Razia, poder e violência no sudoeste angolano

Introdução

As populações do sul de Angola figuram na historiografia como aquelas que por mais tempo resistiram às campanhas militares portuguesas, tendo os Kwanyama logrado manter grande autonomia até à morte do rei Mandume, em 1917. Contudo, a mesma noção de resistência que viabiliza o entendimento da atuação dos africanos da região durante o processo de ocupação, paradoxalmente, nubla a visão dos historiadores, se projetada para o período posterior. De acordo com a historiografia mais recente sobre estas populações, a resistência se deu face à penetração lenta, porém inelutável, das relações de produção capitalistas, restando aos africanos escolher a melhor forma de se conformar e articular seus sistemas produtivos ao novo imperativo econômico. O objetivo desta análise é, portanto, um deslocamento da perspectiva, a partir do qual se busca compreender menos a forma como os africanos resistiram a um processo imposto a partir de fora e que avança de maneira coerente, mas como certas estratégias sociais e ações políticas por eles articuladas impuseram mudanças ao conjunto das relações entre os agentes implicados na situação colonial. Importam aqui os interstícios ainda pouco iluminados da agência africana no sul de Angola: o que os africanos faziam do que se tentava fazer deles a partir da década de 1920? 

Dada a grande diversidade social manifesta no que Elisete Marques da Silva denomina como “universo agro-pastoril”, escolheu-se analisar o processo histórico que compreende as interações entre a população Kuvale e miríade de agentes que compunham a situação colonial do sul de Angola. Os Kuvale protagonizaram, entre 1940 e 1941, um conflito que culminaria em sua completa desarticulação social e institucional, e cuja complexidade nos permite entrever as tensões e os choques de interesses entre colonos, outras populações pastoris e agro-pastoris e autoridades coloniais.

Esta reflexão deriva, em primeiro lugar, de um questionamento posto à célebre tese de Mahmood Mandani (1996) sobre o legado colonial manifesto nas estruturas de poder baseadas em autoridades locais, a indirect rule. Para entender as formas de exercício poder no contexto colonial do sudoeste angolano, devemos compreender de que maneira os idiomas pastoris se impuseram distintivamente, bem como foram parte constitutivas das instituições coloniais. Isto implica pensar a tenacidade das formas políticas africanas menos como produto de uma eficaz estratégia colonial de dominação, e entender o indirect rule como um esforço discursivo, jurídico e institucional de adequação do estado colonial aos limites impostos pelas formações sociais que pretendia governar. Segundo Frederick Cooper, Lugard, entusiasta da indirect rule, foi profundamente hábil ao transformar um fracasso manifesto em uma aparente inovação política e institucional.

Em segundo lugar, a história dos Kuvale e de sua colocação face ao complexo pastoril e agro-pastoril da região sudoeste do continente africano muito tem a ganhar com uma profunda reflexão a respeito do que foi, de fato, o estado colonial. Se as tecnologias de poder e controle, e sua incidência destrutiva sobre as populações africanas, têm sido desde há muito objeto privilegiado da produção intelectual sobre contextos coloniais, não se pode deixar de abordar os limites destas tecnologias, as contradições entre sua concepção teórica e o exercício cotidiano, local, do poder, bem como as concessões a elas impostas pelas coletividades implicadas. Neste sentido, é fundamental a reflexão proposta pela historiadora Helen Tiley, a qual, em sua obra Africa as a living laboratory, busca compreender o imenso esforço econômico, político e intelectual mobilizado pelo projeto African survey como um produto da constatação de que o conhecimento preciso das lógicas sociais locais – o que viria a ser condensado sob o conceito de ecologia – era indispensável ao exercício do poder. Assim, tencionando a perspectiva apresentada por James Scott em Seing like a state, gostaria de pensar a plasticidade e permeabilidade das instituições coloniais às lógicas sociais africanas, reconhecendo nesse processo menos uma disposição inerente a este estado do que um limite a ele imposto pelas próprias sociedades concernidas. Quão africanas eram, portanto, as instituições e a prática coloniais?

O gado africano e articulação dos modos de produção

A história dos Kuvale, pelo menos em sua dimensão apreensível para o historiador, está diretamente vinculada ao processo de ocupação colonial. Portanto, antes de entrarmos na matéria anunciada é necessário fornecer um panorama do contexto social em relação ao qual a atuação dos Kuvale adquire significado. Pode-se afirmar, segundo Ruy Duarte de Carvalho (2002, 99-102), que a presença dos Kuvale na estreita faixa de terreno situada entre o oceano Atlântico e as escarpas da serra da Chela – que dão acesso ao planalto da Huíla –, entre as embocaduras do rios Bero e Curoca – paralelos 15.º e 17.º – era provavelmente tão recente quanto os primeiros ensaios de colonização empreendidos pelos portugueses em meados do século xix. 

Namibe, fotografia de Marta Lança Namibe, fotografia de Marta Lança

As primeiras expedições portuguesas ao sul de Angola remontam ao século xviii, porém, os primeiros povoamentos brancos que lograram se fixar na região só surgem a partir do século xix. A despeito dos esforços por parte de certa literatura colonial no sentido de apresentar a região como um novo eldorado, o cenário real era completamente distinto: os tipos de solo e as condições climáticas prevalecentes na maior parte do território eram pouco propícias à agricultura, abundavam vegetações de pouco valor nutricional ou comercial e poucas eram as fontes de água perenes. Assim, a cidade litorânea de Moçâmedes, fundada em 1840, deveria servir como entreposto para os comerciantes de marfim, porém, em razão das dificuldades de comunicação com o interior, tal atividade nunca prosperou. Em 1849, o governo português subsidiou a instalação, na cidade, de 300 portugueses fugidos da revolução praieira em Pernambuco, aos quais foram fornecidos terras, escravos e ferramentas, bem como buscou assegurar que sua produção pudesse ser vendida. Prosperaram, a partir da década de 1880, fundamentalmente a indústria da pesca, que respondia por 95% das exportações angolanas de peixe seco e salgado, a plantação de algodão e a extração de produtos tropicais sujeitos aos “booms” do mercado internacional, como a borracha de baixa qualidade, denominada almedina.

De certo ponto de vista, a cidade de Moçâmedes constituía, durante o período colonial, o centro político e o ponto de convergência das atividades econômicas relativas às povoações do interior, entre as quais se destacam as do planalto da Huíla e as das zonas alagadas do Cunene. A precariedade das redes de comunicação, contudo, durante boa parte do período em questão, inviabilizava ou tornava pouco rentáveis os empreendimentos agrícolas dos colonos do interior, de modo que a principal atividade econômica levada a cabo por estes europeus era o comércio com as populações africanas. Neste sentido, a ocupação territorial e as interações entre africanos e portugueses correspondem em parte ao padrão observado por Isabel Castro Henriques (2000, 72) para outras regiões de Angola: o estabelecimento de relações comerciais que precedem e servem de guia para a posterior ocupação militar. Infelizmente, não possuímos ainda dados suficientes para verificar a tese da autora, para quem as mercadorias transacionadas enquanto produtos culturais constituem em si mesmas agentes transformadores das formas de organização do espaço simbólico e das práticas comerciais das populações africanas. Porém, é possível afirmar que, dentre as mercadorias transacionadas, uma em particular assume papel de destaque como mediador das relações entre europeus e africanos na região: o gado. 

