Quando a música é Queer

Este capítulo está inserido no livro A arte de construir cidadania, Tinta-da-China.

“A pressão social para corrigir a minha identidade sexual e a minha incapacidade para o fazer isolaram-me do resto dos meus pares. Senti que a única forma com que podia relacionar-me com as pessoas nos meus próprios termos era através da música. Era na música, e apenas na música, que podia desempenhar todos os papéis necessários para me satisfazer. Na música podia compor, atuar e ouvir; podia tocar múltiplos instrumentos; podia performar e apreciar vários estilos. Era somente como música e amante de música que me era permitido ser fluida: podia interpretar e reinterpretar, criar e recriar. Enquanto estudante de voz clássica durante a semana e vocalista numa banda de hard‑rock nos fins de semana, encontrei na música a liberdade de explorar os meus desejos sexuais. Umas vezes era uma diva e em outras uma estrela de rock.”

Jodie Taylor (2012: 2)

Antevisões Queer em Portugal

Cartaz do Queer Fest 2020. E. Morales — Ilustraciones ZurdasCartaz do Queer Fest 2020. E. Morales — Ilustraciones ZurdasQualquer tentativa de definir uma «música queer» no contexto português depara-se, desde logo, com uma realidade: não existe entre nós uma frente assim identificada. O que verificamos no tecido musical do país é a gestação de algo que, de uma forma ainda disseminada e desorganizada, anuncia uma tendência. Tentamos juntar as peças desse puzzle e compreender o que está a acontecer no exato momento em que ocorre e não a posteriori, algo que caracteriza, infelizmente, a musicologia. Como o que se vai ouvindo vem de muito distintos núcleos de criação, raras vezes com oportunidades de confluência (concertos nos mesmos espaços, por exemplo), de uma frente não se trata. A  motivação para escrever este capítulo está na possibilidade de, juntando microrrealidades específicas, tentar revelar o que as une.

Para tal efeito, comecemos pelo termo «música queer», tendo como certo que esta designação não funciona como um rótulo distintivo, mas como uma tentativa de circunscrever um campo partilhado de ação, tal como está a fazê-lo a editora portuguesa Troublemaker Records. «Música queer» é o nome que se vai dando mundialmente à nebulosa de correntes musicais que têm como características: (1) terem autores da comunidade LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, pessoas transgénero, queer, não-binárias, intersexo, etc., no imenso espectro das sexualidades e identidades de género não-normativas), com essa condição a determinar estilos pessoais e conceitos estéticos; (2) expressarem uma mensagem objetivamente queer, desse modo participando nas lutas do movimento queer1; (3) juntarem estas duas vertentes num mesmo projeto em que se proclame a intimidade como fator político.

São esses os possíveis termos de uma difusa especificação musical queer, já que os variados géneros musicais do espectro queer cobrem todo o mapa da música popular dos dias de hoje: folk, pop, rock, hip‑hop, soul, techno e mais, neste mais podendo até ser incluídos algum jazz, alguma livre -improvisação e alguma música experimental, práticas que, não sendo conservatoriais (de Conservatório, máquina de reprodução da música dita erudita, de tradição «clássica»), só podemos considerar como expressões populares2. No seu ensaio «Playing it Queer: Popular music, identity and queer world -making», Jodie Taylor cita Aaron Lecklider, investigador interdisciplinar, afirmando que a música popular se tornou, por excelência, numa «arena em que as vozes marginalizadas podem ser ouvidas e as identidades sexuais moldadas, desafiadas e renegociadas» (2012: 49).

