Desmedida - pré-publicação Ruy Duarte de Carvalho

fotografias de Daniela Moreau

 

…estamos é juntos, no vaivém das balsas…

 

cendrars

 

(escrito em São Paulo antes de partir em viagem pelo São Francisco superior)

1 – jantar

complicando logo, que é para depois não causar estranheza: que o real se faz mesmo é de repetições, variações e simetrias, acasos, encontros e convergências que o que estão mesmo a pedir é decifrar-lhes continuidades e contiguidades, isso, estou em crer, não tem quem não saiba. Resultaria pedante e redibitório ousar impor como epígrafe a autoridade de uma qualquer citação capaz de dizer o mesmo. Posta a coisa porém desta maneira, ao que conduz, sem remédio, é a uma formulação banal como esta está a ser…

…a estória então, ou a viagem que tenho para contar, começaria assim:

…tem um lugar, dizia eu, tem um ponto no mapa do Brasil, tem um vértice que é onde os estados de Goiás, de Minas Gerais e da Bahia se encontram, e o Distrito Federal é mesmo ao lado. Aí, sim, gostaria de ir… é lá que se passa muita da ação do Grande sertão: Veredas… e depois descer para o alto São Francisco, que é o resto das desmedidas paisagens de Guimarães Rosa… e ao baixo São Francisco, podendo, ia também… porque encosta aos Sertões euclidianos… sou estrangeiro aqui e nada me impede de incorrer no anacronismo de querer ir ver, de perto, Guimarães Rosa e Euclides da Cunha…

veredas - minas geraisveredas - minas gerais

Era isto que eu dizia a duas senhoras paulistanas, sentado à mesa delas numa soberba fazenda de café do interior paulista… Dizia sim, e assim, mas quase tudo, já, a pensar noutra coisa… porque daquela exata maneira quase sempre referida para descrever situações semelhantes, talvez porque não há outra, é que fui agarrado por certa ideia e envolvido numa bolha de temporalidade e de velocidade de pensamento dessas que não têm nada a ver com as durações comuns. Durante os escassos segundos em que dizia esse pouco que disse, eu não estava vendo já nem as senhoras que tinha à minha frente e nem a sala muito extensa e iluminada, de pé-direito altíssimo e de um arranjo que restaurava uma construção por certo muito antiga até, mas muito ao gosto da arquitetura e da decoração restauratórias de agora. Pensava noutra sala de jantar, tão extensa e por certo tão antiga como esta, porém numa fazenda então praticamente abandonada pela proprietária, ausente durante mais de duas décadas, na França. Ela estaria sentada agora ali também na companhia de duas filhas suas, nascidas já em Paris, e de alguém verdadeiramente ilustre, Cendrars, Blaise Cendrars, o escritor, o poeta amputado pela Primeira Guerra Mundial e aventureiro, brilhante e de cigarro, sempre, no canto esquerdo da boca, talvez mesmo até enquanto agora ali jantava… e à volta havia mulheres a servi-los, negras e mulatas, algumas nascidas ainda no tempo da escravatura. Porque tudo isso se passava nos anos 20 do século passado, depois de uma viagem transatlântica que tinham feito juntos, com início em Bolonha e apontada ao porto cafeeiro de Santos.

onde a cobra trocou de peleonde a cobra trocou de pele

De Cendrars sabia eu alguma coisa porque fui lendo dele, ao longo da vida, o que veio ao meu encontro. Moravagine, continuo a achar, é uma leitura fundamental seja para quem for e até aos dias de hoje, e a sua Antologia negra atingiu-me muito antes de eu próprio me ter metido em aventuras semelhantes. E de fazendas de café também tive a minha experiência. Dos 19 aos 25 anos foi nisso que trabalhei por quase todas as regiões cafeeiras de Angola. E tendo querido as circunstâncias que antes de chegar agora ao Brasil — para acabar por ver-me, naquela noite, sentado ali à mesa de duas senhoras, uma mãe e uma filha, na casa -grande de uma próspera fazenda de café em pleno século xxi —, tendo querido as circunstâncias que eu tivesse, também, passado antes por Paris, o que meti então no bolso para ler durante a viagem de avião até São Paulo tinha sido, precisamente, um livrinho de Blaise Cendrars com várias estórias passadas num interior paulista que só podia ser aquele.

