As águas turbulentas do Mediterrâneo, entrevista a Giovanni Maria Bellu

Giovanni Maria Bellu é jornalista e autor do livro que originou o argumento da série I Fantasmi di Portopalo, uma minissérie da RAI (emissora pública de rádio e televisão italiana) que ficcionava a partir de factos reais um naufrágio no Mediterrâneo ainda no século passado. Esta série, transmitida em Itália em Fevereiro de 2017, chegou aos ecrãs portugueses em Agosto de 2020 numa emissão da RTP2, na tradução literal “Os Fantasmas de Portopalo”. A série reporta-se a um naufrágio ocorrido na noite de Natal de 1996. Estava em avançado estado de negociação o Acordo de Schengen e este naufrágio era a prova da permeabilidade das fronteiras marítimas mediterrânicas. Por essa razão, foi silenciado. A série retrata não só esse processo de silenciamento, mas também o incómodo com este acontecimento que acabou por gerar conflito na comunidade junto da qual apareceram os primeiros corpos naufragados. 

Esta ficção dramaticamente realista por ser baseada em factos reais e na persistência de um jornalista procurar a verdade no passado, quando no presente da sua reportagem se começava a notar uma massificação do número de naufrágios no Mediterrâneo, traz à luz factos para reflexão. Giovanni Maria Bellu, personagem na série, cidadão consciente da situação na vida real, empreende uma viagem ao passado que clarifica a permanência de uma situação de risco para os imigrantes ilegais que chegam por via mediterrânica. 

A descoberta desta série acabou por lançar um novo olhar sobre o nosso trabalho de investigação sobre a governação do Mar Mediterrâneo, em que focamos o caso de Itália e das vagas de imigração ilegal através deste mar. Confirmou-se que os produtos artísticos são excelentes veículos para a interpretação da realidade e que a fruição estética ajuda-nos a reinterpretar factos reais. Acresce, ainda, que a arte nos permite conceber mecanismos de alteridade, encarnar o outro, através do imaginário, sem abandonar o “nós”, algo essencial para compreender a existência de diversas perspetivas sobre a realidade. Neste caso, o espetador, através das perguntas e dificuldades enfrentadas pelo jornalista, confronta discursos e apercebe-se da narrativa das várias personagens: do jovem náufrago, do pescador que enfrenta a ira dos outros pescadores, de uma comunidade que não entende a relevância do reconhecimento daquele desastre humanitário. 

Mas a entrevista que se segue com o jornalista que inspirou esta série, concede um significado acrescido à ficção escrita a partir do seu relato. Giovanni Maria Bellu viaja pela situação atual, incluindo as democracias e a sua relação com as correntes migratórias, interrogando a posição oficial da União Europeia e dos estados europeus no contexto da governação do Mar Mediterrâneo e da presença de migrantes ilegais nos países europeus. Ainda neste contexto, apresenta-nos a Associação Carta de Roma (Associazione Carta di Roma), fundada em 2011 e que funciona como um observatório de como a imprensa cobre as temáticas ligadas à imigração, minorias étnicas ou refugiados, permitindo a análise do modo como estes temas são reportados à opinião pública. 

As migrações ensinaram-nos que a democracia devia ser absolutamente defendida

- A primeira pergunta é sobre aqueles valores que o Giovanni disse ter visto desmoronar quando descobriu que, de todos os testemunhos do naufrágio de Portopalo, só um decidiu falar. Este único testemunho falou somente depois que passaram cinco anos do acontecimento. O Giovanni viu pisar estes valores tanto por parte da sociedade civil e daqueles que estavam mais envolvidos e que denunciando o naufrágio teriam tido uma perda económica, como por parte das autoridades. Pensa que nestes 20 anos decorridos desde o naufrágio do Portopalo (1996), se avançou na sensibilidade e na promoção destes valores?

