Da etnografia do futebol suburbano em Lourenço Marques por José Craveirinha, a uma ciência das obras

Em 1955, José Craveirinha, poeta e jornalista moçambicano1, escreveu no jornal O Brado Africano2 dois artigos sobre o futebol praticado nos subúrbios de Lourenço Marques. No primeiro, intitulado «O Negro, o Desporto e o Feiticismo», aludiu ao modo como o jogo, uma invenção europeia, havia sido adoptado pelos jogadores suburbanos (Craveirinha 22/1/55, 8). A presença no futebol local do que designou por «práticas feiticistas» revelava-se uma das dimensões mais evidentes desta adopção, especificamente focada no artigo. A exploração do tema conduziu-o a lançar um desafio: «que tremendo estudo, essas manifestações não estão pedindo para um melhor conhecimento do negro, seus problemas, seus choques com a civilização europeia, enfim, todo um tratado de etnografia útil e instrutivo» (ibidem).

Craveirinha, nas páginas de O Brado Africano, iniciou, ele próprio, este trabalho. A sua «etnografia» do futebol suburbano deve ser interpretada no contexto de um debate desenvolvido à época, de carácter transnacional, sobre «as qualidades das raças», nomeadamente sobre a relação da «pertença racial» com a acção humana. Em Lourenço Marques, O Brado Africano e o seu antecessor, O Africano (n. 1908), promoveram militantemente esta discussão, que se constituía como um espaço de referências, retóricas e discursos a partir do qual se permitia a uma elite africana confrontar, num registo progressivamente eufemizado, à medida que o sistema colonial se tornou mais repressivo, e em muitos casos integracionista (no sentido de: «nós também merecemos fazer parte da nação prtuguesa»), as políticas da administração colonial (Neves 1989, Rocha 2002, Zamparoni 1998). Ao introduzir o futebol no debate, Craveirinha usou-o como elemento de análise da «capacidade do africano», sinal de demonstração da sua habilidade natural, mas também da competência em adoptar e reinventar o jogo europeu.3 O elogio ao jogador do subúrbio autorizava o poeta a escapar à fatalidade de discutir a «evolução do moçambicano» com base nos critérios de «modernidade» impostos pelo sistema de assimilação colonial português: a posse de uma educação escolástica, nacionalista e católica, a ocidentalização das formas de ser e de estar, o modo de vestir, de habitar, de comer, a aquisição de uma ética de trabalho, a inclusão numa economia de mercado e a imperiosa rejeição de costumes e tradições (Henriques 1999, 225-229). 

A «etnografia» do jogo prosseguida por Craveirinha assumia uma deriva original no âmbito da sua agenda política. Inspirado nas ideias de Senghor, o poeta considerava o futebol suburbano, como outras actividades locais, um exemplo de troca: os moçambicanos não deveriam abdicar «de uma cultura indígena, nem renegar uma corrente europeia …» (Craveirinha 6/11/54, 6); como denunciou numa das recorrentes polémicas travadas com elementos de uma pequena burguesia mestiça e negra de Lourenço Marques, o snobismo desvalorizador das tradições locais corroía a aspiração de miscigenação cultural (ibidem). A adopção do futebol pelo africano evidenciara, em primeiro lugar, a aptidão para aceitar novas actividades e técnicas. Comprovando a sua humanidade, tal competência não se manifestava apenas pela faculdade de adopção: o africano acrescentou algo ao jogo do europeu, transfigurou-o e recriou-o. Dois meses depois do artigo sobre a relação do futebol suburbano com as «práticas feiticistas» Craveirinha, continuando a investigar o «jogo africano», procedeu à análise de um conjunto de termos em ronga, língua do sul de Moçambique, que designavam situações do jogo de futebol para as quais não existiam expressões em português. Num artigo de jornal («Terminologia Ronga no futebol, em conjugação oportuna e sua interpretação») referiu: «Parece-nos oportuna a divulgação da gíria futebolística do africano local (ronga) não só porque ela revela da parte do indígena um espírito pronto para se adaptar a coisas novas como também para transformá-las ou então redescobri-las» (Craveirinha 12/2/1955, 8). No artigo sobre as denominadas «práticas feiticistas», o poeta iniciara a análise destes termos, destacando aqueles que traduziam o humor do intérprete local, elemento distintivo no futebol suburbano: «O seu sentido de humor reflecte-se na alegria do jogo, teatralidade nas fintas e dribles e expressões que usa para amesquinhar chocarreiramente o jogador que acaba de ser iludido: «pysonho», «psyêtu», etc (leia-se psonho e psêto) termos onomatopeicos que só ali se aplicam» (Craveirinha 22/1/55, 8).