O termo queer teve durante séculos um significado e um emprego pejorativos. Servia para sinalizar aquilo que se considerava como um «desvio sexual», tendo particular incidência sobre a homossexualidade. «Em essência, queer indica uma estranheza, perversidade e distorção desagradáveis» (Taylor, 2012: 14), mas graças a inúmeros ativistas e académicos houve uma conversão provocatória do sentido da palavra, conseguida através de um processo de reapropriação por parte dos que eram apontados. Tal como aconteceu nos movimentos afro -americanos com a reutilização da palavra nigger, ou pelo movimento feminista punk com a reafirmação da palavra cunt, desde os anos 1990 também a queerness se tornou num símbolo de propriedade fluida, de orgulho e de experiência estética para a pessoa queer face ao social. O novo ponto de partida do conceito e dos movimentos associados é a desconstrução das catalogações de classe e género, e a reivindicação de resistência face a poderes formatadores, opressores e mainstream (Gamson, 2000: 348).

Nos mundos académicos, os queer studies desenvolveram-se exponencialmente ao longo das três últimas décadas (Beemyn e Eliason, 1996; Johnson e Henderson, 2005; Louro, 2004). Introduziram novas ferramentas conceptuais para pensar as estruturas sociais criadas pelo ser humano e para viver nelas. Um dos seus principais pilares é a necessidade de sair dos clássicos dualismos referentes ao corpo, ao género e à sexualidade: bem/mal; natural/social; moral/herético. Mais do que eleger um dos limitativos dois lados à escolha, a teoria queer visa cortar pela raiz tais conceitos refratários. Os dualismos nutrem-se e são fonte de julgamento, ou seja, sustentam uma norma sociocultural construída ao longo de séculos. Há, por parte da teoria queer, um tremor face a todas as bases religiosas e epistemológicas ocidentais, prosseguindo assim o que já vem sendo feito noutros campos do pensamento e das artes, tais como na filosofia: o hedonismo, por Epicuro; o desejo como essência, por Spinoza; ou a desconstrução histórica da sexualidade, por Foucault. São algumas das interseções de ação e reflexão inseridas na história libertária, que contribuem para o pensamento queer de referências atuais como Judith Butler, Paul B. Preciado, Elondust Patrick Johnson ou Pushpesh Kumar, entre muites outres3.

Em todos os campos da criação humana há queerness, mais ou menos explícita, de onde brota a sempre evolutiva teoria queer. É uma epistemologia que não se quer fixar, que vive do escape a catalogações, de modo a não cair no perigoso lugar de «conceito-chapéu», no qual caberiam todas as diversidades e especificidades dos mundos artísticos LGBTQIA+. A  diversidade é visível no quotidiano, revelando os próprios limites do conceito-chapéu. Aliás, a  ideia de «chapéu» é ela própria contrária à queer theory, no sentido em que, se há limites, é para estes serem quebrados. Se existe um abrigo ou uma delimitação, então quer-se estar fora deles. Por outro lado, tal como nos relembra a académica queer Nikki Sullivan (2003), uma conceptualização tão generalista não é útil para desmantelar as construções axiológicas e sociais na base do julgamento do outro. Precisamos de ferramentas mais finas, apropriadas às diversidades, entrecruzando constantemente o particular com o que há de comum entre a diversidade.

Além da ideia de desvio subjacente na visão que existiu face a seres fora da normatividade imposta, existe também a ideia de que as suas produções, artísticas ou não, fazem parte de um submundo — subculturas. De facto, o conceito de subcultura tem servido desde a segunda metade do século xx, nomeadamente na corrente inglesa dos Cultural Studies desenvolvidos pela Escola de Birmingham (Hall e Jefferson, 2006), para identificar expressões culturais urbanas minoritárias e marginalizadas. Essa identificação também serviu para as promover, desconstruindo os seus fundamentos para melhor compreender a sua existência. Por exemplo, foi importante para compreender movimentos artísticos como o punk, a techno ou o graffiti, mas não deixou de marginalizar as criações queer (Hall, 2005). Uma vez mais, tal categorização não abarcou toda a diversidade humana e cultural de cada um dos submundos estudados. Um conceito que tem vindo a substituí-lo é o de «cena» (Bennett e Peterson, 2004; Straw, 2001): não só retira a ideia vertical implícita no prefixo «sub», como permite uma maior complexidade relativamente a quem são os seus atores. Abre também à forma como certos contextos de produção artística se interligam a ecossistemas sociais mais abrangentes.