Não, francamente acho que não, ou melhor, se houve algum progresso, foi talvez só no último período. E se isso aconteceu, não se deve à existência de uma política diferente, a um amadurecimento educativo, a uma promoção cultural ou a uma atividade nas escolas. É tributário simplesmente do facto de o fenómeno da migração ter atingido tal preocupação e emergência que se tornou obrigatório retomar e reafirmar alguns valores de solidariedade, com vista a criar uma certa coesão social. Foi o mesmo agora com a pandemia. Há 20 anos fiz uma descoberta, foi uma descoberta estranha, um pouco como a carta roubada de Edgar Allan Poe, a que estava debaixo do seu nariz. 

Nós - e com “nós” quero dizer a minha geração, tenho 57 anos e pertenço à geração dos boomers - fazemos parte da geração mais sortuda, ou pelo menos uma das gerações mais sortudas da história da humanidade: sempre vivemos não apenas num muito longo período de paz, mas também crescemos num período de expansão económica e de mil oportunidades. Vimos a chegada à lua quando éramos crianças e vimos na escola os últimos colegas que tiveram poliomielite. Foi na escola que nos colocaram a todos um rebuçado na boca eliminaram também aquela doença terrível que atormentava os nossos pais. Crescemos com a ideia de que o progresso iria ser infinito e que aquilo que havíamos encontrado como herança das gerações anteriores, ou seja, a democracia e a paz, era algo adquirido para sempre. De facto, também fomos formados numa certa retórica destes valores, numa espécie de catecismo da democracia, sem, no entanto, nos ser transferido um conceito básico, ou seja, que a democracia não é adquirida para sempre, mas deve ser absolutamente defendida. E chegamos ao ponto de ver que a estávamos a perder. 

Na minha opinião, os imigrantes foram a demonstração, um forte indício de quanto esses valores não são realmente adquiridos. E então descobrimos que nós, que crescemos a acreditar que não éramos absolutamente racistas, não éramos racistas simplesmente porque não tínhamos nenhuma outra “raça” entre nós.

Observando os diversos relatórios elaborados pela “Associazione Carta di Roma”, e em particular olhando para os de 2019, no que diz respeito aos serviços jornalísticos relativos à migração, verificou-se que os relativos à gestão do fluxo de migrantes aumentaram, enquanto os pertencentes à hospitalidade/integração diminuíram. Portanto, seguindo o seu discurso, os migrantes estão mais no foco das atenções porque é uma necessidade geri-los e porque é uma emergência que preocupa, e não tanto porque nos interessa o acolhimento ou a integração, certo?

Não há dúvida disso. Pelo contrário, digamos que o fato de lidar com esse aspeto já é um pequeno passo, se compararmos com o que acontecia no passado, quando se falava de migrantes quase exclusivamente quando ocorriam catastróficos naufrágios ou quando havia notícias nas quais eles estavam envolvidos. 

Proponho refletir sobre uma palavra que entrou no debate jornalístico e também é comum há anos: falamos de emergência de imigração, mas sabemos o que significa emergência? Normalmente, uma emergência é um evento que ocorre repentinamente e que não é esperado. Podemos então definir uma emergência como uma série de eventos que acontecem regularmente há 30 anos, podemos chamar emergência um fenómeno que é o movimento das massas humanas que é a mesma história da humanidade? A linguagem utilizada também caracteriza o problema, ou seja, que um acontecimento que ocorre há 3 décadas ainda é enfrentado de maneira emergencial. 

Então acha que, em geral, este problema de acolhimento de migrantes é antes de tudo um problema cultural? 

Não, acho que esse aspeto já é um ponto de chegada ou pelo menos um passo em frente. Raciocinar sobre este ponto significa que pelo menos chegámos à conclusão de que é necessário organizar o acolhimento, mesmo que isso seja feito de forma emergencial e não como se fosse um problema perene. Creio que o problema básico, sublinhado numa série de pesquisas feita pela “Associazione Carta di Roma” que se foca na atitude dos jornais (mas que também o podemos ver fora do mundo da informação) é que na Itália fala-se da migração principalmente em conexão com fases políticas ou, de qualquer maneira, no debate político. 

