Visões de mundo, ações do corpo que dança - parte 2

(…) É importante inserir estes casos na sua realidade atual e dizer que apesar de algumas iniciativas esporádicas e dos discursos oficiais, a interculturalidade em Portugal tende ainda a existir mais no plano dos discursos. A par dessa realidade, a falta de estudos sobre fenómenos interculturais e as poucas estratégias efetivas do Estado comprometem que Portugal assuma uma posição mais consistente no âmbito dos encontros entre as “Áfricas” e as “Europas”. Coexistindo com o discurso sobre interculturalidade, o país vive, ainda hoje, um contexto de reafirmação do racismo e xenofobia, pelo que fomentar uma reflexão crítica sobre estes temas pode contribuir para o reconhecimento de direitos e de histórias conjuntas e na construção de um presente mais saudável. Portugal, pela proximidade geográfica e como país europeu que manteve até mais tarde uma ligação (ainda que de ocupação colonialista) com o continente africano, está numa posição crucial no estabelecimento de pontes entre estes universos.

Através do acompanhamento desses profissionais, somos levados a acreditar que, apesar da interculturalidade não estar intencionalmente nas suas ações, notamos que existe, na prática, uma convivência no mesmo espaço que leva a que as comunidades africana e portuguesa estejam realizando trocas efetivas. Encontramos assim marcas subtis de um processo de mudanças recíprocas, como por exemplo, as transformações nos corpos e nos entendimentos de mundo, referidas pelos sujeitos desta pesquisa, as adaptações metodológicas desenvolvidas pelos professores e um senso de pertença social que foi citado pela maioria dos entrevistados. Nesse sentido, ainda que à primeira vista não pareça haver uma postura muito questionadora por parte dos professores ou dos grupos, isso não quer dizer que não aconteçam trocas e dinâmicas transformadoras das visões de ambos os lados. Entender os dados analisados sob este ponto de vista nos permite extrair significados da relação intercultural para além dos caminhos óbvios, conectando-os com a visão da interculturalidade como um constante devir. Conseguimos assim antever de que forma as trocas interculturais, vistas como um processo de transformações recíprocas, podem contribuir para amenizar complexidades coloniais e pós-coloniais. Os estereótipos, ligados a imagens e auto-imagens recíprocas entre portugueses e africanos, as dinâmicas de poder consequentes da relação colonizador/colonizado, e a dificuldade da sociedade portuguesa em aceitar a sua ambivalência (Santos, 2006), ainda perduram no Portugal de hoje, porém tais tensões tendem a ser atenuadas com estas e outras interações culturais.

Nessa sequência, faz sentido também o interesse inicial desta pesquisa pelas representações de “África” e das danças africanas materializadas nessas práticas de dança, já que tais representações evidenciam um tipo de relação intercultural e nos permitem aceder à maneira como este conhecimento funciona quando desenvolvido num outro contexto. Em traços gerais, através da maioria do material analisado, somos levados a observar uma permanência de estereótipos, presentes tanto nas práticas artísticas quanto nas práticas pedagógicas. Essa estereotipagem parece partir de um fascínio por qualidades supostamente “africanas” que as camadas jovens portuguesas almejam desenvolver, ligadas a um ideal de vida em comunhão com a natureza, consigo mesmo, com a sociedade, com um hedonismo, uma “ordem natural para as coisas”. Algumas dessas caraterísticas, bem como as adaptações pedagógicas e artísticas das danças africanas anteriormente mencionadas, podem ser vistas como “estratégias de sobrevivência” desse conhecimento em solo lusitano, uma vez que tornam mais fácil a sua divulgação e mercantilização. Tal fato chama atenção para a maneira como este conhecimento está sendo reproduzido pelos seus agentes (professores, coreógrafos, alunos, músicos, “leigos simpatizantes”, etc.), tornando urgente um posicionamento social sobre assuntos tão complexos como a realidade colonial, pós-colonial, as migrações e os desafios de lidar atualmente com a diversidade. Mesmo assim, ainda que, muitas vezes, a “África” e as danças africanas apareçam caricaturadas, nos questionamos se o fato de acontecerem essas trocas não é suficientemente positivo, pois, pelo menos, dá a conhecer outros entendimentos de mundo e incita os indivíduos a terem que entrar em relação.

