Daqui a nada: um olhar sobre a cooperação e os investimentos brasileiros no Corredor de Nacala

Quando se trata de investimentos e cooperação brasileira na África, é impossível não ouvir falar do Corredor de Nacala, em Moçambique. É lá que estão duas das maiores empreitadas internacionais do país no campo da mineração e da cooperação para o desenvolvimento. A companhia Vale está presente na região desde 2004, explorando uma das maiores reservas de carvão de alta qualidade do mundo, a mina de Moatize. Ela é também sócia majoritária da Corredor Logístico Integrado de Nacala S.A, concessionária criada em 2012, responsável pela operação dos trens e do terminal portuário. O Corredor é também palco de um polêmico projeto de cooperação trilateral, o ProSavana, do qual participam Brasil e Japão, e que tem como objetivo a modernização da agricultura na região. Este Corredor, que desde o período colonial exerce um importante papel no transporte de recursos naturais e abastecimento alimentar, já conta com ferrovia e porto, e tem se tornado, cada vez mais, alvo de investimentos internacionais para melhorias em infraestrutura.

O Corredor de Nacala encontra-se em um acelerado processo de transformação, com o objetivo de ampliar a capacidade de escoamento de carvão entre o distrito de Moatize — onde a Vale é a principal exploradora de minérios — e Nacala, onde fica o porto. A localização, voltada para os mercados da Ásia, é uma importante vantagem não só para a exportação de carvão mineral, mas também, a médio prazo, para o mercado de commodities alimentares, uma vez que a savana moçambicana tem sido considerada uma das mais importantes fronteiras agrícolas a serem abertas no continente africano. Este corredor logístico é considerado um projeto estratégico de desenvolvimento para toda a região austral da África1, assim como para os demais países africanos e outros atores da economia global que já perceberam que é por estas vias que escorrerão grande parte dos recursos naturais da África para o mercado internacional.

Em janeiro de 2015, percorremos grande parte dos 900 quilômetros do Corredor, por onde em breve passará uma média de 22 trens de carvão por dia. Conversamos com lideranças locais e representantes da sociedade civil organizada, buscando compreender como percebem a Vale e o ProSavana e os impactos da sua chegada e como estão se organizando para reivindicar seus direitos e participar de processos que afetam diretamente o curso de suas histórias em nome do desenvolvimento. A partir das vozes da população fizemos um filme, que fala do agora, que fala deste “Daqui a Nada”.

A Vale e a “nova vida” em Moatize

As primeiras conversas que tivemos foram em Moatize, na província de Tete, com a população que vive no entorno e dentro da área de concessão da Vale. Uma das maiores empresas de mineração do mundo — presente em 27 países, nos cinco continentes —, a Vale chegou a Moçambique em 2004, quando venceu a concorrência e recebeu a concessão para a exploração da reserva de Moatize, para começar a atividade extrativa em 2011. A chegada ao continente africano se intensificou a partir de 2002, na esteira de expansão da economia global e afinada com a estratégia da diplomacia brasileira adotada entre 2003 a 2010, baseada no estreitamento das relações políticas e econômicas com os países do Sul.

Moçambique tem uma das maiores reservas mundiais de carvão mineral a céu aberto. Atualmente, são produzidos pela Vale 11 milhões de toneladas de carvão metalúrgico e térmico ao ano, em uma área de concessão de 23.780 hectares dos quais apenas 16 mil são utilizados. Segundo dados oficiais, a Vale e suas terceirizadas no país empregam quase 18 mil trabalhadores, sendo 87% moçambicanos2. A gigante brasileira, que agora tem como parceira a japonesa Mitsui, pretende duplicar a capacidade de produção para 22 milhões de toneladas até o fim de 2016.3

É interessante notar que esta relação se constrói em uma triangulação em que o Japão tem papel central. Desde os anos 1960, agricultura e mineração foram setores fortemente dinamizados no Brasil com apoio do governo japonês. Só em 2000 houve uma virada nos termos dessa cooperação e o Brasil passou a ser visto pelo Japão como um “parceiro de desenvolvimento” no enfrentamento de problemas globais, como

a segurança alimentar. Essa mudança de percepção deu condições para a criação de acordos de cooperação trilateral junto a países do Sul, sendo o exemplo mais emblemático o ProSavana4. No campo da mineração, seguem entrelaçados os investimentos dos dois países, como se vê no Corredor de Nacala.