De acordo com as análises feitas nos títulos dos jornais ou nas principais redes privadas de meios de comunicação social, ao longo de vários anos, a questão da migração foi de facto tratada principalmente em coincidência com as fases eleitorais. Que isso esteja a assumir um carácter cada vez pior, com um paulatino aproveitamento pelas forças políticas das áreas populistas ou soberanas, também é compreensível, pois enquadra-se na tendência cultural que sempre vê a busca de um bode expiatório para culpar. O que acho surpreendente e amargo, no entanto, é que as forças progressistas sejam incapazes de se opor adequadamente a essa lógica conhecida, ou porque subestimam o problema ou, em parte, porque sempre nos ressentimos daquela ideia geracional de que aqueles valores foram adquiridos para sempre (conceito que felizmente também está a ser discutido pois vimos empiricamente e recentemente na América ou na Itália que esses ideais democráticos já não são tão fortes). Embora este alarme tenha sido reconhecido, a minha opinião é que nenhuma reação adequada foi encontrada, ou que em qualquer caso não foi encontrada uma linguagem que seja igualmente eficaz. 

Este tipo de linguagem, igualmente eficaz para a defesa de um certo tipo de valores, só se adquire de duas formas: ou quando os valores estão a ser destruídos, quando se tem que defendê-los e se está desesperado, e aí encontram-se as palavras mais eficazes; ou através de capacitação que deveria ser feita na escola, que deve basear-se sobretudo na memória do que vivemos, nas memórias das nossas avós, as dos nossos pais, as memórias do que passaram ou do que passaram os outros. A formação, a história, deve basear-se na memória da muito difícil conquista da democracia, na tomada de consciência que a afirmação dos direitos humanos como direitos universais, os mesmos que durante milénios foram património de correntes filosóficas ou religiosas, só há muito pouco tempo, ou seja, imediatamente a seguir à Segunda Guerra Mundial, se tornaram uma norma jurídica internacional. Aconteceu muito recentemente.

O Giovanni já foi à escola para começar uma formação deste tipo?

Sim, ultimamente um bocado menos, mas íamos com bastante frequência. Durante vários anos, especialmente depois do lançamento do livro (I Fantasmi di Portopalo), fiz algumas atividades com o Centro Astalli, o centro jesuíta de refugiados que organiza sistematicamente reuniões nas escolas para discutir a migração. Habitualmente, a sessão era um jornalista e um refugiado que iam juntos contar as suas histórias.

Portopalo como um acidente de trabalho

Sempre falando destes valores, ficamos muito intrigadas pelo facto de ter tido em contacto com um destes transportadores destas redes ilegais. Queria perguntar se me pode dizer o que mais o impressionou no diálogo com esse criminoso que fomentou esse tráfico.

O seu nome é Turab. Ele próprio era um imigrante em Malta, um paquistanês, que descobriu um sistema muito simples e eficaz naqueles anos para ganhar dinheiro. Ele era um empresário, abordava o seu trabalho com a lógica do negócio, como uma evolução e uma simplificação do contrabando. De facto, se você contrabandear cigarros ou contrabandear homens, os homens têm uma vantagem: ao contrário dos cigarros, em algum momento eles andam com os pés.

Então quando conversou com ele, ele parecia muito distanciado do lado humano da questão?

Ele também percebia o lado humano e do ponto de vista dele, também, tinha uma lógica: ele disse que só estava a prestar um serviço: «Vá a Roma perto da Piazza Vittorio, vá às lojas de lá e veja que a maioria das pessoas que estão lá e moram lá fui eu que as trouxe. Pergunte pelo senhor Tony (eles chamam-me senhor Tony) e pergunte se não se lembram de mim com gratidão.». Eles fizeram um contrato, pagaram uma quantia que do ponto de vista do senhor Tony era razoável, e que do ponto de vista de quem pagou, poderia ser pago; tiveram um serviço e também bom, porque graças a ele finalmente chegaram à Itália. Ele calculou, agora não me lembro o número exato, mas acho que eram cerca de 20 mil as pessoas que ele trouxe para a Itália. Tantas. E, portanto, ele viu em Portopalo um acidente de trabalho que pode arruinar uma carreira honrada. Ele falou nesses termos e, de seu ponto de vista, não estava nada errado. 