No que se refere à região das terras altas da Huíla, para a qual convergiram diversos fluxos migratórios – africâneres, madeirenses, trasmontanos – Carlos Alberto Medeiros afirma:

“as terras altas da Huíla opõem limitações de peso à agricultura, de tal modo que parecem muito melhor ajustadas às condições econômicas da região, tanto a economia indígena quanto como a colonização bôer […] ambas dedicando margem fundamental ao pastoreio extensivo.” (1976, 97)

De maneira geral, os portugueses que transacionavam com os africanos do interior obtinham a crédito mercadorias importadas por armazéns situados no litoral, oferecendo-as em troca de gado e cereais. Os interesses comerciais e as mercadorias trocadas variavam de acordo com a disponibilidade das importações, demandas dos mercados urbanos e internacionais e mudanças na legislação. Todavia, o interesse no gado se manteve constante por parte dos portugueses, uma vez que este servia como moeda-mercadoria, podendo ser novamente transacionado, empregado em atividades produtivas ou abatido para consumo. Além disso, como demonstram diversos estudos efetuados na região, a pecuária e, mais especificamente, a pastorícia africana, era uma atividade econômica bastante rentável, tendo em vista a exiguidade dos recursos naturais disponíveis (E. Carvalho 1974).

Já na década de 1890, a criação de gado pelos próprios colonos era significativa, estimando-se o total de animais por eles possuídos em cerca de oito mil cabeças (Clarence-Smith 1979, 26). Porém, ainda mais notável era o fato de que, pelo menos até ao final da Segunda Guerra Mundial, grande parte do gado adquirido e possuído pelos colonos provinha dos rebanhos africanos e mantinha-se neles integrados até à necessidade de utilização imediata pelo proprietário (Silva 2003, 9). Além disso, segundo Gervase Clarence-Smith, somente na década de 1920, após a conquista militar das populações das planícies alagadas, a criação de gado em larga escala para exportação foi preconizada pelos portugueses, de modo que, até então, a maior parte dos produtos derivados da pecuária provinha da produção africana. Ainda assim, em um estudo de campo sobre a situação do trabalho africano na região, produzido em 1958, Afonso Mendes estima, estarrecido, que cerca de 90% do gado encontra-se em posse das populações africanas, e que, quanto ao restante, “acontece a mesmíssima coisa. Os processos gentílicos foram inteiramente copiados, sem uma única inovação” (Mendes 1958, 29). Ainda que os números fornecidos por Mendes pareçam exagerados, outros estudos (Silva 2003) mostram que empreendimentos pecuários de vulto só começaram a se esboçar no sul de Angola por volta da década de 1950, fato que, aliás, é coerente com a estagnação econômica da região entre 1920 e 1961 (Clarence-Smith 1979, 97).

Este quadro fornece informações fundamentais para a compreensão da situação colonial no sul de Angola, entendendo-se por situação colonial uma totalidade que implica relações de poder e de dominação que se configuram ao longo do tempo de acordo com as tensões, negociações, conflitos e relações de força dos agentes envolvidos, e da qual são parte constitutiva as ações destes agentes, sejam eles africanos ou europeus. Busca-se evitar, nesta análise, um modelo teórico rígido, que defina a atuação histórica dos agentes de acordo com sua posição em relação a um processo unívoco, seja ele o capitalismo ou, como quer Isabel Castro Henriques, uma “perspectiva de modernidade” (Henriques 2000, 76). 

Chama a atenção, portanto, a concentração massiva de um recurso não negligenciável como o gado – o qual, a partir de 1913, passou a constituir o segundo produto mais importante para as exportações da região – em mãos das sociedades africanas. Esta circunstância não deve levar à conclusão de que as pressões sofridas por estas sociedades tenham sido mais brandas do que em outras regiões da colônia. Desde o início do século xx, a instituição do imposto obrigatório constrangia os africanos ao trabalho assalariado ou ao pagamento em gênero, sob a pena de trabalho forçado. Segundo Clarence-Smith, até a instituição do código de trabalho republicano de 1911, que abole a escravidão de fato e institui a obrigatoriedade moral do trabalho, as populações do Sul tinham logrado com sucesso evitar o trabalho nos empreendimentos coloniais, sendo a mão de obra da região composta por nativos de outras regiões da colônia. A partir de então, estes ex-escravos passam a constituir um setor de mão-de-obra especializada e habituada à cultura europeia, de modo que os capitalistas sentem novamente o imperativo de adquirir braços africanos a baixo custo, voltando-se para as sociedades do interior.

O código de trabalho republicano, que estabelece o trabalho obrigatório, é concomitante ao início da fase mais aguda das campanhas de pacificação colonial no sul de Angola. A partir da década de 1920, portanto, após enfrentarem a violência do exército colonial português, as sociedades pastoris e agro-pastoris passam a ser constrangidas pela instituição do imposto generalizado, pelo trabalho obrigatório e pelas demandas dos núcleos coloniais por commodities baratas. Diante deste contexto desolador, no qual a correlação de forças entre os interesses dos capitalistas da região e a resistência das sociedades africanas se afigura mais assimétrica, como entender a permanência de grande parte do sistema produtivo pastoril e agro-pastoril e a concentração do gado em mãos dos africanos? 

Segundo Clarence-Smith, após 1911, inaugura-se uma nova fase das relações entre os núcleos coloniais capitalistas e as sociedades africanas no sul de Angola. Até então, os interesses dos colonos se voltavam para o comércio e se pautavam pela demanda de commodities baratas, de modo que os sistemas produtivos africanos foram capazes de se adaptar às exigências – de acordo com o autor, passam a dedicar-se à produção nos períodos antes devotados ao descanso, entre as colheitas e ciclos de transumância do gado. Porém, quando a procura por mão-de-obra se alça ao primeiro plano, ocorre um recrudescimento no comércio e nas demandas de produtos importados por parte das sociedades africanas, fato que torna seus membros muito menos inclinados à venda da força de trabalho, tendo o Estado de intervir no recrutamento de maneira mais violenta. Nesta fase da situação colonial, de acordo com Clarence-Smith e Elisete Marques da Silva, recaindo os interesses capitalistas sobre a mão-de-obra barata, a manutenção dos sistemas produtivos nativos se justificava na medida em que estes se encarregariam dos custos da reprodução da mão de obra africana, ficando as lideranças nativas incumbidas do fornecimento dos contingentes necessários. Para Silva, o processo de penetração da economia capitalista na região sul de Angola foi “lento e gradual”, e apresentava “traços pertencentes a um padrão de articulação entre o modo de produção capitalista e modos de produção pré-capitalistas, comum a muitos países africanos, durante e depois da dominação colonial: uma aliança do capitalismo em expansão com uma camada política e ideologicamente dominante em sociedades pré-capitalistas por ele instrumentalizadas.” (2003, 33)