Pode-se dizer que a instalação de uma companhia desse porte gera impactos em qualquer região. Organizações da sociedade civil moçambicanas vêm acompanhando de perto o trabalho da Vale e denunciando situações de violação de direitos relacionadas à sua chegada. Algumas destas visões, que indicam sinais de rupturas sociais e mal-estar entre as comunidades e a empresa, correspondem ao que observamos e ao que ouvimos em relatos sobre processos de reassentamento pouco transparentes e mal geridos.

O deslocamento da população para dar lugar à mina ocorreu entre 2009 e 2010, quando aproximadamente 1.300 famílias foram divididas entre os reassentamentos de Cateme, a 40 quilômetros da cidade de Moatize, e o do bairro 25 de Setembro, na vila de Moatize5. As muitas conversas que tivemos confirmam o que vários estudos já constatavam: o reassentamento é apresentado para a população como um fato que não se pode questionar, acompanhado de promessas de uma “nova vida” e de acordos não documentados, que muitas vezes acabam não sendo cumpridos.

Uma das lideranças do bairro 25 de Setembro diz que, no início das negociações, “as pessoas tinham os olhos fechados”; desconheciam completamente o que as aguardava e abandonaram as terras de seus ancestrais para viverem “vedados” em uma realidade urbana. Os relatos de campo indicam que em Chipanga, onde moravam, havia boas condições de acesso à água, à lenha e aos mercados de Moatize e para a prática da agricultura, da pesca e de atividades como a produção de tijolos.  Cateme, local de um dos reassentamentos, fica longe da cidade e tem solo pedregoso e pouco fértil; no 25 de setembro, não há lugar para a produção de alimentos.

No início, também, os reassentados, assim como a população de Moatize, tinham forte expectativa de conseguir o primeiro emprego. Contudo, devido ao baixo grau de formação e à falta de experiência no mercado de trabalho formal, a população não teve sua mão de obra absorvida pela empresa — alguns prestaram serviços, por apenas três meses, para empreiteiras subcontratadas da Vale, como a Odebrecht.  Isto gerou um forte ressentimento e muitos afirmam que há favorecimento de etnias do Sul do país ou de estrangeiros, além de muitas indicações políticas. 

Entre os trabalhadores atingidos pela Vale, a classe mais organizada é a dos oleiros. Produtores dos tijolos usados, principalmente, na construção local, eles não estão satisfeitos com a interrupção de suas atividades e com as indenizações e abriram um processo legal contra a empresa; como estratégia de negociação, eles adotaram o fechamento da ferrovia com barricadas nas principais vias de escoamento de carvão, tática já utilizada pelos reassentados de Cateme e 25 de Setembro. Para a Vale, o assunto está esgotado e os oleiros, devidamente compensados6.

Os oleiros nos levaram para conhecer os moradores de Bagamoyo, em Moatize, chamam de “Muro de Berlim”: uma montanha negra feita de resíduos do carvão que, com a ajuda de uma vala e uma extensa grade, separa o bairro da área de concessão da Vale. O muro, que segue em expansão, foi construído sobre os fornos de tijolo desativados e cada vez mais impede a passagem da população para uma área em que ainda há lenha e pastagens. Considerado agressivo estética e ambientalmente, o muro separa homens e mulheres que vivem em crescente pobreza urbana e uma terra verde e desabitada.

Em seus informativos, a Vale costuma dar visibilidade às iniciativas de responsabilidade social, em especial as realizadas nos reassentamentos, tais como projetos de geração de renda e empreendedorismo. São oferecidos cursos de formação para costureiras, serventes, pedreiros e outros, que, na visão da empresa, vão ao encontro das demandas de bens e serviços crescentes na região. Há ainda projetos em parceria com a rede de extensão agrária local, com o objetivo de melhorar a produção de alimentos7. Questiona-se, porém, a efetividade destas iniciativas pontuais que visam a compensar as famílias reassentadas em um cenário em que os desafios de acesso à terra e ao mercado de trabalho criado pela empresa e suas prestadoras de serviço ainda não foram equacionados. Durante as filmagens em Moçambique, solicitamos entrevista com um representante da área de responsabilidade social, mas não obtivemos resposta.

Os relatos das pessoas que vivem nos reassentamentos da Vale em Moatize indicam uma brusca ruptura dos modos de vida tradicionais, sem que sejam criadas alternativas condizentes com a cultura local ou a profissionalização que a “nova vida” requer. Como resultado, o acesso à moradia, à alimentação, à geração de renda e até mesmo às práticas de medicina tradicional é comprometido e as famílias acabam em uma situação alarmante de vulnerabilidade e exclusão, cada vez mais próximas da pobreza urbana.