Festival ImigrarteFestival Imigrarte

Nesse âmbito, tanto o trabalho de Petchu como o de Eva Azevedo expressam diferentes aspectos ligados à interculturalidade. Nas aulas e nos espetáculos, Petchu trabalha frequentemente com símbolos e modelos muito recorrentes nas danças tradicionais africanas, que, podem, por um lado, também servir para reafirmar uma visão exótica e caricaturada destas culturas. Por outro lado, Eva Azevedo e o grupo Semente tentam propor algo diferente a partir da simbiose entre as suas diversas influências culturais. Apesar de estes últimos estarem buscando um caminho de tradução cultural e hibridismo, as suas propostas carecem, ainda, de maior aprofundamento no sentido de evitar lugares-comuns, como os que encaram as trocas culturais do ponto de vista da amálgama e da harmonia. Caracterizando a dinâmica intercultural como uma relação de mútua transformação, não do ponto de vista meramente harmónico, mas como uma experiência que tem muito mais de tradução, flexibilidade, conflito e negociação, conclui-se que as propostas dos professores e dos grupos artísticos analisados se aproximam mais de uma lógica de transposição e sobreposição de elementos culturais, o que conduz a uma visão da relação intercultural sob a perspectiva da justaposição, colagem ou “fusão”. Essa lógica, identificada igualmente no discurso dos entrevistados, parece vir relacionada à ambivalência que está na base das relações entre estes povos, neste caso, a uma tendência de inversão de papéis entre portugueses e africanos. Apesar do reconhecimento dessa  questão, é importante salvaguardar que, obviamente, nesses processos, um não se torna o outro ou vice-versa, mas sim as informações “estrangeiras” são agregadas e entram em fluxo com as referências que o sujeito já possui.

Por outro lado, a opção de pesquisar sobre as transformações em termos de corpo (auto-imagem e experiência corporal na relação com o meio) e em termos de concepção de mundo foi corroborada pelos sujeitos da pesquisa, sugerindo, assim, marcas de trocas interculturais. Partindo destes casos, a mais valia destas danças em relação a outras parece ser, então, uma componente holística que propicia aos seus praticantes uma integração mente-corpo-emoção. Essa dimensão acentua-se no contexto pedagógico, sendo relacionada com o que os professores e alunos chamam de “terapia” e “libertação”. Mesmo estando perante duas abordagens diferentes de danças africanas o caráter terapêutico surge nos dois exemplos, com diferentes nuances, parecendo vir atrelado a  uma experiência de conexão indivíduo-coletivo, proporcionando assim uma integração que extrapola as quatro paredes da sala de dança . Em simultâneo, as transformações que se dão no corpo e nos entendimentos de mundo, decorrentes de sujeitos portugueses estarem a praticar danças africanas em Portugal, afirmam a possibilidade de se ver, pensar e construir outras formas de existência, não só interculturais, mas também artístico-pedagógicas.

Nesse tópico, o presente estudo salienta a importância dos dançarinos, coreógrafos e professores destas danças exercerem uma prática reflexiva, isto é, desenvolverem um olhar crítico em relação aos conteúdos com que trabalham. A figura do “artista-pesquisador” (Irwin, 2008), através da sua ação investigativa e questionadora, vem assim  contrariar a reprodução de padrões ultrapassados.

