Nawal El Saadawi

A lâmina avançou, cortante e gélida, com a parteira, a daya, a dizer-lhe que agia assim por vontade de Deus, que fora Ele quem ordenara, lá do alto, que lhe arrancassem aquele minúsculo pedaço de carne, aquela pecaminosa víscera que trazia entre as pernas. Tinha então seis anos, não mais, ficou banhada num mar de sangue. A ferida no corpo, horrível, levou dias ou semanas a sarar. O golpe na alma, esse, permaneceu até ao final da vida, ocorrido há pouco, aos 89 anos. 

Nawal El Saadawi nasceu em 1931 em Kafr Tahla, uma aldeia da província de Qalyubia, no delta do Nilo, a norte do Cairo, e era a segunda dos nove filhos de um funcionário do Ministério da Educação do Egipto que, por se ter rebelado contra a ocupação britânica do país, fora exilado com a família para aquele local remoto. Da profissão da mãe nem se fala, sendo mais do que óbvio que cuidava da casa, do marido e filhos. Sabe-se apenas que descendia de famílias otomanas ricas e Nawal sempre se orgulhou das sus raízes turcas e da sua pele escura. Apesar de ter autorizado a ablação do clitóris da filha e de ter querido casá-la aos 10 anos (a mãe opôs-se, com êxito), o seu pai era relativamente progressista e incentivou os filhos, rapazes e raparigas, a estudarem, a aprenderem árabe e a confiarem neles próprios e nas suas capacidades. 

Órfã desde muito nova, Nawal teve de trabalhar para sustentar a família, o que não a impediu de ter notas excelentes no liceu e de se formar em Medicina na Universidade do Cairo, em 1955. No ano seguinte, casou com um colega de faculdade, do qual teve uma filha e de quem se divorciou dois anos depois. Casou novamente com outro médico, por pressão da família, mas acabaram por se separar pois o marido opunha-se a que ela escrevesse livros e tivesse opiniões feministas. Voltou a casar em 1964 com Sherif Hatata, um militante comunista de boas famílias que Nasser acabara de libertar da prisão, onde estivera encarcerado 13 anos devido às suas actividades subversivas. Ao fim de 43 anos, o casamento terminaria em 2010, por divórcio.

Após ter concluído o mestrado em saúde pública na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, Nawal foi nomeada em 1966 directora-geral de saúde do Egipto. Em resultado da sua experiência pessoal e da violência contra as mulheres que observara enquanto médica, primeiro na sua terra natal e depois por todo o país, publicou em 1972 a sua estreia na não-ficção, Mulheres e Sexo, uma corajosa denúncia da mutilação genital feminina e dos maus-tratos conjugais que lhe valeu ser imediatamente demitida do cargo de directora-geral da saúde, de editora da revista Saúde, que fundara anos antes, e de secretária-geral adjunta da Associação Médica do Egipto. De 1973 a 1976, trabalhou na Faculdade de Medicina da Universidade Ain Shams, no Cairo, a investigar as neuroses femininas, e, de 1979 a 1980, foi consultora do programa ONU Mulheres em África e no Médio Oriente. 

O seu envolvimento na causa feminista, que a levou a publicar dezenas de livros de ficção e de não-ficção e a participar na fundação da revista Confronto, enfureceu as autoridades religiosas do país e acabou por ditar a sua prisão em 1980, às ordens de Anwar el-Sadat. Na prisão, proibiram-na de escrever, mas conseguiu redigir clandestinamente as suas memórias do cárcere em folhas de papel higiénico. Foi libertada em finais de 1981, um mês depois do assassinato do presidente. A revista Time nomeou-a uma das 100 mulheres do ano. 

Em 1982, fundou a Associação de Solidariedade das Mulheres Árabes e a sua intensa actividade em prol da libertação feminina tornou-a alvo de ameaças de morte por parte dos islamistas radicais, o que a obrigou a fugir do país em 1993 e a fixar-se na América, onde leccionou num rol impressionante de universidades de topo: Duke, Washington, Harvard, Yale, Georgetown, Columbia, Berkeley, Florida Sate (foi também professora na Sorbonne). Em 1996, regressou ao Cairo, onde deu aulas na universidade e prosseguiu a sua intervenção política, tendo ponderado candidatar-se às presidenciais de 2005 e estando na primeira linha dos protestos da Praça Tahrir, em 2011. 

Galardoada com o Prémio Norte-Sul, do Conselho da Europa, em 2004, e com o Prémio Seán MacBride, do Gabinete Internacional para a Paz, em 2012, era conhecida como “Simone de Beauvoir do mundo árabe” pelas suas posições contra a mutilação genital feminina (e masculina) e o véu islâmico. Em entrevistas do final da vida, dizia ser cada dia mais radical, disparando contra o uso maquilhagem e de roupas ousadas pelas mulheres, o fundamentalismo religioso e as peregrinações a Meca, o imperialismo ocidental e a invasão do Afeganistão, o apoio dos EUA a Israel e, inclusive, o auxílio humanitário americano ao povo do Egipto, que considerou ser causa da manutenção da pobreza no país. Morreu num hospital do Cairo no passado dia 21 de Março. Três vezes divorciada, foi mãe de duas filhas que, ao contrário dela, mas graças a ela, nunca sentiram o frio de uma navalha a cortar-lhe a carne e, sobretudo, a dilacerar-lhe o espírito, até ao fim dos dias. 

Artigo originalmente publicado por Expresso a 24.04.2021

por António Araújo
Corpo | 28 Abril 2021 | corpo feminino, feminismo, nawal el saadawi, Sexualidade, violência sexual