O problema, fundamentalmente, das políticas, é que os negócios, mesmo no campo do crime, nascem com base nas leis da economia, ou melhor, na lei da oferta e da procura. Se há uma pergunta que não encontra resposta de outra forma, ou seja, não garante que as pessoas que têm direito possam chegar legalmente a um local, é natural que esse setor económico seja ocupado por quem permite isso de forma ilegal.

Também poderia ser argumentado que as redes ilegais continuam a se desenvolver porque não há uma resposta adequada das políticas à pressão migratória?

Isso parece-me um facto objetivo. Acontece para a imigração, mas é exatamente a mesma dinâmica para o tráfico ilegal de drogas, ou seria a mesma dinâmica se a proibição fosse introduzida para bebidas alcoólicas: um próspero mercado ilegal surgiria.

Quais seriam as vantagens que adviriam de uma maior integração e naturalização dos migrantes?

Posso falar-lhes sobre isso como leitor. Dou por garantida a vantagem que se teria e que sempre se terá no intercâmbio cultural. Isso consistiria um enriquecimento, possibilitando mais conhecimento em comparação com os demais. Essa é uma perspetiva, um ponto de vista cultural e eu tenho esse ponto de vista, mas isso pode não ser compartilhado com todos. O aspeto económico, no entanto, é difícil não ser compartilhado na presença do facto de que somos um país cada vez mais velho. Se imaginássemos a existência de um sindicato de imigrantes capaz de proclamar uma greve, essa greve bloquearia a Itália toda. Se considerarmos apenas o facto de que a assistência à família para deficientes ou idosos é em grande parte coberta por estrangeiros, por exemplo, só isso seria suficiente. 

Se quisermos ver o lado oposto, pegamos os dados do INPS (Instituto Nacional de Previdência Social) e vemos o que os imigrantes dão a esta entidade. Obviamente, como são jovens, é muito menos do que recebem do que o que dão, mas também sabemos que se um imigrante já trabalhou muitos anos na Itália e não atingiu os anos de reforma, essas contribuições iriam ser perdidas completamente. Também temos outros motivos para ver uma vantagem: temos o exemplo de Riace, e temos vários lugares onde uma tal experiência de integração poder-se-ia repetir com benefícios para todos, até do ponto de vista habitacional. Riace, uma pequena cidade situada na região Calábria, no final dos anos 1990 era uma aldeia quase despovoada destinada a um continuo esvaziamento. Em 1998 cerca de 200 migrantes chegaram à costa de Riace Marina: graças à integração e à participação deles na vida da cidade, essa começou a renascer. Riace tornou-se então um modelo de acolhimento que confirmou empiricamente que os migrantes podem constituir uma enorme vantagem. Eu conheço a Sardenha, mas não só ali há muitas aldeias que se despovoam, que se reduzem e que correm o risco de desaparecer, que têm escolas que fecham porque já não há crianças. Um repovoamento pode ser feito com critérios de forma a criar um equilíbrio. É claro que devemos investir em pessoas que fazem essa programação: sociólogos, economistas, assistentes sociais. Mas isto pode ser feito.

Portopalo, Schengen e a deriva europeia

Na sua opinião, quais eram as lacunas das políticas internacionais ao nível da gestão do Mediterrâneo na altura dos eventos de Portopalo, e quais as lacunas nesta matéria neste momento?