ProSavana, só se for de “cabo curto”

À medida que seguimos o Corredor de Nacala em direção ao porto, chegamos à província de Nampula, área de atuação do projeto ProSavana. Em sua proposta original, esta cooperação trilateral pretendia reproduzir na savana moçambicana o Prodecer, projeto iniciado na década de 1970 e viabilizado pela cooperação japonesa, que apoiou a transformação do cerrado brasileiro em um celeiro de grãos8.

O ProSavana, pensado para 20 anos em uma área de aproximadamente 10 milhões de hectares ao longo do Corredor de Nacala, tem como objetivo oficial a modernização da agricultura através da “criação de novos modelos, tendo em conta os aspectos ambientais e socioeconômicos, buscando o desenvolvimento agrícola rural e regional orientado para o mercado e com vantagens competitivas9”. Atualmente, o projeto é apresentado como a estratégia oficial do governo moçambicano para o desenvolvimento rural da região e como a mais ampla iniciativa de cooperação brasileira no campo da agricultura. No entanto, o que ouvimos nas conversas com lideranças camponesas da província de Nampula é que as estratégias desenhadas e as tecnologias propostas pouco consideram o perfil, as necessidades e os desejos dos agricultores locais, em sua grande maioria camponeses e pequenos produtores, que costumam trabalhar com machadas de cabo curto, em pequenas propriedades de 1,5 hectares em média, denominadas “machambas”.

O ProSavana não passou, inicialmente, por nenhum tipo de consulta pública, o que gerou um amplo movimento de resistência e cobrança de diálogo e participação, liderado pela principal representação camponesa do país, a União Nacional de Camponeses (UNAC), em convergência com movimentos internacionais de denúncia de práticas de usurpação de terras, ou “land grabbing”. A mobilização foi uma reação à forma como surgiram as primeiras notícias sobre o programa, nas quais transpareciam a perspectiva de internacionalização do agronegócio brasileiro e o interesse dos comerciantes japoneses em uma associação clara de cooperação e investimentos voltados para o mercado internacional de grãos, logo percebidos como uma ameaça ao direito à terra dos habitantes da região.

Como resultado, em 2012 e 2013, foram enviadas aos presidentes dos três países duas cartas abertas, que apresentavam críticas ao programa e cobravam mais transparência e participação10. Como não houve resposta oficial a essas cartas, em meados de 2014 foi lançada a campanha “Não ao ProSavana. Desde então, o projeto vem passando por significativas transformações. Durante quase um ano, não se soube sobre os rumos do programa. Finalmente, em abril de 2015, após o período da nossa visita, foi convocada uma consulta pública, a partir do seu Plano Diretor. Ainda é cedo para prever o significado e os resultados desse processo.

No rastro do ProSavana, chegamos a dois distritos, Ribaue e Monapo, na província de Nampula, Norte de Moçambique. Em ambos fomos, recepcionados por representantes da União Provincial de Camponeses de Nampula (UPC). Buscávamos compreender o que pensavam as lideranças camponesas da região sobre o programa e o que encontramos foi uma atmosfera de desconfiança e a constante associação do ProSavana à chegada de empresários estrangeiros e ao risco de tomada de suas terras. Notamos que começava também a despontar uma preocupação quanto à perspectiva de transferência tecnológica, prevista no mais novo componente do programa, o Plano de Extensão e Modelos (PEM). Algumas organizações, como as que visitamos em Iapala, no distrito de Ribaue, já estão recebendo crédito e assistência técnica sem que o modelo de desenvolvimento rural em questão tenha sido divulgado ou debatido, como vem sendo demandado pelo movimento camponês. 

Nas cartas abertas, o que os camponeses propõem é um modelo de produção para o Corredor de Nacala baseado em fundamentos como a produção agroecológica, o uso de tecnologias adequadas aos modos de produção tradicional, a extensão rural participativa e a prioridade da produção de alimentos pela agricultura familiar e para o consumo interno. Estas propostas se apresentam em contraposição ao que é percebido pelos camponeses da UNAC como o paradigma do ProSavana, ou seja, “um modelo fundamentado no aumento da produção e produtividade, baseado em monoculturas de exportação, que pretende integrar os camponeses no processo produtivo exclusivamente controlado por grandes corporações internacionais”11. Em uma reunião com camponeses, a vice-presidente da UPC valoriza o conhecimento e as práticas de produção tradicionais e a autonomia dos camponeses quando diz “queremos o nosso ProSavana, o ProSavana de cabo curto”.