A presença do humor no jogo suburbano, considerava José Craveirinha, distinguia esta actividade desportiva de outras concepções de práticas físicas: «esses agregados de côr inebriam-se com a prática do desporto mas não como uma actividade de revigoramento físico; abstraem-se até desse conceito restritivo» (ibidem). Historicamente, o projecto de transformação do desporto num mecanismo de «revigoramento físico» desenvolvera-se na Europa pela tentativa de institucionalização estatal de uma dinâmica de contornos mais largos, típica das sociedades industrializadas e urbanas onde se expandiram novas práticas de lazer. O movimento desportivo de carácter nacionalista, higienista, pedagógico e por vezes pré-militar que se desenvolveu a partir do século XIX, tomou a forma de modelos organizados de revigoramento físico (Weber 1971, Gutmann 1994, Psfister, 2003). O desporto submetia-se a um projecto civilizador, inicialmente mobilizado para educar as classes populares europeias, sobretudo as proletarizadas e urbanizadas, e intregrá-las dentro da dinâmica moral e produtiva da nação. A expansão imperial estimulou a formação de escolas de educação física, locais de instrução de quadros coloniais, preparados para servir os interesses estatais. De acordo com José Craveirinha, o futebol do subúrbio de Lourenço Marques afastava-se destas práticas e dos seus princípios morais.

Em alguma da sua prosa jornalística, o poeta optou por justificar a especificidade do jogo suburbano e a competência e engenho do africano recorrendo a critérios essencialistas. Decorrente das condições particulares do debate sobre as «qualidades das raças», esta argumentação estorvava uma prometedora agenda de investigação. A predisposição do jogador negro para adoptar o futebol, salientou, podia atribuir-se não só aos méritos de resistência e elasticidade com que a natureza dotou grande contingente de raças negras, mas também de um estranho e invulgar poder de captação e improvização em que o senso instintivo menos embotado que no ocidental, no africano ocidentalizado se revela exuberantemente. O negro vive – e com que calor! – determinada modalidade desportiva, entregue a uma vibração sensorial muito rara em outros grupos rácicos (Craveirinha 22/1/55, 8).

cinco anos depois de deixar os subúrbios de Lourenço Marques, Eusébio era o exemplo de uma fulgurante trajectória de mobilidade social (Flama, 10/6/66) cinco anos depois de deixar os subúrbios de Lourenço Marques, Eusébio era o exemplo de uma fulgurante trajectória de mobilidade social (Flama, 10/6/66)

 

A naturalização do corpo do africano conferia-lhe um conjunto de predicados físicos e psicológicos. A relevância concedida à improvisação e ao humor procurava, no terreno das essências, combater imagens do africano enquanto ser incivilizado, grosseiro e instintivo, forte, mas pouco inteligente, que haviam sido reificadas pelo poder colonial português e vertidas de modo cruel na ordem da interacção que caracterizava as situações de contacto entre colonizadores e colonizados numa cidade como Lourenço Marques.4 Fora precisamente a necessidade de enfrentar esta condição civilizacional «atrasada» que legitimara no terreno da retórica a ocupação colonial e a instauração de sociedades discriminatórias, «fardo do homem branco», que ocultava as políticas de exploração do trabalho indígena.