Clarence-Smith vai ainda mais longe, ao afirmar que a penetração do Estado colonial e dos interesses capitalistas teria logrado esmorecer as diferenças mais acentuadas entre as sociedades pastoris da região, as quais teriam passado a constituir, a partir da década de 1920, “a relatively uniform subject peasantry” (1979, 4). A perspectiva de análise acima apresentada, baseada na noção de articulação dos modos de produção, permite apreender a complexidade das relações econômicas estabelecidas em uma situação colonial, porém, ao assumir o avanço inelutável do capitalismo como único motor do processo histórico, oferece uma resposta muito funcionalista para a questão da permanência e pertinência das práticas econômicas africanas. De acordo com Frederick Cooper, “economic models claimed that certain relationships were persistent because they were functional to capitalism, but it wasn’t clear that capital was getting its way” (2005, 45). A objeção de Cooper é particularmente significativa no caso do sul de Angola, e nos permite tencionar o argumento da articulação dos modos de produção em pelo menos dois pontos: em primeiro lugar, se os interesses do capitalismo definiam os rumos da situação colonial no sul de Angola, por que, segundo afirma o próprio Clarence-Smith (1979, 97), a região experienciou um período de grande estagnação econômica entre 1920 e 1960? Ainda será possível que a situação colonial tenha sido definida, ao longo do período assinalado, pela subordinação inconteste das sociedades africanas? De acordo com a tese da articulação dos modos de produção, é justamente em razão da estagnação econômica que as interações entre os núcleos coloniais e as sociedades africanas se mantiveram relativamente inalteradas.

O paradoxo do Estado colonial e a pertinência dos interesses africanos

Até agora, procurou-se definir as transformações ocorridas nas relações entre as sociedades africanas e os colonos no sul de Angola. Porém, pouco foi dito a respeito do papel do estado colonial. De acordo com Clarence-Smith, os colonos portugueses da região eram profundamente dependentes do poder do estado. Em suas palavras,

“Access to state power was fundamental for the whole labour question, firstly in maintaining the system of slaver for nearly forty years after its official abolition, and then in extracting migrant labour from African peasant societies on terms as advantageous as possible. The state was also the guarantor of security in the interior for traders, and it provided one of the biggest markets for commerce and other service industries […] They [capitalistas do sul de Angola] exercised remarkable power within the colonial nucleus but remained in a situation of abject dependence on the colonial state.” (1979, 54)

O autor admite a relativa fragilidade dos empreendimentos capitalistas na região, viabilizados em virtude da presença e atuação sistemática do Estado colonial. Este estado, porém, é definido como um agente a serviço dos interesses capitalistas. Deste ponto de vista, os interesses dos ditos colonizados estariam completamente excluídos da esfera de preocupações estatais, sendo as sociedades africanas pertinentes somente na medida em que diminuíam os custos da reprodução da força de trabalho.

De acordo com Bruce Berman e John Londsdale, todavia, o estado colonial, como um estado capitalista, devia ser capaz de se distanciar – de maneira aparentemente paradoxal – dos imperativos imediatos do capital para poder criar as condições necessárias para a reprodução ordenada do próprio capital. Segundo os autores, este estado detinha a prerrogativa da gestão de uma série de tensões entre as facções de colonos, e entre estes e as sociedades nativas, de modo a evitar uma situação de exploração inaceitável que redundasse em uma revolta violenta. Assim, definem o estado colonial como um processo histórico complexo, que não se resume à noção de governo, erroneamente entendido como um ator soberano, instrumento complacente dos interesses econômicos ou mero reflexo da sociedade civil (Londsdale e Berman 1979, 487). O seu argumento baseia-se na ideia de que a abstração das contradições do plano econômico para o plano político – ou seja, a delegação às instituições do estado da função de controle sobre as relações de produção – se dá de maneira abrupta nos estados coloniais, de modo que esta forma de estado deveria promover uma articulação complexa entre os imperativos da produção capitalista e a necessidade de angariar legitimidade política diante das sociedades nativas.

Esta perspectiva permite reformular a noção de articulação de modos de produção, na medida em que inscreve os africanos como agentes históricos capazes de, em alguma medida, impor certos parâmetros de legitimidade para o estado colonial, ao mesmo tempo em que afirma que a própria viabilidade da situação colonial dependia desta legitimação. Desta forma, se torna possível estabelecer uma distinção sutil entre, por um lado, a conservação dos sistemas produtivos africanos como reflexo de um ardil econômico e calculado e, por outro, a compreensão do estado colonial como um conjunto de instituições instáveis e permeáveis à disputa, constituído historicamente por avanços, retrocessos e negociação dos interesses em conflito. Ainda, nos parece possível conjecturar que a ação do estado colonial nem sempre era eficaz ou correspondia aos objetivos previamente definidos.

Apesar de não ser o objeto principal deste texto, acredita-se que esta reflexão sobre a constituição histórica e problemática do estado colonial é fundamental para a compreensão do argumento em favor da pertinência da agência africana na configuração da situação colonial no sul de Angola. Ainda que o problema do vigor das sociedades pastoris não esteja assim resolvido, está-se agora em posição de se esperar respostas mais marcadas pelos interesses africanos para as questões previamente formuladas.

A Kokombola

Kokombola, na variação da língua otjiherero falada pelos Kuvale, significa “guerra total”, e é sob este epíteto que o evento a que os portugueses denominaram “guerra dos mucubais”, ficou inscrito na memória desta população pastoril. Infelizmente, não se dispunha de material suficiente para a interpretação do significado de guerra total para os Kuvale. Porém, é possível que os elementos históricos que se apresentam acessíveis lancem alguma luz sobre este eloquente conceito.

Como assinalado acima, os Kuvale eram, tal como os portugueses, recém-chegados à região sul de Angola em meados do século xix. Segundo Ruy Duarte de Carvalho, os Kuvale figuram na documentação escrita, desde os primeiros registros em que são referidos no século xix, como exímios salteadores, ladrões de gado inveterados, para quem tal atividade não somente não era condenada como era incentivada e glorificada. Eram constantemente mencionados o seu desprezo pela cultura europeia, por qualquer tipo de trabalho que não a pastorícia, bem como sua altivez e arrogância em relação às outras sociedades africanas com as quais se relacionam.

Em virtude das expedições militares iniciadas em 1890, grande parte das populações pastoris e agro-pastoris do sul de Angola foi profundamente abalada e, a partir de 1920, pelo menos do ponto de vista das autoridades coloniais, se encontrava pacificada e submissa. Os Kuvale, porém, de acordo com o que nos informam as fontes e os estudos sobre eles realizados, teriam logrado manter-se relativamente independentes das malhas administrativas até a kokombola (Pélissier 2006). Todavia, tal autonomia implicava também em constantes estorvos para os colonos e populações africanas da região, em razão dos roubos de gado sistematicamente praticados pelos Kuvale.