A nível social, apesar de haver já alguns festivais ou encontros independentes que funcionam como um espaço de partilha e incentivo intercultural, ainda assim pode ser feito muito mais, inclusive com poucos recursos. A ação deve ser levada a cabo pelas pequenas organizações, grupos ou associações que estimulem o trabalho em rede, através de espaços que busquem e fomentem o envolvimento e participação dos indivíduos (aulas, eventos temáticos, debates, bate-papos, espetáculos etc.), de forma a criar pontes entre experiências, reciclar relações e construir autonomia no processo de conhecimento.

Dentro da mesma questão, esta pesquisa aponta a necessidade de ações de apoio aos mediadores culturais. É certo que os artistas e professores estudados, agindo em campo e trabalhando diariamente com portugueses, luso-africanos e africanos, estão funcionando como agentes culturais, isto é, como profissionais que estão mediando uma determinada visão de África, ou das várias Áfricas. Contudo, apesar de atuarem em território português e num contexto cultural extremamente importante, nem um nem outro exemplo são apoiados nas suas ações pedagógicas ou artísticas. Pensando na realidade nacional, e já que as danças africanas estão efetivamente promovendo uma aproximação entre culturas, seria interessante que as instâncias que trabalham no âmbito intercultural percebessem o potencial destes mediadores, sejam eles formadores, coreógrafos e/ou grupos independentes.

 

Algumas conclusões do estudo

 

Por tudo o que foi referido, encarando a interculturalidade no sentido de uma “ecologia dos saberes” (Santos, 2006) e confirmando outras ideias que estão por detrás deste estudo, é interessante valorizar estes espaços de negociação e trocas recíprocas. Os dados levantados apontam para a necessidade de se dar mais atenção ao alcance desta temática e, em específico, à importância que as artes performativas, e, no caso, a dança, pode ter nestes processos. A possibilidade de interagirmos com outras culturas e de navegarmos em territórios híbridos amplia a nossa experiência de mundo, de corpo e de emoções, porque nos permite ver a realidade de múltiplas e diferentes perspectivas. A experiência corporal pode, assim, contribuir para um alargamento de possibilidades, para a dinâmica de nos colocarmos no lugar do outro e de reconhecermos o nosso próprio lugar. Isso evidencia o quanto as identidades multifacetadas (Hall, 2006) estão em constante processo de negociação com as questões do contexto e do espaço onde estão inseridas. Ao mesmo tempo, observamos que a dança, assim como outras artes performativas, tem uma dimensão comunitária, um papel muito importante e imediatamente ativo na interculturalidade, já que a existência de executantes e de espectadores ao vivo pressupõe um contato próximo, pressupõe que uma presença física, em tempo real. Assim, é um argumento central a este trabalho a importância das artes e, em específico, da dança, na criação de um espaço de diálogo, alteridade e diversidade cultural.

A recontextualização das danças africanas em Portugal tende assim a promover novas experiências de corpo e de movimento, novas mundividências, que, por sua vez, podem ajudar a sarar “feridas” colonais , sem que tal signifique apagar o passado. Por esse prisma, trabalhar a interculturalidade por via da dança permite ampliar o leque de estados corporais, movimentos, e pensamentos, promovendo a convivência entre diferentes visões de mundo. O que vem afirmando a dança como uma práxis de transformação social, com um papel emancipatório e iminentemente valioso no atual cenário pós-colonial.

A problemática inicial deste trabalho, relacionada ao papel da dança nos encontros interculturais extrapola então o caso português, ganhando, assim, desdobramentos em outros contextos de confluência de culturas. Numa época de trocas e mudanças intensas como aquela em que vivemos, não interessam tanto respostas ou “receitas prontas”: torna-se sim urgente olhar com outros olhos, olhar-se “de fora”, e ousar sair dos territórios conhecidos, se aventurar por novas trilhas, novas mesclas, novos mergulhos.

 

Ler primeira parte do artigo: Danças africanas em Portugal: contextos artísticos e pedagógicos

 

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por Teresa Fabião
Palcos | 14 Janeiro 2016 | Danças africanas, interculturalidade