Como veremos, o mundo queer tem as suas «cenas» em Portugal, ainda balcanizadas no meio da música, mas com tendência a ter novos pontos de encontro, tais como o Queer Fest, o Rama em Flor, ou o Ano Zero, festival promovido pela Rádio Quântica. É um mundo pequeno que por isso reforça a ligação entre «cenas» físicas materializadas em espaços noturnos, tais como a Sociedade Musical União Paredense (SMUP) e a Penha sco — Arte Cooperativa na zona de Lisboa, desenvolve a parceria entre instituições, tais como o QueerLisboa e o Queer Fest, e promove a colaboração entre artistas, como por exemplo entre Fado Bicha e Tita Maravilha. Embora a música seja por essência imaterial, com melodias e distorções que rodeiam os nossos ouvidos, es músiques4 sobre es quais nos vamos debruçar tornam a queerness visível, palpável até, sempre própria a cada ser, a cada cena.

2015: Novo fôlego para a Queerness musical

Em Portugal, o panorama queer é recente, ao contrário do que já vinha acontecendo de forma mais assumida no Brasil, mas em contraste com os países africanos de língua oficial portuguesa. Entre estes, apenas em Angola encontramos um reduzido número de artistas queer (caso de Titica). Uma das razões prende-se com o preconceito face à homossexualidade por parte de algumas culturas tradicionais autóctones, às quais se junta um discurso conservador e excludente dos garantes da religião cristã trazida pelo ex-colonizador. A história da sexualidade e da relação cultural com as questões de género é própria a cada contexto, a cada país. Os caminhos da evolução saltam entre escalas, de pessoais a nacionais, entre nacionalidades, da influência do Brasil em Portugal e em Angola, e entre palcos, dos concertos em clubes privados aos Instagram Live ou canais YouTube, que ajudam a libertar e construir identidades.

Voltando à realidade portuguesa, depois da Revolução dos Cravos, só em três casos houve intervenções caracterizáveis como queer (em retrospetiva, pois o termo não era utilizado empoderadoramente). Referimo-nos a António Variações e aos Pop Dell’Arte de João Peste na década de 1980, e a Paulo Bragança, que nos anos 1990 foi o primeiro a introduzir o fado na nossa pós-modernidade, desembaraçando-o de alguns dos seus pesos simbólicos. Em nenhum destes casos os próprios ou os media referiram uma representatividade da comunidade LGBT. Não havia uma identificação pública destes artistas como homossexuais — eles mesmos não o faziam e a comunicação social respeitava esse «não -dito», fazendo tábua rasa das mensagens transmitidas e das respetivas imagens pessoais.

A queerness nas artes é, regra geral, explícita. Mesmo quando essa não é a opção programática, ou de agenda, há toda uma atitude -em -ato que a torna implícita. Sem uma postura política não há queerness. Nos casos apontados esta estava já em gestação — faltava-lhe a ferramenta da queer theory para que se desse o passo seguinte. No caso de Portugal, os conceitos operativos chegam lentamente a partir do final dos anos 1990, graças ao associativismo, e ao longo dos anos 2000, através dos circuitos universitários (Santos, 2006). É aproveitando este balanço, este momentum de queerness em Portugal, que emerge um novo fôlego criativo musical.