A 4 de setembro de 1940, alguns Kuvale foram acusados de provocar um incidente grave – ao que tudo indica, o assassinato de ajudantes africanos de um comerciante que os teria tentado ludibriar e assim roubar-lhes alguns bois. O então governador da Província da Huíla ordena “o emprego de forças militares estacionadas na província, para castigo dos insurretos e restabelecimento da ordem” (Sotto-Mayor 1943, 2) – castigo este que se abate não somente sobre os indivíduos acusados do crime, mas sobre o conjunto da sociedade Kuvale. Estas primeiras medidas, cujos “resultados não foram decisivos”, aparentemente, provocaram um “avolumamento” dos acontecimentos, de modo que o mesmo governador ordena uma batida geral à região do distrito de Moçâmedes, na qual se encontravam alguns Kuvale com suas manadas, com o objetivo de “trazer aquelas tribus ao controle e obediência das autoridades administrativas” (ibid.). Entra-se no mês de dezembro, o terceiro mês de operações militares, sem que, do ponto de vista das autoridades responsáveis, se tenha obtido êxito, uma vez que os Kuvale não só permaneciam insubmissos, como ainda “continuavam a praticar atos criminosos; muitos rebeldes encontravam-se em campo livre para exercer represálias sobre os indígenas pacíficos e recuperarem pelo roubo o gado apreendido (ibid.) (grifos meus). Este período inicial do conflito pode ser entendido como uma primeira fase, que decorreu sob os auspícios do governador da província, e contou com a participação de cerca de 400 homens pertencentes às companhias regulares – tanto portugueses quanto africanos –, além de mais ou menos “mil auxiliares indígenas” e uma centena de “auxiliares euro-africanos”.

A segunda fase das operações, iniciada a 17 de dezembro, ficou a cargo do Comandante Militar da Colônia, coronel Abel Abreu de Sotto-Mayor. Nesta data, o coronel afirma ter recebido uma comunicação da parte do Governador Geral, o qual, “reconhecendo a situação mais agravada que inicialmente”, determinava-lhe que 

”[…] fizesse terminar o mais rapida e energicamente que fosse possível, a situação estabelecida entre os indígenas mucubaes, podendo se necessário empregar mais forças, organizar diferentemente os Comandos diretos, modificar os planos de ação, enfim, tomar as providências necessárias à obtenção daquele objetivo.”(3)

A partir de então, constitui-se um novo destacamento militar vindo do Norte, composto por 488 soldados, e passam as autoridades coloniais a contar com o auxílio de dois aviões, que localizam os Kuvale, alvejando-os com metralhadoras e bombas. Encurralados e incapazes de fugir transportando toda a sua manada – estimada em 20 a 22 000 animais – os Kuvale capitulam em meados de fevereiro de 1941. A população Kuvale compreendia entre quatro e cinco mil indivíduos em 1940, dos quais 3529 são feitos prisioneiros, sendo desconhecido o número de mortos. Segundo o historiador René Pelissier, 600 prisioneiros foram enviados para as plantações de cacau em São Tomé, e o restante distribuído como trabalhadores forçados entre a DIAMANG, colônias penitenciárias, propriedades agrícolas da região ou empregados em serviços públicos. Quanto ao gado, cerca de 90% do rebanho – 19 701 cabeças – teria sido apreendido ao final da campanha (Pelissier 2006, 419).

Em outra oportunidade, seria interessante discutir em que medida se pode falar em genocídio neste caso, explorando o valor analítico do conceito. No estudo ora proposto, deve-se atentar para alguns detalhes aparentemente triviais do relatório redigido por Sotto-Mayor em 1943, no qual este descreve e justifica as operações militares. Antes, porém, cabe uma pergunta ainda mais trivial, ou seja, qual o sentido desta operação militar? Uma resposta possível seria aquela fornecida pelo próprio Sotto-Mayor, ou seja, o 

“termo de uma situação vexatória para os Portugueses, qual era a de, em pleno século xx, termos mantido ainda insubmissos e fora de nossa ação civilizadora, povos indigenas de uma raça altiva e inteligente e habitantes de uma vasta e importante zona da Colonia de Angola, mesmo as portas do Oceano.” (Sotto-Mayor 1943, 23)

Para René Pelissier, com a “sua [dos Kuvale] dissipação tem fim a conquista do terceiro império português” (2006, 419). Mas será isto tudo, ou seja, será que é suficiente explicar o massacre dos Kuvale como uma manifestação tardia das guerras de pacificação, cujo objetivo era submeter o último dos povos africanos livres de Angola? Segundo Clarence-Smith, a kokombola constituiu um caso isolado de violência extrema, que fugia à regra das relações ordinárias entre as sociedades africanas e o Estado colonial após as guerras de pacificação (1985, 321). De acordo com informações fornecidas por este autor, durante os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial – mais precisamente, até 1942 – Portugal e as colônias africanas enfrentaram uma situação de profunda crise econômica, em razão dos bloqueios navais impostos pelos aliados, da guerra de submarinos movida pela Alemanha e da reorientação geral dos portos dos países europeus, que passam a priorizar as naus militares (ibid., 309).

Face a esta crise, os capitalistas coloniais se tornam mais ávidos pela mão de obra barata africana. Simultaneamente a esta nova demanda por braços africanos, ocorre, em razão da circunstância calamitosa na Europa, um certo arrefecimento da vigilância humanitária internacional – antes bastante atenta em relação às condições dos africanos nas colônias portuguesas – fato que, em alguma medida, acentuava as possibilidades do emprego de métodos violentos de constrangimento por parte do estado colonial. Contudo, Clarence-Smith afirma que, nas regiões de fronteira – como o sul de Angola –, a situação era mais delicada, uma vez que as fugas dos africanos em direção a outras colônias poderiam prejudicar os empreendedores portugueses. Segundo Emanuel Kreike, existia um constante fluxo migratório entre os Kwanyama do sul de Angola e os do norte do sudoeste africano (atual Namíbia), o qual, salvo momentos excepcionais como a seca do final dos anos 20, tendia a se dirigir ao território sul-africano. Durante as décadas de 1940 e 1950, muitos jovens Kwanyama lograram driblar a fiscalização fronteiriça e, por meio da mobilização de redes de relações pessoais, se orientar para os empreendimentos que pagavam melhores salários, os quais se localizavam fundamentalmente no lado Sul-africano. 

