De mar a mar, maré

O rio fica lá / A água é que correu / Chega na Maré / Ele vira mar

Rodrigo Amarante

A primeira vez que vi o Rio vi a Maré. Oferenda da cidade informal que se espraia desde o aeroporto Galeão até à zona Sul.

Com o instinto de quem reconhece um lugar, perguntei ao taxista Luís por onde passávamos. Confirmou.

A Maré forma-se num conjunto de 16 favelas. Complexo da Maré é o seu nome formal e aquele que o Google nos devolve quando nos geo-localizamos ali, mas nunca me pareceu que fosse a designação mais feliz para o imenso grupo de comunidades e seus habitantes. Soa a uma procura de homogeneização algo tecnocrata, ou então pode ser só uma questão semântica que não combina tão bem com a textura do lugar. Há, porém, uma coincidência cheia de graça nestas palavras se as juntarmos pela ordem inversa - e que é tão bem ironizada pelos moradores - AMARÉCOMPLEXO? ou, já agora, amarésimples?

E porquê Maré? Conta a história que outrora as marés chegavam até à zona norte desaguando numa espécie de área pantanosa que se transformou depois na favela. Preferindo explicação menos técnica, fica para o caso maré, gesto marítimo que traz e leva. Tão certo com a energia do lugar.

Trazia de casa uma curiosidade teimosa em conhecer aquele ‘morro’ plano de casas vernaculares tão menos coloridas que a imagem padronizada de favela de zona sul. A honestidade na fealdade de um lugar que, apesar de todas as coisas belas, é duro e complexo. O sentimento não era o de viver uma experiência limite de Rio de Janeiro, zero vontade de adrenalina na ‘expedição’ à favela. Era antes conhecer outra potência de criação, novos modelos artísticos, assim como a convivência humana nos perímetros de periferia como força geradora de novos repertórios da construção de identidade na comunidade.

Neste momento será, porventura, mais prudente avisar de que apesar das palavras comunidade e identidade estarem articuladas na mesma frase, este texto, não está a ser escrito sob qualquer ortografia ou tarefa académica. Como disse Borges, “sempre que folheava livros de estética tinha a sensação de estar lendo as obras de astrônomos que nunca contemplavam as estrelas” e eu, cobardemente escudando-me nas suas palavras, declaro aqui um puro exercício de contemplação.

No início era a curiosidade, mas rapidamente se transformou nalguma coisa maior, ou melhor, nalguma coisa mais essencial. A travessia na avenida Brasil em direcção à zona norte é árida como o deserto e agitada como a babilónia. Tem o romantismo da via que liga a periferia ao centro, que traz e leva, que entra e sai, com as cores berrantes da multidão desorganizada; os camelôs e sucedâneo comércio informal a colorir a viagem; o trânsito doido dos ônibus cariocas que disputam um título de fórmula 1 e nos obrigam a ser seus co-pilotos; as passarelas com números que dão acesso preciso a áreas dentro do aglomerado de betão, plástico e terra batida, só que toda esta animação entrincheirada por check points do exército a cada fracção.

É aqui que começa o filme.

São tanques de guerra numa imagem despropositada, assegurando uma paz que se é armada então não é paz. Os militares envergam o arsenal bélico disponível e cumprem o avatar que lhes é destinado com elevada distinção, pintura realista que instiga imediatamente uma sensação de medo, de coerção, de desconforto. De uma segurança sem qualquer comodidade. 

 

Mão na Lata. Imaginação. Tempo. Movimento.


Na primeira vez cheguei de carro na Nova Holanda pela mão generosa da Tatiana, cedo, que é assim que se começa o dia no Rio, para ir ter com a galera da Mão na Lata. Cheguei com os olhos carregados de espanto e saí, no final do dia, de coração cheio.

A Mão na Lata é um projecto artístico de fotografia, em parceria com a Redes de Desenvolvimento da Maré. Funciona numa lógica de workshop em progresso entre monitores/tutores e alunos, sob a coordenação da designer e fotógrafa Tatiana Altberg. É um projecto de educação que trabalha a autonomização e o desenvolvimento pessoal e social de adolescentes da Maré por meio da fotografia e da literatura.

Há dois núcleos essenciais, de manhã os mais novos aprendem a pensar sobre o tempo, o movimento e a imagem, através da fotografia pinhole. É extraordinária a forma como uma técnica de fixação de imagem arcaica consegue realmente conceptualizar o pensamento acerca da fotografia. Para estas crianças acaba por ser ainda algo mais, é o momento de concentração - sem focus não há arte - em que cada um deles, saíndo com a respectiva lata, vai pensar sobre o experimento fotográfico do dia, o porquê dessa opção pessoal, realizando as demandas necessárias para o sucesso do ofício poético.

Importa só relembrar que o cenário de que dispõem estas crianças não é ilimitado, como seria desejavelmente a imaginação. Têm à sua disposição a estrutura de um bairro informal, desenhado organicamente entre a confusão do trânsito, as casas vernaculares, as ruas partilhadas entre habitantes, alguns animais de rua, ostensivo exército escalado para bloquear as dinâmicas sociais e bizarros traficantes que, com a perícia veterana de outros tempos, se mantêm na esquina oposta à presença militar, assegurando ainda a actividade paralela da favela. Nada de ambiente naturalista bucólico, recorrente no aprendizado criativo, antes uma natureza áspera que produz, no entanto (ou por essa dificuldade), elevado material artístico.