Quando, em 2015, as bandas Vaiapraia e as Rainhas do Baile, radicada no Centro -Sul de Portugal (entre Lisboa e Setúbal), e  Panelas Depressão, mais a Norte (com intervenientes que viviam entre a Serra da Estrela e Espinho), começaram a destacar -se, pareceu que tais novas manifestações estariam igualmente isoladas. Pois assim não foi: terão sido ambas a dar impulso à imensa vaga de artistas e grupos queer que hoje temos em todo o país. As suas referências musicais vinham de fora, designadamente do eixo criativo anglo-saxónico, em especial de correntes do rock como riot girrrls ou queercore (Paes, 2016), a exemplo da admiração de Rodrigo Vaiapraia pelos Hunx and His Punx de Seth Bogart. Desde 2015, tem sido extraordinária a profusão de projetos que vão marcando presença. Muitos deles de artistas que não se conhecem pessoalmente entre si e menos ainda o trabalho que realizam, pelo facto de frequentarem círculos diferentes: os dos seus respetivos géneros musicais. De alguma forma, porém, o  confessionalismo das letras de Vaiapraia no álbum de pop-punk «1755» e o caráter celebrativo dos concertos das Panelas Depressão inspiraram es5 demais músiques queer a também expressarem as suas frustrações e esperanças.

Se em Vaiapraia reencontramos alguns aspetos do pioneirismo dos Pop Dell’Arte, o punk melódico de Rodrigo Soromenho acabou também por fornecer os alicerces do que depois viria e se consolidou com o álbum «100% Carisma», lançado já em 2020 no difícil contexto da pandemia de covid-19. As canções têm a ligeireza da música pop, mesmo que em versão indie, mas a sua natureza confessional é tudo menos um convite ao escapismo da cultura de entretenimento. A mensagem é de provocação das normatividades hétero e homo («vou dormir com toda a gente») ou das identidades fixas de género («levo as jóias/levo o meu biquíni»). Nunca por cá, como em «Sinos», se tinham ouvido antes de 2016 dizeres como «Hoje é o dia em que casas com a Maria/Hoje é o dia em que perco o homem que eu queria»). Há letras, há atitude, há domínio do palco, há humor, raiva, provocação. O exagero expressionista dá muito trabalho na procura de libertação.

Quanto à música das Panelas Depressão, tem vivido das suas apresentações em concerto, e tanto assim que desenvolveu um forte caráter ritualístico — «carnavalesco», afirma a banda — que se perderia se a ouvíssemos apenas em disco ou cassete. Para dela tirarmos o melhor usufruto, temos de ver o que acontece no palco e a forma como Cristiana, a vocalista principal, interage com o público, deambulando entre as pessoas e provocando-as, com as roupas a revelarem-se fundamentais para toda uma iconografia crítica da condição pequeno -burguesa e hétero-normativa de feminilidade. Integrando um instrumento conotado com várias músicas populares da Europa, o acordeão (antes tocado por Eva Ribeiro, mais recentemente por Cláudia Alves), o que nos oferecem é um curioso e saltitante híbrido de punk e funk, com fortes marcações do baixo de Yo Shinnybutt.

Se já havia cenas queer no Brasil, só a partir de 2019, com uma razoável quantidade de artistas brasileires a fixarem residência neste canto da Europa para escaparem às perseguições de ativistas LGBTQ por parte das governações Temer e Bolsonaro (músicos e performers como Puta da Silva, Rezmorah, Tita Maravilha e Nany Aguiar, entre outres), é que se começaram a notar algumas ligações.

Refazer e atuar a estranheza 

As duas formações musicais portuguesas acima referidas foram fundadoras daquela que está a tornar-se numa pequena-grande comunidade dentro da maior comunidade de artistas, apesar de todas as idiossincrasias dos seus segmentos. O curioso nelas é o facto de terem inspirado o caráter fortemente performativo da música queer portuguesa, num reconhecimento da ascendência temporal e estética da performance-arte, da dança e do teatro que por cá cunharam uma marca queer, com destaque para André E. Teodósio com o Teatro Praga, de Rita Natálio, da dupla formada por Tiago Bôto e Wagner Borges, de Telma João Santos e de Rogério Nuno Costa.