Porém, argumenta, Kreike, os Kwanyama só recorriam ao trabalho assalariado quando não havia nenhum outro meio de obter gado. Assim, ao entrevistar Paulus Nadenga, um Kwanyama que se engajou no trabalho assalariado entre 1933 e 1950, o autor infere “Paulus Nadenga used parts of the goods he borught back to bater for livestock: ‘the most important thing for young men was to buy cattle, that is what their parentes told them’” (Kreike 2004, 220). Analisando o lugar central que o gado ocupa na sociedade Kwanyama, o antropólogo afirma que “a man could not get access to a farm without being married, and marriage was impossible without the accumulation of cattle” (ibid., 209). Os Kwanyama menos favorecidos poderiam obter gado, durante o período colonial, seja em Angola ou no sudoeste africano, através do trabalho assalariado ou por meio de instituições endógenas e redes de relações pessoais. Normalmente, estas redes estavam associadas a lideranças políticas que, por meio da concessão de gado, estabeleciam relações de dependência e autoridade com os beneficiados, ficando estes últimos obrigados a contrapartidas políticas, econômicas e sociais. Portanto, de acordo com Kreike, a disponibilidade de mão de obra Kwanyama era inversamente proporcional à quantidade de gado possuída, fato que revela a importância da pastorícia não só em termos de racionalidade econômica, mas também enquanto uma escolha culturalmente orientada.

Este breve panorama sobre a população Kwanyama contribui para a compreensão da complexidade de relações sociais que o massacre dos Kuvale insinua. Após detalhar as etapas das operações militares, Sotto-Mayor, em seu relatório, informa que “os gados apreendidos aos mucubais serão distribuído pelas tribos Quilenges, Cuanhamas, Caumato e Oavahimba” (1943, 19), as quais teriam colaborado com mais de metade dos efetivos das tropas durante as operações militares. À primeira vista, o suposto destino do gado Kuvale parece bastante implausível: como um tal contingente de gado foi simplesmente distribuído a sociedades pastoris e agro-pastoris africanas, em detrimento dos colonos? 

Segundo Pelissier, outras fontes – as quais ele, infelizmente, não cita – contestam a versão de Sotto-Mayor, afirmando que os animais teriam sido vendidos em hasta pública. Contudo, informações sobre a dinâmica econômica da região nos permitem duvidar da hipótese de Pelissier. De acordo com Clarence-Smith, as exportações de couro para Portugal, principal mercado para os produtos derivados da pecuária angolana, permaneceram estagnadas durante a Segunda Guerra Mundial, assim como a própria economia do sul de Angola, de maneira geral (1985, 309). Além disso, segundo Silva e Mendes, empreendimentos pecuários significativos possuídos por colonos só começaram a ser desenvolvidos a partir da década de 1950, estando o gado concentrado em mãos dos africanos (Mendes 1958 e Silva 2003). Sendo assim, parece pouco provável que o setor da economia pecuária controlado pelos colonos tenha absorvido o rebanho Kuvale. Estas especulações, evidentemente, não são suficientes para determinar o real destino do gado.

É possível abordar o problema a partir de outro prisma, ou seja, a partir da ação dos africanos. Independentemente de terem ou não recebido o gado apreendido, parece certo que os grupos mencionados por Sotto-Mayor colaboraram com as autoridades portuguesas durante o massacre dos Kuvale. Sabe-se que uma das formas de trabalho forçado a que os africanos eram submetidos em Angola consistia justamente no exercício de funções militares. Assim, ao discriminar os destacamentos militares que compuseram as operações entre 1940 e 1941, Sotto-Mayor menciona a “3.ª C.I.C (companhia indígena de caçadores), 3.ª C.I.E (companhia indígena de engenhos)” e as “5.ª e 9.ª C.I.C” as quais atuaram sob o comando do Major Esteves Pereira. Todavia, para além destas companhias de africanos constitutivas do exército colonial, contribuíram também “mais de mil auxiliares indígenas” (1943, 2). No relatório das operações, Sotto-Mayor menciona a participação destes auxiliares, porém, estes não figuram entres os efetivos de nenhum dos dois destacamentos comandados pelas autoridades portuguesas. Os movimentos das tropas e o desenvolvimento do conflito são registrados pelo coronel sem que os tais auxiliares – aliás, mais numerosos do que o exército colonial – sejam referidos. Quem eram estes africanos? Por quais motivos atuaram como aliados das autoridades coloniais?

Foi destacado, em um momento anterior do texto, o fato de que os Kuvale, durante a primeira fase das operações, teriam conseguido recuperar, por meio do “roubo”, gado apreendido que estava sob a posse de populações referidas como pacíficas por Sotto-Mayor. Este fato indica que, provavelmente, o gado apreendido aos Kuvale já estava sendo destinado a populações vizinhas durante o transcorrer das operações militares. É também significativo que estas ações de roubo promovidas pelos Kuvale tenham acontecido justamente na circunscrição de Quilenges, na qual se encontravam sociedades pastoris referidas por Sotto- Mayor como quilenge, as quais teriam sido contempladas pela distribuição do espólio final das operações. No relatório, o coronel justifica a razão da escolha de distribuir o gado entre as populações africanas. Em suas palavras, uma vez encerrado o conflito, “havia necessidade de dar destino conveniente aos gados apreendidos, a fim de garantir o bom aproveitamento desta riqueza pecuária”, atendendo também “às condições de possibilidade locais, conjugadas com as conveniências do Governo da Colônia sob o ponto de vista da política indígena”, de modo que, após algumas deliberações, decidiu-se pela solução de “distribuir esse gado aos indígenas fiéis das tribos limítrofes da zona mucubal, de preferência aos que como auxiliares cooperaram nas operações; solução moral e prestigiosa” (Sotto-Mayor 1943, 18-19). 

Sotto-Mayor não deixa de informar que existia a proposta de vender o gado Kuvale em hasta pública, proposta esta que, inclusive, seria mais interessante do ponto de vista econômico, dadas as despesas acumuladas ao longo do conflito. Entretanto, argumenta que fazê-lo “era repetir o erro praticado por ocasião de idênticas operações realizadas em épocas anteriores e que tão maus resultados deu” (ibid., 19). Uma vez decidido o destino do gado e registrados os africanos que colaboraram nas operações “foi determinada a sua concentração em locais convenientes, acompanhados dos respectivos Chefes gentílicos, a fim de ser feita a distribuição” (ibid., 20). Decorrem da apreciação deste documento duas conclusões: em primeiro lugar parece cabível inferir que os africanos implicados nas operações militares como auxiliares talvez vislumbrassem a possibilidade de se apoderar de partes da manada Kuvale, uma vez que ainda em 1940, os Quilenge tinham se apossado de gado apreendido; em segundo lugar, pode-se conjecturar que as autoridades portuguesas, ao distribuírem o gado entre os africanos da região, lançavam mão de uma estratégia de alianças políticas, na qual os interesses de acumulação de gado das populações pastoris e agro-pastoris eram reconhecidos e atendidos.