Na manhã que estive com eles decidiram que seria a sua natureza morta. Com um monte de latas apontadas a mim - paparazzis de alto nível - o mais quieta que consegui, esperei que o furinho da lata captasse a imagem. Na revelação, por entre nuvens, manchas e outras abstracções, o Nicholas conseguia o exímio retrato.

 

Caio

No segundo grupo do colectivo Mão na Lata participam os jovens mais velhos, faixa etária 14-21. São moradores da Maré e a relação com o projecto é a de agentes de criação. Tatiana Altberg é uma vez mais a coordenadora e quem lança uma primeira preposição de exploração criativa, todavia o processo é colectivo, bem como a instância autoral final. O que acompanhei foi, neste caso, o desenvolvimento de um filme em stopmotion. A história de Caio, um garoto aparentemente comum, que se vai metamorfoseando em ave. Os detalhes da epopeia estão guardados a sete chaves e o desfecho desta transformação deixamos para o visionamento do filme.

O grupo organiza-se em torno de funções específicas e todas as decisões são tomadas em conjunto, fruto do processo de emancipação das lógicas assistencialistas aluno/professor; ou, pior, assistente social/jovem problemático.

Este será possivelmente o ponto mais interessante que encontrei neste modelo de intervenção pela arte. Trocar ou invés de assistir, partilhar sinergias num mesmo tabuleiro, com coragem e risco, a partir repertórios distintos para a experimentação colectiva. Há também um caminho bi-lateral generoso sem o qual o risco nunca valeria a pena. A conquista da confiança será o maior cavalo de batalha num processo criativo e neste em particular sei que foi a luta resiliente de todos.


 

Cor e Vida


A soma de todas as sortes foi ter podido fazer parte deste coro tão vibrante. Depois do preto/branco da fotografia pinhole eu e a Joana Paz (ver aqui) sob a atenciosa observação da Tatiana passámos uma manhã a falar de cor, a resignificar cada elemento cromático com as crianças.

É um exercício sobre a impressão que a luz reflectida nos corpos produz, mas neste caso foi também perceber a diferença de repertórios que cada um possui e os resultados que produzem. A resposta sobre o que significa cada cor é infinita, é do tamanho da imaginação de cada individuo e por isto muito mais do que uma competência educativa. Através da cor conhecemos um bocadinho do universo de cada jovem e partilhámos com eles o nosso. São diferentes, são complementares como o círculo cromático. Deu um resultado magnífico.

 

Mão na lata, mão na vida, para que ela não passe a mão na gente

“Arte além das fronteiras”

Duas ruas acima, cheguei no Centro de Artes da Maré, no Galpão onde funciona a Cia Lia Rodrigues de dança.

Quando vi os espectáculos da Lia em Lisboa, primeiro o Pororoca e depois o Pindorama intuí que no dia que fosse ao rio iria à maré. Não podia ser - e não é - casual que aquele projecto pungente e essencial viesse deste lugar. A companhia promove, por outro lado, um interessante rompimento de fronteiras para além do muro da comunidade.

Do grupo de dança fazem parte vários bailarinos também moradores da Maré e da circunstância de estar ali sediado surgem expressividades únicas. Como se a dureza e a fragosidade das ruas fossem dançadas nos movimentos radicais dos bailarinos. Fica-se na posição frágil de um espectador que vê, se identifica e se magoa.

Foi assim em Lisboa, quando a manga plástica revolta em ar e água machucava o corpo da bailarina e perturbava o nosso imaginário com um mar agitado e a impossibilidade do náufrago.

fotografia de Sammi Landweerfotografia de Sammi Landweer

 

Palestra Dançante


Pegar o ônibus na central, fazer a Av. Brasil na hora de ponta, sair no ponto e atravessar a passarela certa para chegar à palestra dançante da maravilhosa galera da Lia Rodrigues. A sorte também dá trabalho.

Assim, chegando à Maré no caos de um final de Sexta, assistimos a um momento colossal de arte. Mais despido do que o habitual, sem palco, sem rede, só com luz branca, o grupo da Lia ensaiou uma palestra dançante diante dos olhares comovidos de uma dúzia de estrangeiros e de outros tantos cariocas. Discutiu-se se nos devíamos aproximar para ver, ou escolher a mancha informe dos corpos ao longe. Nas salas de espectáculo raramente consigo estar tão perto de acção, na Maré fiquei de corpo e alma colada à cena e essa hipótese foi sensacional.

A partir desta espécie de roteiro fiquei conhecendo aquela ínfima parte do todo que é a vida na Maré, um ínfimo grandioso e inspirador. Na primeira pessoa fiquei cheia de histórias e trouxe também outros repertórios. A convivência humana na periferia como potência é fortíssima e derruba o muro da comunidade apartada.

Os rios levam ao mar e as Marés desaguam no Rio.

 

Artigo originalmente publicado na Stress.fm via Transições Urbanas. 

por Ana Teresa Ascensão
Vou lá visitar | 6 Janeiro 2015 | favela, Maré, Práticas artísticas, Rio de Janeiro, Stress.fm, Transições Urbanas