Eu posso falar sobre a condição da Itália. Mais do que uma lacuna, naquela época, ao tempo do caso Portopalo. Tudo aconteceu nas vésperas do início do Acordo de Schengen. A entrada da Itália já havia sido adiada para setembro por uma série de problemas que estavam ligados, creio eu, à organização dum sistema informático, e por isso estava em dificuldade em entrar plenamente no sistema Schengen. A história de Portopalo, o naufrágio do Natal de 1996, caiu justamente nessa fase. Em janeiro de 1997 foi publicado um artigo no Economist que, a respeito de Schengen, dizia que a Itália poderia criar um problema, ao nível da circulação, porque as suas fronteiras eram cheias de buracos e permeáveis. 

Giovanni Maria BelluGiovanni Maria Bellu

Entretanto, a interpretação que se deu a respeito ao naufrágio mais tarde foi que a constatação da verdade dos factos, ou seja, daquele naufrágio, teria sido uma avaliação fácil: o naufrágio ocorreu na noite de 25 de dezembro de 1996 e poucos dias depois mais de 100 sobreviventes desembarcaram na costa do Peloponeso e foram lá deixados. Esses migrantes foram presos pela polícia grega, foram interrogados, e todas essas 100 pessoas contaram de forma unanime o que acontecera. Ou seja, que durante o transbordo do navio que era o mesmo em que permaneceram e que fugiu da cena do crime, levando-os para o Peloponeso e descarregando-os lá, cerca de 300 pessoas desceram para embarcar num barco menor, que viria a afundaria. Havia, portanto, um bom número de testemunhas, e a notícia saiu nos jornais gregos. Não era segredo de estado. Nesse preciso momento os pescadores de Portopalo começaram a pescar os cadáveres e a escondê-los.

A Itália manteve-se inerte quanto a este caso: teria sido suficiente mandar alguma entidade de investigação policial à Grécia para averiguar facilmente o que havia acontecido. Porque não foi feito? 

Tenho uma hipótese mais à luz do conhecimento do evento do que da dinâmica política da época, mas devo dizer que essa minha hipótese foi sustentada por aqueles que, em vez disso, tinham uma visão da dinâmica política da época. De facto, se tivesse surgido a notícia daquele naufrágio catastrófico, o maior da época, o maior desastre naval ocorrido depois da Segunda Guerra Mundial, isso teria sido uma confirmação sangrenta de que as fronteiras italianas eram permeáveis. Ou seja, teria significado confirmar que as fronteiras eram realmente tomadas de assalto. Era a conjuntura naquela época. 

O estado atual vê muitas coisas mudadas. Contudo, não penso que tenha mudado uma dinâmica fundamental, que então começou a surgir, nomeadamente a incapacidade de gerir a imigração. Na época de Portopalo estávamos despreparados, não estávamos realmente numa fase inicial porque de qualquer forma já acontecia há vários anos, mas provavelmente com aquela frequência nunca tinha acontecido e esta nova modalidade poderia ser uma novidade. Agora, nem sequer estamos preparados para dizer que num estado de necessidade, como nesse caso, com a entrada no sistema Schengen, se poderia em certa medida derrogar o respeito pelos valores fundamentais: não mandar socorro, esconder cadáveres, não verificar a verdade sobre tal evento. O que aconteceu quando a Europa fez o acordo com a Turquia? Parece-me exatamente a mesma dinâmica. Aliás, parece-me que o acordo é a demonstração de que esse problema existe. Nós, enquanto Europa, ao concordar com a Turquia, asseguramo-nos de que aquilo que, se fosse o feito por europeus não teria o apoio de uma parte relevante da opinião pública, seja feito por outros. Não somos capazes de administrar essas coisas com coragem, o que também leva a um conflito dentro dos países porque certamente não é fácil, especialmente num período de crise, enfrentar politicamente essa questão da reincidência. Mas nem temos coragem de enfrentá-lo no sentido contrário, aquele apoiado por populistas e soberanistas e que, felizmente, eles próprios, quando estão no governo, nem sequer têm coragem de matar pessoas, porque percebem que isso é inaceitável. A Turquia permite-nos alcançar o mesmo resultado sem ver os cadáveres, para o dizer de forma muito brutal.