A pastorícia: entre o roubo e a razia

A conclusão anterior, apesar de insinuar a importância dos interesses das populações pastoris e agro-pastoris da região sul de Angola, ainda parece tomar as autoridades portuguesas e a política colonial como eixos centrais da situação colonial. Assim sendo, é importante que a análise se detenha agora sobre as sociedades pastoris e agro-pastoris como objeto privilegiado. Se, por um lado, a distribuição de gado por parte das autoridades parece um fenômeno atípico, a dinâmica de roubo de gado por meio de operações militares sancionadas pelas instituições endógenas é um traço marcante dos universos pastoris e agro-pastoris, não só no sul de Angola, como em toda a África. Diversos estudos sobre sociedades pastoris africanas apontam para a existência de categorias jurídicas que distinguem claramente entre o roubo – considerado como infração ou crime, cuja vítima pode mobilizar o sistema jurídico endógeno para obter reparação – e a razia, prática de apropriação de gado alheio sancionada pelas instituições pastoris.

Durante os regimes coloniais, a colisão entre os sistemas jurídicos europeu e africano fez com que a razia fosse sistematicamente condenada como prática primitiva, associada ao roubo, de tal forma que, segundo Dylan Hendrickson et al., o seu papel fundamental na produção e reprodução das sociedades pastoris foi ignorado (1996, 20). No caso da colonização britânica no Quênia, David Anderson argumenta que 

“from the earliest years of colonial government in Kenya, cattle raiding by Africans against their neighbors, and in particular livestock thefts from European farmers presented the administration with their most persistent policing problem in the rural areas of the colony.” (1986, 399) 

Apesar de constituir um estorvo para as autoridades coloniais, segundo Hendrickson, 

“Redistributive forms of raiding are livelihood enhancing in the sense that they enable herders to build up their stocks after a drought. In the short term, one household gains at the expense of another; in the long-term, a significant redistribution of assets cut between households across the pastoral system thanks to counter-raids and the functioning of the pastoral social security system. Redistributive raiding can thus contribute to systemic stability.” (1996, 23)

A razia consistia numa ação de apropriação de gado movida contra populações distantes, sendo esta distância entendida tanto no sentido físico, quanto no sentido identitário. Em virtude da escassez ou irregularidade da disponibilidade de recursos naturais a disposição das sociedades pastoris, a razia, enquanto ação redistributiva, desempenhava um papel fundamental na realocação do gado para setores mais vulneráveis a partir de grandes concentrações de animais. Isto não significa dizer que as sociedades pastoris, por meio da razia, logravam estabelecer um tipo de equilíbrio socioeconômico, mas sim que aquela era uma prática, dentre outras, que dinamizava o que o antropólogo Ruy Duarte de Carvalho denomina “integração da precariedade em todos os níveis” (1997, 61).

Não obstante esta importante função econômica, a razia era também um dos recursos a disposição dos elementos mais jovens das sociedades pastoris para a aquisição de gado próprio. Segundo Katharine Homewood, o gado capturado por meio da razia confere prestígio aos pastores, bem como lhes faculta acesso ao casamento (2008, 74) e, no caso dos Kuvale, à paternidade sociológica dos filhos (Carvalho 1999). Caso não obtenham gado por essa via, os pastores mais jovens permanecem por longo tempo dependentes dos mais velhos do grupo, à espera de herdarem animais quando da morte de algum parente. Além disso, a redistribuição de gado – como já foi assinalado no caso dos Kwanyama – permite a formação de relações de dependência política e forja laços de reciprocidade de importância capital em ambientes particularmente sujeitos a intempéries climáticas e bacteriológicas.

Namibe, fotografia de Marta Lança Namibe, fotografia de Marta Lança

Com o advento das situações coloniais, a razia passa ser sistematicamente condenada como prática socialmente desestabilizante e ameaça à ordem colonial. Entretanto, de acordo com Hendrickson, medidas adotadas pelo Estado colonial no sentido da restrição da mobilidade pastoril e controle legal e administrativo destas populações, associadas a situações de estagnação econômica, à emergência de mercados transfronteiriços e deflagração de conflitos armados, impulsionam a prática da razia predatória. Segundo o autor, a desarticulação das formas endógenas de controle da razia e do equilíbrio do sistema pastoril, promovida pelo estado colonial, enfraqueceu as formas nativas de resolução de conflito (1996, 23). Assim, Kreike demonstra como, em finais do século xix e início do século xx, com a expansão do comércio de armas e cavalos, membros da aristocracia Kwanyama lograram constituir um tipo de elite militar, os omalenga. Neste período, os omalenga arrogavam-se prerrogativas de taxação e razia de gado, institucionalizando uma espécie de taxa antes cobrada irregularmente pelos reis, o que resulta num aumento exponencial da violência, na medida em que as novas práticas são resistidas pelos criadores de gado. De acordo com Kreike, entre 1904 e 1915, as razias movidas pelos Kwanyama afetaram profundamente as comunidades africanas localizadas em um raio de 150 milhas a partir de seu território. Tais razias provocaram guerras constantes, bem como a desarticulação de determinadas estruturas, como os San, e grandes deslocamentos populacionais (Kreike 2004, 53-55).

Muitos estudos sobre sociedades pastoris africanas têm buscado compreender justamente o impacto da situação colonial na transformação da razia de uma forma de integração da precariedade em epicentro de violências endêmicas. Segundo Hendrickson, a razia redistributiva implica em conflito, porém, pondera que 

“Many conflicts in pastoral systems can in fact be seen as crucial to defining relations between different groups. The ‘multiple resource system’ common to dryland areas are characterized by the utilization of resources for multiple purposes or by more than one user. […] Conflict thus serves as a means of communication between different groups, the ultimate objective of which may be to set the context for a renegotiation of access to resources and re-assert group identities […] these patterns of conflict and co-operation are integral to the functioning of the nomadic pastoral lifestyle in the face if severe ecological pressures.” (1998, 190)

Por outro lado, segundo o autor, a dinâmica da razia é regulada como uma espécie de economia moral, a qual consiste em um conjunto de relações interpessoais alicerçadas na reciprocidade, a partir da qual circuitos de transferência de bens alimentares e serviços são mobilizados fundamentalmente em tempos de crise, permitindo a manutenção de equilíbrios de diversas ordens (ibid., 194). A razia predatória, entretanto, é um fenômeno distinto, o qual normalmente implica em apropriação de gado em larga escala por meio do emprego de violência extrema, envolvendo agentes e interesses externos aos sistemas pastoris. Segundo Homewood, a transformação da razia redistributiva em razia predatória ameaça as sociedades pastoris, pois normalmente envolve a atuação de agentes ou tecnologia capazes de produzir profunda assimetria entre as sociedades em interação. Assim, em suas palavras, “where there was formely at least theoretical possibility of balanced and reciprocal raiding between groups, total victory or at least heavy casualties have become new possibilities” (Homewood 2008, 75).