rio s.francisco - minas geraisrio s.francisco - minas gerais

Cendrars, no tempo dele, tinha vindo ao Brasil numa altura em que brilhava já há mais de dez anos como figura das mais marcantes na vanguarda literária e artística de Paris, depois de ter publicado Les Pâques à New York e Prose du Transiberien et de la petite Jehanne de France, de quem Rilke viria a dizer tratar-se da genial poesia de um cantor de ruas. Esses poemas deram a volta à poesia escrita em francês e mudaram até o rumo do que fazia o próprio Apollinaire, consta. Revelavam um arrojo na desmedida de que não haveria notícia desde Rabelais, dizem os especialistas. Mais recentemente tinha Cendrars publicado Panamá ou l’aventure de mes sept oncles e a tal Anthologie nègre, êxitos seguros do público e da crítica.

travessias - minas geraistravessias - minas gerais

Foi então que, na Livraria Americana do Quai des Grands-Augustins, Cendrars deu encontro com o intelectual brasileiro Paulo Prado, figura proeminente da sociedade paulista, membro no ativo de uma das famílias mais poderosas do Brasil, bem-sucedido produtor e exportador de café, mecenas sempre pronto a socorrer artistas que reconhecia capazes, como Heitor Villa-Lobos, por exemplo. Paulo Prado tinha mesmo participado, financiando até, naquele movimento que durante três noites de fevereiro de 1922 promoveu a famosa e importante Semana de Arte Moderna de São Paulo.

Ora encontravam-se também em Paris, na altura do encontro de Cendrars com Paulo Prado, muitos dos protagonistas desse movimento: Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Sérgio Milliet, Di Cavalcanti. Data mesmo daí a apresentação de Tarsila a Fernand Léger, encontro que viria a ter uma grande importância na obra da pintora brasileira.Barra do Rio Grande - BahiaBarra do Rio Grande - Bahia

Cendrars e Léger andavam então implicados numa aventura que envolvia também, tudo em Paris, Darius Milhaud, Jean Cocteau e os balés suecos. O compositor Darius Milhaud tinha servido como adido cultural na Legação Francesa do Rio de Janeiro em 1917 e 1918, durante o consulado de Paul Claudel — que aliás, naturalmente, também privou com Paulo Prado —, e foi aí que conheceu não só o músico Heitor Villa -Lobos como também um certo Zé Boiadeiro, autor de sambas, chorinhos, tanguinhos e maxixes, entre os quais uma peça chamada Boi no telhado. Voltou à França com materiais e ideias que lhe permitiram agitar o meio parisiense com o seu Boeuf sur le toit. Depois disso é que procurou Cendrars, quando também apareceu a Anthologie nègre, para montar com ele, e com Léger, La création du monde, balé de tema negro levado à cena em outubro de 1923. Terá sido mesmo Darius Milhaud, dizem, a contribuir para que Cendrars aceitasse sem qualquer hesitação o convite que Paulo Prado lhe fez, a instâncias de Oswald de Andrade, parece, para vir ver como era o Brasil.

Cendrars permaneceu então aqui durante alguns meses, no ano de 1924. Fez conferências em São Paulo e andou com Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral pelas cidades do ouro de Minas Gerais durante a Semana Santa. Haveria de voltar pelo menos mais duas vezes ao Brasil, em 26 e em 27-28, para passar, sempre que podia, os carnavais no Rio.

