava, era o que conseguia comunicar por intermédio da sua arte, a sensação de superação, de conquista, de encantamento, de carisma.

O discurso dos representantes do poder em Portugal sobre Eusébio a propósito da sua morte foi quase sempre de natureza diferente, bastante mais simplista e pobre. Havia que justificar a sua importância social fora do futebol, destacando aquelas qualidades que o teriam tornado realmente único e que legitimariam a sua popularidade.

Como se tivessem sido instruídos pela mesma agência de comunicação, líderes políticos, sacerdotes e comentadores repetiram até à exaustão as mesmas palavras mágicas: “humilde”, “simples”, “compreensivo”. Marcelo Rebelo de Sousa, no seu comentário televisivo, referiu que, ao contrário de outros, “que nascem povo e se esquecem que são povo”, Eusébio nunca se esqueceu de onde vinha. Lá dizia o povo em jeito de denúncia: “Cada um é para o que nasce”.

As classificações produzidas sobre Eusébio, de forma consciente ou inconsciente, são também classificações sobre a sociedade e os grupos sociais. Nesse sentido, são discursos que revelam a permanência de determinados mecanismos do poder, vertidos em representações sociais. No caso particular do jogador do Benfica, elas não são de todo novas.

Durante o Estado Novo, estes adjectivos sempre se colaram a uma idealização do africano assimilado, simples, humilde, mas também conformado e passivo. A passividade e o conformismo, eufemisticamente travestidos de “humildade” e “simplicidade”, eram a moeda de troca pelo acesso à “civilização”. A mesma ideia aplicava-se, aliás, no mesmo período, aos desejos de formação de uma classe trabalhadora respeitável, humilde, simples e resignada com o seu lugar.

Quarenta anos depois do 25 de Abril, a permanência de algumas classificações sociais, que se erguem enquanto normas de comportamento ideais, revelam como perduram as representações de um certo povo imaginado pela elite, um povo que é bom por ser simples, humilde e conformado. Contra estes consensos “vindos de cima” a propósito da morte de Eusébio da Silva Ferreira, que dele se apropriam para fazer vingar a sua visão do mundo, talvez seja melhor devolver Eusébio à grande comunidade mundial dos adeptos do futebol, esse jogo extraordinário e complexo, ao invés de o transformarem mais uma vez em património nacional.

 

publicado originalmente no Público 

por Nuno Domingos
A ler | 10 Janeiro 2014 | Eusébio, futebol, moçambique, nacionalismo, Portugal