No Need for European Decolonial Instruction

E aqui vamos nós de novo. À distância de pouco mais de um ano, o Finding Committe responsável pela nomeação do próximo curador da Documenta 16 (provavelmente a ser realizada em 2027) repete o seu kangaroo court, como definido pelo poeta e crítico de arte Ranjit Hoskote, um dos membros daquele que já foi o committe. 

Documenta15, Kassel 2022Documenta15, Kassel 2022

Em junho passado, na abertura da Documenta15 com curadoria do colectivo indonésio ruangrupa, o governo alemão criou uma comissão disciplinar para corrigir o erro dos selvagens, puni-los em praça pública, “civilizá-los”. Implícita, a suposta “incapacidade de compreensão” do coletivo. No entanto, o ruangrupa foi escolhido pelo Finding Committe, por sua vez designado pela instituição alemã. A quem então deveria ser atribuída a incapacidade de compreender? Ou a vontade de manipular? Em resposta a acusações de antisemitismo, a então comissão manifestou publicamente admiração pelo trabalho dos curadores e mostrou-se preocupada com “o direito dos artistas, e do seu trabalho, de repensar, denunciar e criticar fórmulas políticas e padrões de pensamento fixos”. Nos dias de hoje, a história repete-se, numa situação ainda mais delicada devido à actual ocupação dos territórios palestinianos pelo governo israelita.

 

Público observa o trabalho do Indonesian collective Taring Padi, Documenta15, Kassel 2022Público observa o trabalho do Indonesian collective Taring Padi, Documenta15, Kassel 2022

Após os acontecimentos do ano passado, é imposta a garantia de que o comité e os subsequentes directores artísticos não tenham simpatia pelo Boycott Divestment and Sanctions (BDS), um movimento palestiniano que promove boicotes, desinvestimentos e sanções económicas contra Israel. Tal simpatia é definida arbitrariamente, muitas vezes como resultado de uma fusão míope entre a oposição à política israelita e acusações de anti-semitismo. Na “limpeza étnica” levada a cabo para chegar à definição da actual comittee, vários curadores internacionais, já nomeados oficialmente, foram destituídos do cargo com base nesta presunção de culpa.

Archive (organizado por Clara Astiasarán, Tania Bruguera, Ernesto Oroza ) Artistas Raychel Carrión, Lázaro Antonio Martínez Durán, Documenta15, Kassel 2022Archive (organizado por Clara Astiasarán, Tania Bruguera, Ernesto Oroza ) Artistas Raychel Carrión, Lázaro Antonio Martínez Durán, Documenta15, Kassel 2022

Na sua carta de demissão, Hoskote escreve: “Estou chocado com a acusação de que sou anti-semita e com a sugestão de que preciso de instruções sobre este assunto delicado. Simples fatores biográficos tornam esta acusação absurda.” I am in need of instruction. Em vez disso, ele explica claramente na carta - possibilidade que não lhe foi dada pelos seus acusadores - o contexto no qual as acusações de anti-semitismo estão sendo colocadas. Além de desmascarar a completa distorção dos factos, Hoskote levanta uma questão legítima: “Nenhum membro dos comentadores alemães que me denunciaram perguntou porque é que o consulado geral israelita considerou adequado equiparar o sionismo ao Hindutva”. A Europa não demostra interesse algum em preencher a própria ignorância. Ele explica numa nota na carta: “Hindutva é uma ideologia autoritária-populista que surgiu na década de 1920, inspirada nas doutrinas e métodos nazistas e fascistas, que concebeu o Estado nacional com uma maioria hindu e minorias religiosas como entidades de segunda classe”.

Aboriginal Embassy, Brook Andrew, Documenta15, Kassel 2022Aboriginal Embassy, Brook Andrew, Documenta15, Kassel 2022

O resultado evidente do processo disciplinar desencadeado pela Documenta15, confirmado pelo que está a acontecer nos últimos dias, é o desmascarar da hipocrisia perversa da política cultural descolonial europeia. Em vez de resolver questões internas que vêm à tona de modo cada vez mais flagrante, o Estado alemão prefere aplicar medidas disciplinares autoritárias, repetindo antigas formas de gaslighting implementadas na Alemanha de Leste durante as décadas de 1970 e 1980 e criando, a cada situação, novos bodes expiatórios. Continua Hoskote “é claro que, nesta atmosfera tóxica, não há espaço para uma discussão matizada das questões […] Um sistema [..] que opta por ignorar tanto a criticidade como a compaixão – é um sistema que perdeu a sua orientação moral.” A renúncia de Hoskote foi precedida pela de Bracha L. Ettinger, artista israelita que declarou “que não se sentia em posição de participar do julgamento, dado os dark times em Israel”. Os restantes colegas de Hoskote, em solidariedade, ou talvez por asfixia, completaram a demissão de todo o comittee, colocando em risco a próxima edição de 2027, dizendo: “Este é o clima emocional e intelectual de simplificação excessiva de realidades complexas, e as consequentes limitações restritivas, que prevalece desde a Documenta 15 […] Nas actuais circunstâncias não acreditamos que haja espaço na Alemanha para uma troca aberta de ideias e para o desenvolvimento de abordagens artísticas complexas e diferenciadas […]. Não acreditamos que sejam criadas condições aceitáveis ​​a curto prazo.”

Dan Perjovschi, Documenta15, Kassel 2022Dan Perjovschi, Documenta15, Kassel 2022

​No entanto, mesmo nestas condições, o soft power da Alemanha – e neste caso vale a pena salientar que a Europa, tal como o continente africano, não é um bloco monolítico  – continua a ser o pano de fundo para as principais rotas de financiamento e implementação das políticas culturais de[neo]coloniais na Europa e no Sul Global com consequências óbvias. Se na Europa a discrepância nos investimentos destinados à investigação e à produção cultural não pode ser considerada um dado neutro, Berlim suga violentamente a excelência do Sul do mundo como já fizeram as políticas do Banco Mundial nos anos 80, aproveitando-se de toda a mais-valia por ela criada. E isso é lido como decolonial, até que o “selvagem” destabilize os planos, porque não é capaz de compreender, ou de se adaptar às ideias pré-construídas de “multiculturalismo” unidirecional.

Banner do FoundationClass collectiveBanner do FoundationClass collective

De forma alguma querendo justificar as ações do Estado israelita, deveríamos perguntar-nos as razões pelas quais aceitamos incondicionalmente o boicote a Israel sem questionar os fundos e os interesses da politica cultural alemã (bem como as prestigiadas instituições artísticas sauditas). Ao comentar a dinâmica de participação na última edição da Bienal de Veneza (2022), Eric Otieno Sumba observa: “os mesmos organizadores [La Biennale] que, com razão, apoiaram a participação da Ucrânia toleraram indivíduos criando um modelo de negócio com pavilhões de países não-ocidentais. Afinal, ambos os cenários não são políticos?”

por Laura Burocco
Vou lá visitar | 21 Novembro 2023 | alemanha, arte contemporânea, Documenta 15, sul