Comprando fumo de rolo em Cordisburgo Comprando fumo de rolo em Cordisburgo

Apaixonou-se por este país a ponto de proclamar, sempre que podia, que esta era a sua Utopiolândia, a sua segunda pátria espiritual — já que a primeira não poderia, evidentemente, deixar de ser Paris. Nos seus poemas, ficções, ensaios, memórias, reportagens, daí para a frente não deixou nunca de celebrar e de glorificar, e durante mais de cinquenta anos, a sua terra de eleição. E tanto a sua vida como a sua obra acabaram por mudar de rumo, depois de ter aqui estado. Chegou como aspirante a cineasta derrotado e deprimido, voltou meses depois à França para escrever, em poucas semanas, L’or, um romance, gênero que nunca tinha praticado e lhe garantiu de imediato um novo e retumbante sucesso. E como resistir a mencionar que foi a partir das suas estadias no Brasil, e a pedido de Paulo Prado, que Cendrars veio a assinar uma tradução que para alguns é uma versão para melhor de A selva de Ferreira de Castro (ao que parece traduzida de fato por um certo Jean Coudures e apenas revista, mas magistralmente, por ele), e que nesse livro é que viria a apoiar-se, também consta, para escrever o seu futuro En Transatlantique dans la Forêt Vierge?

travessias - minas geraistravessias - minas gerais

“No Brasil foi grande a sua influência sobre os rapazes que em 22 desencadearam o movimento modernista”, viria a dizer mais tarde Manuel Bandeira. Ele vinha a calhar, referem outros, para tornar-se o avalista estrangeiro do arranque modernista. O movimento Pau-brasil, de Tarsila e de Oswald, terá mesmo nascido e achado o seu tom na companhia de Cendrars, e as suas imagens e obra convinham em absoluto a essa campanha brasileira contra o pieguismo romântico e a “crueza de açougue” do realismo, acrescentam ainda alguns. Tratava-se de cantar, a par de uma brasilidade ainda muito em busca de si mesma, o fluxo da vida moderna, a importância do tempo material, o motor, o asfalto, o cinema, a eletricidade, a iluminação, as engrenagens fabris e a velocidade…

Barra do Rio Grande - BahiaBarra do Rio Grande - Bahia

***

Estou a escrever, agora, alguns meses depois de Cendrars me ter vindo à cabeça enquanto jantava com aquelas senhoras numa fazenda do interior paulista. É evidente que andei entretanto a informar-me sobre Cendrars no Brasil. Naquele momento talvez soubesse só, ou sobretudo me ocorresse apenas de imediato — porque alguma coisa vem dita na introdução do D’oultremer à indigo que trazia na algibeira —, que Cendrars, no Brasil, tinha estado em fazendas de café e que era aí que situava uma boa parte daquilo que o Brasil o levaria a escrever depois.

o recife visto de olindao recife visto de olinda

Esteve algumas vezes em propriedades de café da família Prado, nomeadamente nas fazendas São Martinho e Santa Veridiana, e foi aí que utilizou a seu bel-prazer o Marmon, viatura de luxo, que entra na tal estória das senhoras, e um pequeno Ford que Paulo Prado colocava à sua inteira disposição (Cendrars era um apaixonado por viaturas automóveis e num período mais ou menos próspero da sua vida chegou mesmo a ter um Alfa Romeo de desporto com a cabine desenhada por Georges Braque). Mas esteve também, e nunca deixou de referir isso como uma das glórias da sua vida, numa outra fazenda de café à medida exata do seu desvario imaginativo. Aí teria dormido, em 1886, o imperador d.Pedro ii, e imperava nela agora, ou veio a imperar na ficção de Blaise Cendrars, um mais que mítico fazendeiro astrônomo, obstinada e definitivamente apaixonado por uma distante, quiçá jamais divisada, Sarah Bernhardt, a divina.

serra das ararasserra das araras

Cendrars situa essa estória, a das senhoras vindas com ele de Paris, numa fazenda então ensombrada por passados obscuros, e roída por desgostos fundos, a desdobrar-se por dezenas de milhares de hectares de cafeeiros sem seiva, sufocados pelo capim, arbustos, ervas daninhas e trepadeiras, e queimados pela geada dos nevoeiros que a madrugada congelava, vindos de um lago ao lado, olho de sáurio, na estória de Cendrars, injetado e feroz, onde tudo quanto caía, até as nuvens do céu e a paisagem invertida — e o próprio coração do narrador, doente de amores sem esperança por uma das senhoras mais novas, dona Maria —, era para aí apodrecer e servir de festim a jacarés…