No que concerne à situação colonial do sul de Angola, apesar da imagem do roubo de gado estar diretamente associada aos Kuvale, muitas análises e documentos dão a ver uma dinâmica complexa de razias e contra- razias, desde, pelo menos, finais do século xix. Já em 1880, o ex-governador de Moçâmedes informava que, ao ser nomeado, “recomendou-se-me em especial a questão do roubo de gados que infestava o distrito, a despeito de todas as providências adotadas para lhe pôr termo, por se não attacar o mal nas suas causas” (Almeida 1880, 48). Assim, os africanos não eram os únicos a integrar esta dinâmica visto que “Tem se fallado muito no espírito de pilhagem e rapina do preto e realmente o districto de Mossamedes foi theatro de bem ousados golpes de mão, no roubo gado; a causa porém, triste é dizê-lo, era a represália de quem se via roubado, perseguido e desattendido” (ibid., 50). 

A intervenção das autoridades administrativas pode ser percebida em toda a sua ambiguidade em documentos que retratam os esforços de controlar a situação do roubo de gado em consonância com as demandas das populações africanas. Assim, em ofício de 1875, então chefe interino da Huíla, Antonio Joaquim Fontora, diz o seguinte a respeito de um dos mais afamados ladrões de gado do período, Quiloia Mahuta, cujas queixas se dignou a escutar “tinha muita vontade de fazer as pazes porque não tinha praticado todos os crimes que lhe imputavam e que apenas tinha tirado algumas vinganças de pessoas que o tinham roubado e maltratado a ele e a seu tio” (ibid.)

Em outro ofício, de 1877, Fontoura, após encontro com os principais africanos acusados de roubo de gado no distrito, afirma ter ficado “mais convicto da ideia que já tinha, de que o gentio deste ponto é paciente e sofredor, e só depois de magna opressão é que se revolta contra os seus espoliadores” (ibid., 51).

Quanto às queixas de um dos chefes africanos ouvidos, elenca as seguintes:

“Terem-lhe alguns brancos deste concelho roubado por vezes todo o seu gado, chegando de uma vez a roubar-lhe número superior a oitenta cabeças; segundo – terem-lhe assassinado algumas pessoas a ele pertencentes; terceiro – terem-lhe roubado o gado dos seus parentes, e principalmente o de seu tio, o soba Pombaculo; quarto, – terem dado com um chicote na cara, amarrado e envenenado o mesmo soba.” (ibid.)

Por fim, Fontoura expõe algumas das facetas econômicas e políticas da região:

“Alguns habitantes deste concelho só viviam das presas de gente e gado, e portanto do roubo, e quando para aqui vinha algum chefe, que não consentia tais abusos, era logo guerreado e falsamente acusado, e via-se na necessidade de pedir exoneração, etc… Oficiais houve que vindo para chefes deste concelho, pediram a sua exoneração um ou dois meses depois de serem nomeados.” (ibid.)

Estes são apenas alguns exemplos dos fartos registros documentais nos quais se verifica que, em grande medida, já em finais do século xix, vigorava no sul de Angola uma situação de instabilidade política, econômica e social diretamente associada à dinâmica do roubo de gado, a qual envolvia autoridades administrativas, colonos e populações pastoris.

 Posteriormente, em 1946, Serra Frazão, ex-administrador de circunscrição no sul de Angola, ao escrever sobre sua experiência colonial na década de 1910, afirma que os Kuvale e os Quilenge se aliavam contra os Kwanyama e espoliavam o gado destes últimos. Porém, os Quilenge se aliavam aos Kwanyamas e a autoridades portuguesas para espoliar o gado Kuvale (Frazão 1946, 267). Estes últimos, entretanto, “não perdiam de vista as suas vacas; e, logo que pudessem, assaltavam essas manadas, levando o gado que pudessem. Segundo o seu direito e os seus usos, eles procediam dentro da justiça. Não vinham roubar; vinham buscar, vinham recuperar o que consideravam muito seu” (ibid., 269-270). 

 De acordo com Kreike e Clarence-Smith, o comércio de armas de fogo, dinamizado na fronteira sul de Angola a partir de finais do século xix, provocou a concentração de poder em mãos de certas elites africanas e, consequentemente, a reconfiguração das relações entre as sociedades pastoris e agro-pastoris. Os Kuvale, chegados à região em meados do século xix, passam a integrar este espaço social marcado pelas dinâmicas de razia, no qual se engajam também, ao que tudo indica, alguns colonos brancos e autoridades. Após as incursões militares portuguesas, a derrota imposta a populações como os Kwanyama e outros grupos pastoris da região parece ter logrado estabelecer uma situação de aparente estabilidade, do ponto de vista colonial, o qual possibilitou, inclusive, a distinção de Sotto-Mayor entre grupos pacíficos – como os Quilenge – e insubmissos, os Kuvale. Contudo, a situação de estagnação econômica experienciada por Portugal a partir de 1939, associada à instabilidade política e social da fronteira com o sudoeste africano, parecem ter configurado na região sul de Angola uma situação de tensão latente. Nestas circunstâncias, é plausível imaginar que um incidente como aquele provocado pelos Kuvale tenha dado ensejo a uma operação militar de vulto, a qual, amparada na retórica civilizacional portuguesa, constituiu uma oportunidade para a obtenção, por parte das autoridades coloniais, de um recurso fundamental na elaboração de alianças políticas com sociedades pastoris e agro-pastoris: uma imensa manada de bois e vacas.

Esta hipótese se torna ainda mais plausível se levarmos em conta o fato de que a kokombola não foi uma guerra, mas sim um massacre. Esta inferência é corroborada pelo próprio Sotto-Mayor, o qual, ao descrever o comportamento dos Kuvale durante a campanha militar, escreve o seguinte: “não são negros guerreiros […] quando se tem efetuado ações repressivas das autoridades, não atacam […] pouco resistem.” (1943, 1), de modo que “as operações contra os mucubais insubmissos […] não eram propriamente uma guerra”, mas sim uma “repressão a salteadores, dispersos em núcleos de pequeno efetivo, dotados de grande mobilidade, procurando servir-se mais dessa mobilidade […] do que propriamente das armas: fugiram a qualquer combate. Era uma ‘caça’” (ibid., 14). 

Conclusão

No estágio atual da pesquisa, não se pode afirmar em que momento a decisão de realizar uma “ação de limpeza” (Sotto-Mayor 1943, 15) foi tomada, nem saber se os objetivos da operação militar se transformaram em virtude das próprias circunstâncias do conflito. Parece possível conjecturar, todavia, que se está diante de uma sensível transformação das dinâmicas africanas de razia e, por consequência, das estratégias pastoris e agro-pastoris para a obtenção de gado, a qual pode ser caracterizada pela articulação entre a supressão e condenação da razia praticada pelos Kuvale – considerada insígnia de insubmissão – e instituição da aliança política entre as autoridades administrativas e outras populações da região. Nesta nova dinâmica, a intervenção das autoridades coloniais parece sancionar a apropriação de gado alheio por parte das populações pastoris e agro-pastoris, obtendo as primeiras, em contrapartida, colaboração no controle da região fronteiriça e, em certa medida, no fornecimento de mão-de-obra para os empreendimentos dos colonos. Esta transformação, não se processa, como se pode notar, à revelia dos interesses africanos, uma vez que as autoridades coloniais, ao selarem alianças políticas por meio da concessão de bois, reconhecem e mobilizam um idioma de poder caracteristicamente pastoril, no qual a troca de bois estabelece laços de subordinação e/ou de reciprocidade. 