A análise de Craveirinha excedia em muito, no entanto, extrapolações essencialistas.

Ao reflectir acerca da relação do futebol com as «práticas feiticistas», Craveirinha salientou a influência de «velhos tabus, crenças, superstições» no processo de disseminação do futebol no subúrbio de Lourenço Marques (Craveirinha 22/1/55, 8). Estas crenças exerciam um efeito poderoso sobre «o sistema de reflexos» dos jogadores (Ibidem). Contava-se no subúrbio que o Beira-Mar, equipa do bairro de Chamanculo, ganhara durante vários anos o campeonato da Associação de Futebol Africana (AFA) porque «antes dos jogos os atletas bebiam um chá especial em casa do presidente e a determinada altura surgiam por detrás da baliza do adversário um certo número de corvos, pretos e brancos, que indicavam quantos golos o adversário sofreria» (ibidem). «Os negros e muitos mistos», prosseguiu o poeta, «ainda vão para o campo com pequenas moedas de ‘cobre’ metidas nas botas ou esfregando os joelhos com certos «medicamentos» para proteger o corpo contra os encantamentos do adversário» (ibidem) Os africanos, constatou, aceitavam «gostosamente, um sem-número de imposições e usos de civilização mais adiantada» mas, simultaneamente conservavam um conjunto de práticas tradicionais, consequência do modo «como viam o mundo» (ibidem).

O encontro cultural que Craveirinha se propunha descrever não era sereno nem harmonioso. No futebol manifestaram-se, segundo o poeta, «mil e uma importâncias quotidianas» e «problemas anímicos, perturbadoramente chocantes», que abalavam os habitantes do subúrbio (ibidem). Nos corpos dos jogadores, nos seus reflexos motores, mas também num conjunto de práticas que envolviam o jogo, exteriorizaram-se visões do mundo criativas mas também perturbadoras.

 

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A adopção de práticas desportivas em Lourenço Marques era um elemento particular de um processo de troca maior, profundamente desigual, que afectou as condições de existência das populações moçambicanas. A introdução e adopção do jogo de futebol no subúrbio de Lourenço Marques exprimiu assim uma experiência histórica singular, ou na conhecida expressão de Balandier, uma mesma «situação colonial» (Balandier 1951).

Na história urbana em África, cidades coloniais como Lourenço Marques constituíram-se, em particular a partir do último quartel do século XIX, como um caso particular de organização social. Vértice de uma rede de relações económicas transnacional dependente de decisões tomadas pelos centros políticos metropolitanos e pelos mercados de bens internacionais, a cidade colonial apresentava uma especialização funcional enquadrada por leis e instituições diversas; a sua fundação implicou um reforço da ocupação militar e dos meios coercivos, a organização de uma máquina administrativa, a formulação de leis reguladoras dos direitos, deveres e movimentos de populações entretanto excluídas de uma cidadania europeia, e o advento de um regime de exploração económico, concentrado na reprodução da mão-de-obra, que integrou nas redes de comércio e produção mundial mercadorias e trabalhadores africanos. As cidades coloniais diferenciavam-se entre si pela posição funcional num conjunto de relações comerciais e produtivas, pelo enquadramento proporcionado pelo sistema político e o grau de intervenção da máquina estatal, pela estratificação social e profissional, a estrutura demográfica e a composição étnica. Integrando um processo amplo de reconfiguração das relações sociais, as diversas cidades coloniais apresentavam dinâmicas peculiares.5

Na urbe colonial africana, a imposição de uma segregação social de teor racialista deu origem a espaços urbanos divididos entre o centro europeu e o subúrbio africano. O desenvolvimento de uma especialização funcional registou uma etapa decisiva a partir da década de trinta, e sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, quando a necessidade de matérias-primas e de mão-de-obra barata desencadeou uma explosão demográfica (Coquery-Vidrovitch 1991, 49). Muitos africanos foram então inseridos na dinâmica da economia capitalista, tornando-se operários, empregados, mas também consumidores, participantes de uma cultura urbana em crescimento. Em condições particulares, habitaram uma cidade que em grande medida construíram. Local de reinvenção linguística, religiosa, cultural, a cidade, pela especificidade das suas relações sociais e espaciais, gerou novas relações de cooperação e conflito, novas práticas e formas de ver o mundo.