Terra, “um direito que sempre foi nosso”

Em Monapo, nos deparamos com um contexto de grande tensão, em que as terras já começaram a ser ocupadas por empresários estrangeiros. Chegamos ao distrito por indicação da UPC, que atribui ao ProSavana os conflitos de terra que lá ocorrem, ainda que as autoridades públicas com as quais falamos neguem esta associação. Vale ressaltar que em Moçambique, desde a independência, em 1975, a terra é propriedade do Estado, sendo o seu acesso regulamentado por títulos de usufruto, denominados Direitos de Uso e Aproveitamento da Terra (DUATs), concessões de até 50 anos renováveis por mais 50, de acordo com a Lei de Terras. Os investidores estrangeiros podem receber o DUAT através de um processo que, entre outras exigências, prevê a realização de consultas comunitárias junto àqueles diretamente afetados pelo novo empreendimento. Porém, o que tem se verificado é que essas consultas são deficientes ou sequer ocorrem, como comprovamos na localidade de Seabra.

Ao acompanhar o presidente da União Distrital de Camponeses de Monapo em reuniões com os agricultores, ouvimos relatos dos camponeses que revelam indícios da tomada de suas terras por uma ainda não identificada empresa estrangeira. Representantes do governo local alegam que houve um processo de consulta comunitária em Seabra, mas os moradores afirmam que o que houve, de fato, foi apenas a coleta de algumas assinaturas necessárias para a emissão do DUAT, autorizando a cessão de terras à empresa, em extensão ainda desconhecida pelos produtores locais. Situação similar ocorreu dois anos antes no mesmo distrito, na localidade de Nacololo, onde hoje opera a empresa sul-africana AlfaAgro, dedicada ao cultivo de soja e feijão em uma área de concessão de 2 mil hectares. Os camponeses de Monapo, de ambas as localidades, não reconhecem como legítimos os processos de consulta que permitiram a cessão de suas terras, e apenas recentemente começaram a se organizar para defender seus direitos.

 

Modernização da ferrovia: de comboio de passageiros a trem de carga

O trem de passageiros que liga a cidade de Nampula a Cuamba é a espinha dorsal do Corredor de Nacala. As operações tiveram inicio em 1912, a partir de um projeto inglês que visava ligar o Protetorado Britânico da África Central, atual Malawi, ao oceano Índico. Desde então, pequenas vilas e conglomerados urbanos se formaram e se mantiveram ao longo da ferrovia. É no seu entorno que vive grande parte dos camponeses do Norte, uma das regiões mais populosas do país. Para a população local, o trem é não só o principal meio de transporte entre os distritos, mas também a principal via de escoamento da produção camponesa, basicamente familiar, seja para alcançar os maiores mercados, como os de Nampula e Cuamba, ou na venda aos viajantes nos apeadeiros.

O vaivém do abastecimento alimentar se faz sobre os trilhos e nas plataformas das estações. A importância da ferrovia para as dinâmicas sociais e econômicas locais é ainda mais acentuada na medida em que os transportes públicos rodoviários são muito precários na região.

A empresa brasileira Vale e a japonesa Mitsui são também parceiras estratégicas do governo moçambicano na modernização da ferrovia, através da Corredor Logístico Integrado de Nacala S.A. (CLN). Todo o projeto de estruturação do corredor — que consiste na construção e reabilitação de 912 quilômetros de ferrovia ligando Moatize a Nacala-à-Velha, passando pelo Malawi, e na construção de um terminal portuário multiusuário de carvão — está em consonância com a expansão da capacidade de produção da mina da Vale e com a perspectiva de diversificar o transporte de carga com outros minérios e grãos. Não se sabe exatamente, pelo desencontro de informações, mas estima-se que circularão diariamente 20 comboios, compostos por quatro locomotivas e 120 vagões (aproximadamente 1.500 metros de extensão). O inicio das operações do complexo estava previsto para os últimos meses de 2014. No entanto, em janeiro de 2015 a linha férrea ainda estava em obras e os novos vagões encontravam-se dispersos em trechos da linha de trem.

Paralelamente, estão sendo construídas estradas, financiadas pela cooperação japonesa e tocadas, principalmente, por empreiteiras chinesas, como ocorre em grande parte das obras de infraestrutura em Moçambique.

Mesmo antes do início oficial das operações do complexo logístico, os impactos da modernização da ferrovia já começam a ser sentidos pela população. Em meados de 2014, as viagens de trem foram reduzidas pela metade e vários apeadeiros foram fechados — alguns vagões foram apedrejados, como reação indignada da população sem informação sobre o processo. Cabe observar se o que está em curso em Moçambique é uma transição que visa a transformar o trem em um transporte exclusivo de carga, como aconteceu com as operações logísticas da Vale no Brasil. Além disso, desde 2013 há um esforço para remover a população que vive nas faixas laterais da linha de trem, de acordo com as normas de segurança internacional. Ainda não é possível precisar, mas há um grande número de famílias, urbanas e rurais, sendo removidas e indenizadas, a partir de metas, planos de investimento e prazos, que respondem ao tempo e às necessidades do mercado.