Quais são, na sua opinião, as medidas que faltam a nível europeu? Acha que a Itália poderá não estar a administrar este problema porque muita responsabilidade é deixada apenas para a Itália sozinha?

Na minha opinião, e pode parecer um slogan muito simplista, o problema é que a Europa como realidade política carece de uma verdadeira unidade de valores partilhados e de uma visão política compartilhada. Temos uma unidade fundamentalmente económica, mas não temos uma partilha autêntica de valores que nos permita abordar a questão da imigração com uma política europeia comum. Felizmente, vamos agora modificar o regulamento de Dublin, mas o regulamento de Dublin que prevê que vá para o primeiro país onde o migrante põe os pés, a responsabilidade sobre esse migrante, é algo que obviamente traz um gigantesco peso em países fronteiriços como a Itália, como aconteceu parcialmente na Espanha, e muito na Grécia. 

Antes da coisa explodir, como esse problema foi ultrapassado? O problema foi resolvido assim: os migrantes chegavam à Itália, não eram, na maioria, cadastrados, e silenciosamente deixavam-nos ir para os seus verdadeiros destinos, pois quem chegava à Itália maioritariamente tinha outros destinos como a Alemanha, por exemplo, pois queriam chegar aos familiares que estavam nos países onde existe uma maior concentração, os mesmos que implementaram uma política de asilo mais ampla. Muitos migrantes, portanto, não queriam realmente ficar na Itália. Eles foram então autorizados a passar e isso continuou por anos e anos. O problema surgiu quando em 2011 houve a crise no Norte da África: houve um êxodo maciço e então a França começou a enfrentar esse problema, um problema que já existia. 

Acho que não existe uma visão comum, atrás das políticas específicas, e que no final sempre agimos na onda das emoções. Seria muito interessante fazer um estudo específico sobre a história de Alan Kurdi: o corpo é encontrado e fotografado - é importante sublinhar a fotografia, porque sem a fotografia este processo não teria sido desencadeado - e o corpo desta criança coloca alguns problemas, porque é branco. Ele está com uma camisola vermelha, calças azuis e sapatos, pode ser um dos nossos filhos ou netos que saiu para a escola de manhã e acabou lá. É impressionante, há uma grande onda emocional, e é pouco depois que acontece o milagre da Angela Merkel que abre as fronteiras da Alemanha. Veem-se os alemães que na estação, acho na estação de Colónia, aplaudem esses migrantes que chegam, uma coisa incrível, um milagre, que realmente durou o tempo de uma onda emocional. A Operação Mare Nostrum foi lançada (em Outubro de 2013) e quando termina, em 2014, dá-se o que é ainda o maior desastre naval do Mediterrâneo, causando 800 mortos, e isso acontece porque não já não temos nenhuma operação de resgate, substancialmente. Tryton (a operação que se segue) não é absolutamente adequado para cobrir uma série de áreas de mar. O argumento para encerrar a operação do Mare Nostrum era o seu elevado custo. Se você dividir a despesa pelo número de pessoas que a operação salvou, descobre-se que cada vida humana custava cerca de dois cafés. Da parte da Europa e estamos a falar de uma opinião bastante difundida a nível europeu, aquela operação italiana teve de ser interrompida porque funcionou como elemento de atração para os migrantes. A consideração era que, sabendo que não morreriam, os migrantes eram empurrados a partir. Assim, a operação foi interrompida com os resultados que vimos mais tarde. O conceito ainda difundido, apesar do bom senso e dos mesmos números, é que colocar os migrantes nas piores condições para fazer a travessia, ou não dar lhes ajuda, é a forma de desencorajá-los. Ainda não somos capazes de criar tempestades no mar, felizmente, mas podemos deixar pessoas a afogar. Estes também são números indiscutíveis, estima-se que entre 30 e 40.000 morreram desde o início dos anos 1990. Se dividirmos o número presumido de chegadas pelo número presumido de mortes, o resultado é que seria como se, desde o início dos anos 90, houvesse uma companhia aérea que liga o Norte da África à Itália e que tem este defeito, parte o avião, Boeing com cerca de 300 passageiros, e 6 desses passageiros são lançados ao mar. Quem pegaria essa companhia aérea? Os migrantes continuam a tomá-lo e, portanto, significa que há boas razões para tomá-lo. Não sei o quão útil é essa informação, percebo que tenho uma perspetiva muito militante - apesar de eu não militar em lado nenhum - e que tenho um ponto de vista um tanto radical, mas é assim que penso.