Símbolo do último período do colonialismo português em Moçambique, o crescimento de Lourenço Marques representou, de modo singular, o advento deste processo. Uma dimensão desta singularidade, no quadro mais vasto do domínio português em África, caracterizado por uma frágil territorialização do poder, pela insuficiência de capital, de conhecimento e de recursos humanos, relacionava-se com a dependência de uma economia regional dominada pela África do Sul e, mais a norte, pela Rodésia. Esta posição conferiu-lhe uma funcionalidade económica específica, condicionando o sistema de reprodução de mão-de-obra e o tipo de intervenção de um Estado predador.

No subúrbio desta cidade, erguido pela persistência das suas populações, desenvolveu-se o futebol que Craveirinha desejava estudar.

Juca, Mário Coluna e Matateu Juca, Mário Coluna e Matateu Vicente Lucas Vicente Lucas

Retirado do livro Futebol e colonialismo: corpo e cultura popular em Moçambique

uma parte em acesso livre na minha página do site do ICS 

  • 1. José João Craveirinha nasceu em Lourenço Marques, em 1922. Poeta consagrado, jornalista, colaborou em diversas publicações periódicas, nomeadamente em O Brado Africano, no Itinerário, no Notícias, na Mensagem, no Notícias do Bloqueio e no Caliban. Nestas colaborações, o desporto foi um dos seus temas mais recorrentes. Foi funcionário da Imprensa Nacional de Lourenço Marques. Jogou futebol em clubes de Lourenço Marques. Foi preso pela PIDE e ficou encarcerado durante cinco anos. Após a independência de Moçambique foi membro da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e presidiu à Associação Africana. Foi Prémio Camões em 1991. É um dos mais reconhecidos poetas da língua portuguesa e um dos maiores escritores africanos. A sua primeira obra, Xibugo, data de 1964.
  • 2. Jornal fundado em 1918 no âmbito da política do associativismo africano local, cuja acção e influência será avaliada mais aprofundadamente ao longo deste trabalho.
  • 3. A divisão entre o africano e o europeu é uma das mais poderosas formas de classificar os grupos humanos que estiveram envolvidos no encontro colonial. É conhecida, porém, a insuficiência desta classificação, desestruturada por um conjunto de processos históricos que dão origem a outras classificações muitas vezes sobrepostas: indígena, negro, moçambicano, natural, etc. De acordo com os contextos de acção presentes ao longo deste trabalho, procurar-se-á utilizar o termo que melhor permita descrever, em determinada ocasião particular, o grupo a quem o substantivo se refere.
  • 4. Sobre os preconceitos nas representações do negro em contexto colonial ver Henriques (1999) Alexandre (1999) Margarido (2000) Castelo (2001) Matos (2006) e Jerónimo (2010). Sobre o negro em Portugal ver Henriques (2009).
  • 5. Esta variedade urbana tornou-se num dos eixos de desenvolvimento dos estudos das cidades coloniais e pós-coloniais em África, motivo para a realização de investigações comparativas centradas em múltiplos aspectos, desde o tipo de estrutura produtiva, até à recomposição étnica, passando pela dimensão legal e jurídica. A este propósito ver os estudos clássicos de Epstein (1967), Cooper (1983), Mitchell (1987), King (1990), Coquery-Vidrovitch (1991) e Freund (2007).

por Nuno Domingos
A ler | 12 Maio 2012 | colonialismo, Eusébio, futebol, José Craveirinha, Lourenço Marques, moçambique