Se uns, a exemplo de Fado Bicha, ganharam a mesma exposição que antes tiveram os acima mencionados António Variações, Pop Dell’Arte e Paulo Bragança, a maior parte das bandas e des artistas da música queer portuguesa vão tendo uma atividade quase clandestina, seja por marginalização obrigada pela indústria musical ou por escolha contestatária. Há outras coincidências a apontar e uma é, desde logo, o  regresso da noção de que a criação artística é, ou deve ser, uma forma de ativismo (vide o exemplo da música de protesto dos anos 1960 e 70), daí emergindo o conceito de «artivismo» tão entendido como urgente nos dias que correm. «Em tempos de pânico, os artistas não podem permanecer calados. É esta a altura em que devem desempenhar o seu trabalho. Não há tempo para o desespero nem lugar para a autocomiseração, não há qualquer necessidade de silêncio ou lugar para o medo. Nós falamos e nós escrevemos, temos uma linguagem. É  assim que as civilizações se curam», afirmava a romancista afro -americana Toni Morrison, pouco antes do seu falecimento em 2019.

Às avessas desse artivismo queer, alguma perplexidade vem causando a circunstância de certas jovens figuras do rap nacional, e supostamente queer, vindo dos «bairros» estarem a ser objeto do interesse das majors da edição discográfica. Quando alguém, como Cíntia, que nos seus hiperproduzidos videoclips fala tanto das suas aventuras com outras mulheres quanto da sua devoção pelas notas de euro, há uma ambiguidade que se revela e que não podia escapar às sempre atentas máquinas da música comercial. A domesticação da contracultura é pensada e lucrativa (Pattaroni, 2020). O  que significa, ipsis verbis, que além de uma música queer temos também desenvolvida e instalada uma música que, sendo LGBT, não é queer, com os equívocos daí decorrentes pelo facto de haver uma conversão ao establishment daquilo precisamente que o contesta. Ou seja, se é política, transformadora, a afirmação de uma identidade sexual fora da suposta norma, também o é a admiração pelo monetarismo capitalista, ainda que de sinal contrário, o de uma conformação com o sistema.

Em paralelo, algo de muito particular ganhou peso e significado, mais uma vez repondo uma antiga guarda-avançada de reorganização societária: a juventude como condição social com a sua visão específica do mundo e da vida, agora refletindo -se não apenas no folk/rock, como aconteceu nos sixties e nos seventies, mas alastrando-se por vários géneros musicais. Este fator trouxe consigo uma interessante evolução nas perspetivas do movimento queer, mormente ao nível de uma axiomática fluidez das distinções de género identitárias e de uma radical indiferença relativamente às próprias delimitações do desejo e do prazer. Vivida sem cristalizações hétero ou homoafetivas e de atração, é mais uma das possibilidades para quem tem 20 anos de idade neste início do século xxi em Portugal.

Um dos perigos desta perceção da liberdade de ser vem quando os jovens em causa entendem que tal liberdade é um dado adquirido, prescindindo das lutas de resistência e de reivindicação indispensáveis, numa conjuntura tão adversa quanto a atual, em que o líder de um partido da extrema-direita racista, xenófoba, homofóbica e transfóbica assegura o terceiro lugar nas eleições presidenciais de 2021. A dispensa de uma identidade queer com o argumento de que se trata apenas de um carimbo é, em si mesma, um alarmante sintoma de despolitização. Ou seja, o  que veio por bem pode tornar-se um mal, o  que aparenta ser um progresso, uma conquista, pode ter consequências nefastas num futuro muito próximo. Bom seria que as artes queer e o movimento queer se assumissem como inseguras, como lugares precários, lugares de perigo e, porque não, lugares de confronto. «A nossa práxis política está na desobediência das normas de género e de sexualidade. […] As vossas estéticas do antigo regime sexual não me dão prazer (não me fazem vir). Não me excitam de modo a ‘importunar’ alguém», escreveu Paul B. Preciado em «Letter from a Trans Man to the Old Sexual Regime», disponível na Internet. Este lugar de luta é um lugar de consciência e de fala da consciência, erigido à volta do que somos, em equação com o que está. E o que somos, para continuar com o mesmo texto de Preciado, é um conjunto de corpos bélicos, de corpas: «[…] jacobinos negros e maricas, fufas vermelhas, despejados verdes, somos os trans sem papéis, […] os que sofremos de défice de atenção, […] os descapacitados, […] os corpos impossíveis de rentabilizar pela economia do conhecimento, […] a rede viva descentralizada».