O jornalismo deve permitir que os cidadãos se tornem cidadãos

Queríamos fazer uma última pergunta: qual acha que é o papel dos media e do jornalismo, o papel que eles desempenham em relação à política internacional de migração, ou pelo menos o papel que acha que eles deveriam ter? Refiro-me também à consideração da qual já falou, ou seja, do facto de que existe esse sensacionalismo do jornalismo e que falamos mais sobre os migrantes quando se trata de tragédias ou quando estamos em eleições.

O jornalismo deve ter, no que diz respeito à imigração, o papel que deve ter em geral, ou seja, no que diz respeito à realidade em geral. Deve ser um instrumento que permita aos cidadãos serem cidadãos, serem cidadãos participativos e informados e, portanto, poderem tomar decisões. Todos os papéis que a cidadania abrange, entende-se que isso seja feito por pessoas informadas e não por pessoas desinformadas. Isso sempre deve funcionar. Para a imigração, deve-se fazer o mesmo. É claro que existem muitas mais dificuldades, a meu ver, em matéria de imigração, e estas são agravadas pela crise económica geral que o sector da informação enfrenta, ou seja, um sector que também é bastante difícil a nível económico. 

Na Itália agora é diferente porque a venda de jornais tem um declínio fisiológico que depende da transferência para a web e de outros fenômenos desse tipo, depende então de um aspeto da revolução industrial. A curva dos jornais era um indicador do estado de saúde da economia, ou seja, caia no momento de crise, porque o jornal é sempre uma das primeiras coisas que um indivíduo deixa de comprar. Se tem de escolher entre o café de manhã e o croissant e o jornal, e geralmente ele toma café e brioche e não leva o jornal. Esse problema continua a existir, estamos em uma fase de crise, há menos publicidade, então o que acontece: de onde vem o lucro para um corpo de informação? Relativamente ao jornal em papel, o lucro vem pelo número de cópias vendidas e pela publicidade. Pelo jornal na web, o lucro vem da publicidade, que ainda não chega para compensar os custos das empresas fundadas no papel, e pela atratividade de um determinado site; portanto, é contabilizada com base nos determinados contatos que um site possui. A alternativa é fazer jornais que vivem com auxílio, subsidiados por um grupo empresarial que talvez tenha outros interesses e possa contemplar a possibilidade de ir perder, mas isso criaria mais problemas. 

As regras do jornal são sempre as antigas, ou seja, que sexo, sangue e dinheiro são notícias que você lê mais do que notícias sobre, por exemplo, a vida cultural da comunidade somali em Itália. É claro que é assim, é preciso encontrar um equilíbrio entre o que dá lucro e o ser um jornal interessante, agradável e fácil de ler, com o fim de compreender também coisas complexas. A meu ver este é o trabalho que o jornalista em geral deve fazer, a maior missão: tirar do leitor e do cidadão todo o esforço que ele não pode fazer porque faz outros trabalhos - muitas vezes mais úteis que do trabalho do jornalista - e que o cidadão seja informado rapidamente, por meio de uma leitura fluente, compreensível e simples. É isso, na minha opinião, nada mais.

por Cátia Miriam Costa e Lisa Moroni
Jogos Sem Fronteiras | 2 Maio 2021 | Giovanni Maria Bellu, jornalismo, Mediterrâneo, migrações