Por outro lado, deve-se assinalar que o grau de violência empregado no massacre dos Kuvale insinua a existência de uma situação colonial marcada pela ameaça latente do extermínio. Cabe investigar, assim, em que medida o terror imposto aos Kuvale não serviu como uma espécie de símbolo do potencial de violência à disposição das autoridades coloniais para lidar com a insubordinação. Neste caso, se está diante de uma situação extrema de razia predatória, na qual as vítimas não apenas são expropriadas de todos os seus bois, como submetidas ao horror da primeira operação militar colonial a empregar aviões. É significativo que, segundo Pelissier, um

“exercício teria consistido em pôr os homens [Kuvale] em fila indiana e estudar os efeitos comparados das espingardas Kropatschek e Mauser. A arma cuja bala abatesse mais cativos era declarada como sendo aquela que tinha maior potência de penetração.” (Pélissier 2006, 418) 

Assim, a expressividade dos sistemas produtivos pastoris, que tanto espantou Afonso Mendes na década de 1950, parece estar relacionada à necessidade, por parte das autoridades portuguesas, de forjar alianças com sociedades pastoris e agro-pastoris da região sul de Angola. Isto não implica, certamente, numa situação idílica, uma vez que o trabalho obrigatório e a violência do regime colonial não cessaram ao longo do período. Ademais, estas alianças são constituídas, pelo menos em 1941, a partir do massacre de toda uma população. Porém, evidencia-se que qualquer investigação que se devote à situação colonial do sul de Angola deve levar em consideração a implicação das formas sociais pastoris nos processos históricos de negociação política, bem como na própria configuração da dinâmica econômica da região. 

Bibliografia

Almeida, José Bento Ferreira de. 1880. Mossâmedes. Lisboa.

Anderson, David. 1986. “Stock theft and moral economy in colonial Kenya”. Africa 56 (4): 399-416.

Balandier. 2011. “A situação colonial: uma abordagem teórica”. In Manuela Ribeiro Sanches, (Org.). Malhas que os impérios tecem: textos anticoloniais, contextos pós-coloniais. Lisboa: Edições 70, pp. 219-251.

Carvalho, Ruy Duarte de. 1997. Aviso à navegação: olhar sucinto e preliminar sobre os pastores Kuvale da província do Namibe. Luanda: INALD.

———. 1999. Vou lá visitar pastores: percurso angolano em território Kuvale. Lisboa: Cotovia.

———. 2002. Os Kuvale na história, nas guerras e nas crises. Artigos e comunicações (1994– 2001). Luanda: Editorial Nzila.

Carvalho, Eduardo Cruz de. 1974. “’Traditional’ and ‘Modern’ Patterns of Cattle Raising in Southwestern Angola: A Critical Evaluation of Change from Pastoralism to Ranching”. The Journal of Developing Areas 8, n. 2 (Jan): 199-226.

Clarence-Smith, Gervase. 1985. “The Impact of the Spanish Civil War and the Second World War on Portuguese and Spanish Africa”. The Journal of African History, 26 (4): 309-326.

———. 1979. Slaves, peasants and capitalists in southern Angola, 1840-1926. Cambridge: Cambridge University Press.

Cooper, Frederick. 2005. Colonialism in questiontheory, knowledge, history. Berkeley: U. California Press. 

Estermann, Carlos. 1961. Etnografia do Sul e Sudoeste de Angola. Lisboa: Junta de Investigações. Vol. 3 - Grupo étnico Herero.

Frazão, Serra. 1946. Associações secretas entre os indígenas de Angola, Lisboa: Editora Marítimo Colonial.

Fuhui, Katsuyoshi; Turton, David. 1979. Warfare among East African Herders. Osaka: National Museum of Ethnology.

Hendrickson, Dylan, Jeremy Armon, Robin Mearns. 1998. “The changing nature of conflict and famine vulnerability: the case of livestock raiding in Turkana District, Kenya”. Disasters 22 (3): 38-68.

 ———. 1996. “Livestock raiding among the pastoral Turkana of Kenya: Redistribution, predation and the links to famine”. IDS Bulletin 27 (3): 17- 30.

Henriques, Isabel Castro. 2000. “Comércio e organização do espaço em Angola (c. 1870- 1950)”. In A África e a instalação do sistema colonial (c.1885-c.1930): III Reunião Internacional de História de África. Direção de Maria Emilia Madeira Santos. Lisboa: Instituto de Investigação Científica e Tropical, pp. 71-90.

Homewood, Katherine. 2008. Ecology of African Pastoralist Societies. James Currey Oxford and Ohio U.P.

Kreike, Emmanuel. 2004. Re-creating Eden: land use, environment, and society in southern Angola and northern Namibia. Portsmouth: Heinemann.

Londsdale, John e Berman, Bruce. 1979. “Coping with the contradictions: The Development of Colonial State in Kenya, 1895-1914”. The Journal of African History 20 (4): 487-505.

Mamdani, Mahmood. 1996. Citizen and subject: Contemporary Africa and the legacy of late colonialism. Princeton University Press.

Medeiros, Carlos Alberto. 1976. A Colonização das Terras Altas da Huíla (Angola)Estudo de Geografia Humana. Lisboa: Centro de Estudos Geográficos.

Mendes, Afonso. 1958. A Huíla e Moçâmedes: considerações sobre o trabalho indígena. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar.

Pélissier, René. 2006. As Campanhas coloniais de Portugal: 1844-1941. Lisboa: Estampa.

Scott, James C. 1998. Seeing like a state: How certain schemes to improve the human condition have failed. Yale University Press.

Sequeira, Frederico Bagorro. 1935. “O Povo Mucubal”. In Boletim da Agência Gera das Colônias. Lisboa: AGC/AGU. v. 132, pp. 191- 193.

Silva, Elisete Marques da. 2003. Impactos da ocupação colonial nas sociedades rurais do sul de Angola. Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL).

Sotto-Mayor, Abel. 1943. Operações militares de polícia para repressão das tribos mucubais insubmissas na colónia de Angola em 1940-41. Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa.

Tilley, Helen. 2011. Africa as a Living Laboratory: Empire, Development, and the Problem of Scientific Knowledge, 1870-1950. Chicago: University of Chicago Press.

Torres, Adelino. 1991. O Império Português entre o Real e o Imaginário. Lisboa: Escher.

 

____________________

Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho  Marta Lança (org), Lisboa: BUALA - Associação Cultural I Centro de Estudos Comparatistas (FL-UL), 2019 ISBN: 978-989-20-8194-6  

 baixar o livro. 

por Rafael Coca de Campos
Ruy Duarte de Carvalho | 8 Julho 2019 | kuvale, pastorícia, sudoeste angolano