2020: Queer Fest, Caso de estudo

Foi com consciência de tudo isto, e com o propósito explícito de congregar as várias músicas de expressão LGBTQIA+ numa música queer global, bem como a vontade de representar a semelhante diversidade do espectro queer, que foi programada em setembro de 2020 a primeira edição do Queer Fest. O  festival foi coproduzido pela SMUP (Parede, Cascais) e pela Penha sco (Penha de França, Lisboa). Também abarcou no seu cartaz a performance -arte, em resultado da verificação empírica de que há uma influência formal desta em muitos dos projetos musicais existentes (casos do concerto de Judas nesse ano e de outro que está agendado para 2021 no contexto da Open Call Amoras Silvestres, de Aurora Pinho). No mesmo sentido se orientou a programação de Fado Bicha para o Finalmente Bar, em finais de 2020, com, por exemplo, Ness ou a dupla de Tita Maravilha e Cigarra. A música queer não é, portanto, uma nova tipologia da arte sonora e sim um caldeirão de criatividade.

A primeira seleção musical do Queer Fest recaiu em 2020 sobre a dupla Joana D’Água / Luiza Cascon (queer, apesar das reticências da primeira quanto à classificação), Pássaro Macaco, Clementine, Dead Club, Judas, Venga Venga, Baby Sura, Matriarca Paralítica, Herlander e Fado Bicha. Com programação extra para os meses anteriores a setembro, os cancelados Benefits Queer Fest incluíram nomes como CoLeGaS — Coro Lésbico, Gay e Simpatizante da Ilga Portugal, neverknew, Dakoi e A Lake by the Mõõn. A pandemia e a impossibilidade de obter financiamentos numa conjuntura económica adversa inviabilizaram as participações, ainda, de Cometa Olímpico, bbb hairdryer, Odete, Luís da Riviera, Aurora Pinho e Maria Bruxxxa. E, como não podia deixar de ser, considerando as ligações desta área musical a outras disciplinas artísticas de cunho queer, o  festival incluiu também performances de Telma João Santos e Bruno Cadinha, um vídeo performativo de Tiago Bôto e Wagner Borges, uma curta-metragem de Raquel Freire e uma leitura de poesia por parte de Sónia Baptista.

Foquemo -nos nas propostas musicais, tema deste texto. Com os contributos de Nany Aguiar (violino), El Acauã (dança) e Veruscka Girio aka Astronauta Mecânico (videomapping), Joana D’Água e Luiza Cascon apresentaram no primeiro dia do Queer Fest uma versão pretendida e efetivada como «multidimensional» da «música de intervenção» que denominam Plano V. Música de festa, feminista, de «dança e tesão», tão carnavalesca quanto a das Panelas Depressão, buscando a instauração de um «rabapower». Pássaro Macaco, projeto a solo de Kali, baterista trans não -binário de Panelas Depressão, permitiu -nos ouvi -lo com outros instrumentos (teclados, trompete, voz) numa eletroacústica situada entre a pop e o experimentalismo, ela própria em transição. Paisagismos sonhadores e beats de dança convergiram nas mesmas composições. As Clementine estrearam -se em trio, a Frankie Wolf (Shelley Barradas, antiga guitarrista e baixista de Vaiapraia e as Rainhas do Baile) e Lena Huracán (Helena Fagundes, antes encarregando -se da bateria em bandas de mulheres do Brasil, como Biônica, Lava, Go Hopey e Las Dirces) juntando -se Chris no baixo. Pós -punk com muito feedback guitarrístico, foi o que delas ouvimos.