sertãosertão

Não era o caso desta fazenda onde eu agora me achava e me deixava alhear assim, possuído pelas minhas divagações, fulminantes, rápidas, ao ritmo desse tempo alterado que é o do desenrolar de certas percepções, e de que aliás me iria em breve ver recuperado pela conversa efetiva. Esta fazenda, onde eu agora estava, produz muito, e um muito valorizado café, servido como privilégio nos melhores restaurantes de São Paulo… Esta será antes uma fazenda como a do morro Azul, onde Cendrars situou o seu fazendeiro sideral, milhões e milhões de pequenos arbustos uniformemente verdes, do mesmo tamanho e idade, alinhados a perder de vista, cada planta tratada, cuidada, abrigada, numerada… Para que procurar dizer o mesmo de outra maneira se dito assim, como Cendrars falou há mais de oitenta anos, soa tão bem?…

…tem um lugar, dizia eu então, tem um ponto no mapa do Brasil, tem um vértice que é onde os estados de Goiás, de Minas Gerais e da Bahia se juntam, e o Distrito Federal é mesmo ao lado, aí sim, gostaria de ir… é lá que se passa muita da ação do Grande sertão: Veredas… e depois descer daí para o alto São Francisco, que é o resto das paisagens de Guimarães Rosa… e ao baixo São Francisco, podendo, eu ia também… porque encosta aos Sertões euclidianos… sou estrangeiro aqui, nada me impede de incorrer no anacronismo de querer ir ver, de perto, Guimarães Rosa e Euclides…

— E ao médio São Francisco, não? Richard Burton também andou por lá… — pergunta-me uma das senhoras, a mãe, e suspende-se a olhar-me nos olhos.
— Richard Burton?… Sir Richard Burton, I presume — respondo eu suspendendo, pela minha parte, o manuseio dos talheres —, o próprio sir Richard Burton, sim, o da descoberta das nascentes do Nilo, o da viagem clandestina a Meca, tradutor das Mil e uma noites e dos Lusíadas, of course… andou pela Índia, por Goa, Costa do Malabar, pela Pérsia, Egito, Harrar, Crimeia, Zanzibar, África central, Fernando Pó, Camarões, Congo, Daomé, pradaria norte-americana, Salt Lake City, Paraguai, Síria, Trieste… aventureiro e homem de letras, soldado, espião e diplomata… que escreveu dúzias de crônicas de viagem e dezenas de livros, que foi etnólogo, conferencista e tradutor, fluente em 29 línguas. E que praticava, para além disso, hipnotismo e poesia, entre outras coisas…

Forte Orange Ilha de Itamaraca - PernambucoForte Orange Ilha de Itamaraca - Pernambuco

A senhora suspende a suspensão e olha para a filha… Não confundi com o ator… Passei na primeira prova…: — Pois também esse desceu o rio das Velhas, de Sabará a Pirapora, e o São Francisco daí até à foz… E tudo quanto escreveu, dessa viagem, é sempre a dizer mal até que na Barra do Rio Grande, já muito adiantado no estado da Bahia, entre a antiga cachoeira do Bom Jardim e Xique-Xique, encontrou um parente nosso que lhe mostrou a sua coleção de pedras…
— Mãe, conta para ele também como foi daí, da Barra do Rio Grande, e da família, que saiu mais tarde, para o recôncavo baiano, uma menina que veio a casar depois com aquele juiz de direito que acolheu o Antônio Conselheiro em Juazeiro — interrompeu nessa altura a senhora mais nova que era filha, ali…

ruy, represa das três mariasruy, represa das três marias

Desmedida luanda — são paulo — são francisco e volta, de Ruy Duarte de Carvalho - a sair em breve pela Língua Geral, Brasil (e Cotovia, portugal, 2006 ) 

por Ruy Duarte de Carvalho
Ruy Duarte de Carvalho | 14 Agosto 2010 | literatura angolana, Ruy Duarte de Carvalho