A cidade de Nampula, principal centro urbano da região, com mais de 380 mil habitantes, será cortada ao meio pelo intenso fluxo diário de carvão. O bairro de Namutequeliua, um dos mais populosos, é delimitado pela ferrovia. Segundo moradores entrevistados, um dos principais problemas do bairro são as condições de acesso. Praticamente não há ruas e as pessoas transitam a pé, muitas vezes carregando motocicletas, por cima da ferrovia. Os moradores quase nada sabem a respeito dos novos comboios de carvão ou dos motivos para a construção de um muro que está isolando a ferrovia e vedando os principais acessos ao bairro. Eles reclamam da falta de diálogo e consulta e começam a se dar conta de que seu cotidiano se tornará ainda mais difícil nessa área de baixa renda e investimento público em infraestrutura praticamente nulo. Além disso, são apontados riscos relacionados com a segurança das crianças, em decorrência das longas distâncias que elas terão que percorrer para entrar e sair do bairro, a falta de passarelas, a integridade das casas e as consequências na saúde, uma vez que o carvão será transportado a céu aberto.

É difícil perceber impactos positivos nos centros urbanos cortados pelo corredor logístico. O que se vê é um crescimento urbano desordenado. Entre outros problemas, há o aumento da criminalidade, pois muitos jovens são atraídos pela expectativa de emprego. A oferta, porém, é inferior à demanda e o trabalho, geralmente, é temporário. A fala de uma das moradoras das margens da ferrovia em Namutequeliua expressa bem a percepção que a população tem dos processos de desenvolvimento em curso no país: “Talvez para a sociedade em geral seja uma melhoria, né? Mas, sozinha, eu tenho certeza que estou a piorar”. 

 

Considerações finais

O encontro de Brasil e Moçambique no Corredor de Nacala, nos últimos anos, pode ser percebido como um casamento de interesses nacionais num momento em que o Brasil, especialmente entre 2003 e 2010, deslocava o eixo da política internacional para o Hemisfério Sul,  adotando como estratégia a expansão global das grandes empresas brasileiras, em dois campos também considerados estratégicos pelo governo moçambicano, a agricultura e a mineração. Alguns estudos revelam que a “nova África” se encaixa nas estratégias políticas e econômicas de frações das classes dominantes brasileiras12. Nesse sentido, também os grandes negócios do Brasil estão em consonância com o que almeja o governo moçambicano: o crescimento econômico pelo incremento de investimentos estrangeiros, com um padrão de desenvolvimento baseado na exportação de produtos primários13.

Nas conversas com lideranças locais e representantes da sociedade civil nas províncias de Nampula e Tete, quando introduzíamos o tema da cooperação e dos investimentos brasileiros, ouvíamos que a Vale e o ProSavana, a princípio, são bem-vindos. Mas o que parece refletir um desejo forte por desenvolvimento era seguido, geralmente, por muitas ressalvas que, além de apontar possíveis situações de violação de direitos das populações locais, questionam também a capacidade do Estado moçambicano de converter o crescimento econômico e a receita fiscal dos megaprojetos em ganhos para a sociedade, em especial para a parcela do povo diretamente atingida por essas iniciativas. Acima de tudo, as pessoas se ressentem da falta de consulta, de diálogo e de consentimento informado em assuntos de grande impacto sobre seu modo de vida. Também denunciam o não cumprimento das consultas públicas que são exigência da legislação moçambicana no caso de megaprojetos e da emissão dos certificados de Direito, Uso e Aproveitamento de Terras.

Em meio a tantas controvérsias, no ritmo da modernização e dos grandes empreendimentos, há uma população que se sente atropelada, mas que começa a exigir seus direitos. A maneira como os “atingidos” ou “potenciais beneficiários” reagem à chegada da Vale e do ProSavana no Corredor de Nacala revela um ambiente de desconfiança, indignação e tensão social num momento em que cresce a presença de países emergentes, particularmente do grupo BRICS. Nas encruzilhadas do capitalismo global, é preciso ampliar a escuta, o diálogo e os mecanismos de garantia e exigibilidade de direitos, apontando alternativas e construindo novas pontes e caminhos.

fotografias de Mariana Santarelli 

por Mariana Santarelli
Vou lá visitar | 11 Novembro 2015 | Daqui a nada, documentário, moçambique