Já depois de ter iniciado a fórmula Violeta Luz, mais orientada para a pop e com letras em português, a cantora Violeta Alexandre voltou ao punk eletrónico de Dead Club e à sua persona Violeta Espectro, tendo como acompanhantes João Silveira na guitarra e Alix Sarrouy na bateria. Mais uma vez, e de uma forma particularmente sexualizada, ficou vincado o caráter performativo desta música «queerizada». Cantautor, bailarino e ator, Judas escolheu essa mesma abordagem para a mescla de música de dança eletrónica, soul e hip‑hop que nos apresentou, com referências africanas e um entusiasmante conceito de cena. A ocasião proporcionou a estreia pública daquele que viria a ser um novo hit queer, o seu tema «Na Na Na». O segundo dia do Queer Fest não poderia ter tido um fecho mais significativo do que o proporcionado pelos brasileiros Venga Venga, residentes em Lisboa. Denny Azevedo e Ricardo Don aliaram os meios digitais à música de raiz do Brasil, num espetáculo que procurou o mais puro hedonismo e a sinestesia, versando questões como a apropriação cultural, as migrações contemporâneas, a diversidade humana e a asfixia que vamos sentindo nas cidades. Assistimos a toda uma extravaganza queer e tropical, provocando o movimento dos corpos e a reflexão no exato mesmo sentido em que Emma Goldman escreveu que nenhuma revolução é boa se não for possível dançar, ou dançá -la.

Baby Sura representou a mais nova geração do panorama queer da música portuguesa com uma eletrónica vocalizada, algures entre o trap e o exploratório, que por via de um genderbending altamente teatralizado afrontou os padrões da masculinidade e da posse («só um beijo/não quero mais», cantou), confundindo club music e balada política. Depois, as Matriarca Paralítica concretizaram aquilo a que se vêm propondo, «fazer da inadequação social uma celebração elétrica», mergulhando no punk mais essencial e primário. A  guitarrista (e cineasta) Francisca Marvão, a vocalista e «agitadora», como a si própria se designa, Sara Conchita, a baixista Cláudia Alves, membro das consagradas (no underground pelo menos) Panelas Depressão e de grupos como As Valentinas e Frik.são, e a baterista June Nash (pseudónimo em homenagem à antropóloga feminista já falecida), colaboradora de figuras como Joana Guerra, Helena Espvall, Jari Marjamaki e Tiago Sousa, provocaram uma tempestade de som e energia. Em algumas canções (tendo a mais aplaudida sido «Neo-Córtex Pré -Frontal») com o acrescento de Maria do Mar, violinista com atividade nos domínios da música livremente improvisada.

Seguiu-se um de vários artistas afrodescendentes que, entre nós, vêm combatendo a «supremacia branca, o sexismo, a queerfobia e as regras de género», para citar a sua editora, a Troublemaker Records: Herlander, vindo da Margem Sul do Tejo. O misto computadorizado de soul e rhythm ‘n’ blues por este interpretado prendeu muito particularmente a atenção de todes. O fim do Queer Fest de 2020 veio com Tiago Lila e João Caçador, o duo de voz e guitarra que constitui Fado Bicha. Lila não se ficou pelo canto: as suas intervenções faladas foram tão importantes, porque calorosas e mobilizadoras num período tão debilitante do movimento queer como o da covid, quanto a música. Esta canalizou de maneira eficaz os sentires e as estórias da comunidade por meio da mais lusa das músicas urbanas, o fado. Em muitos dos casos pegando no repertório tradicional e convertendo -o para o efeito pretendido, com «O Namorico da Rita» a surgir como «O Namorico do André» e «Lisboa Não Sejas Francesa» passando a «Lisboa Não Sejas Racista». Pelo meio com um tributo à ativista Alice Azevedo, presente na sala. A diferença do duo relativamente a Paulo Bragança foi muito evidente: estava no panfletismo dos propósitos e não apenas na apresentação física, nos figurinos, na atitude.

Num contexto como este de alcance político e social, importante seria que se proporcionasse o debate, e  assim aconteceu, com moderação da filósofa, arquiteta e curadora Maribel M. Sobreira. Uma das conversas que tiveram lugar, «Quando a Arte é Queer», versou precisamente a temática aqui em causa, tendo sido estas as perguntas (retóricas e exemplificativas) que serviram como mote para a discussão: «O que é uma arte queer? O que faz dela queer: o autor ou o que ela mesma expressa? Uma arte, para ser queer, tem de ser de intenção, com intenção? Precisa de ter a queerness como mensagem? Precisa de ser panfletária, militante, ativista? Será necessário, mesmo, ter mensagem? Pode uma arte ser queer sem que seja esse o propósito de artista? O que passa do autor para a obra no que respeita à sua condição queer, sem o dito ter plena consciência disso? Há pinceladas queer, movimentos coreográficos queer? A música de John Cage é queer só porque Cage era homossexual? Tom Robinson seria hoje entendido como queer se não tivesse cantado ‘Glad to be Gay’? É mais queer a arte musical de Wendy Carlos do que era quando assinava como Walter Carlos? O queer na arte tanto pode ser explícito como implícito? Toda a arte queer é inerentemente confessional? E toda a arte queer é necessariamente política? Sendo as duas coisas, quer isso dizer que é simultaneamente uma arte do privado e do público?» André E. Teodósio, Telma João Santos, Tiago Lila e Joana D’Água constituíram o painel da conversa, falando sobre as suas próprias motivações e os objetivos artísticos que vêm perseguindo.

Bibliografia

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  • 1. Importa referir que, na atualidade, existem artistas LGBT que não se consideram, ou não podemos considerar, como queer, e não pelo facto de eles acharem, ou nós acharmos, que o termo é um «chapéu» delimitador. Um exemplo é Joana D’Água, que prefere identificações feministas às especificamente queer, não entendendo o feminismo como algo que surge por via da intersecionalidade queer. Em debate ocorrido a 8 de setembro de 2020 no primeiro Queer Fest, afirmou mesmo não compreender por que motivo tinha sido convidada: «É só pelo facto de eu amar uma mulher?», perguntou. Por outro lado, também há casos de artistas straight que utilizam temáticas ou posicionamentos queer numa perspetiva intersecional, tal como o faz o músico Filipe Sambado.
  • 2. O mundo da música sinfónica também conta com artistas queer internacionalmente conhecidos. É o caso do famoso organista Cameron Carpenter, ativista musical, com impressionantes figurinos nos seus concertos. Sugerimos a leitura do artigo «Cameron Carpenter’s Queer Art of the Organ, Camp, and Neoliberalism», publicado na Music & Practice e escrito por Laura Wahlfors: https://www.musicandpractice.org/volume -6/cameron -carpenters -queer -art -of -the -organ -camp -and -neoliberalism/.
  • 3. Para uma escrita mais inclusiva, visando a neutralidade de género, escolhemos usar a letra «e». No caso de uma palavra já ter a letra «e» na última sílaba, então escolhemos substituir pela letra «x».
  • 4. A palavra «músiques» é um neologismo que começa a ser utilizado nos meios queer.
  • 5. Para uma escrita mais inclusiva, visando a neutralidade de género, escolhemos usar a letra «e».

por Rui Eduardo Paes e Alix Didier Sarrouy
Corpo | 5 Setembro 2022 | corpo, LGBTQIA+, música, música queer, Portugal, Queer, queerness, sociedade