As artes & as [cis]ões, os conluios vitais, os virais, as políticas do que agora podemos e todos estes métodos instáveis para irmos fazendo um depois

Já entendemos a predisposição cissexista e trans-exclusionária da larga maioria das instituições artísticas e culturais portuguesas. Somos capazes, confio, de reconhecer um recorte pelo qual corpas queer são constituídas enquanto autoras e estórias queer são constituídas enquanto obras, desde que se salvaguarde a distância crucial que separa “queer” de “trans”. Corpas e estórias trans importam, neste paradigma, como tópicos. Como objetos formais, figuras de estilo, artefatos ocasionais. Como elementos variáveis na produção do espetáculo, e na preservação do espetáculo da norma enquanto tal.

As afinidades entre trans e queer (enquanto conceitos, e enquanto comunidades) permanecem um eixo de tensão. Este reconhecimento tem de ser reiterado, tal como têm de ser redimensionados os modos como habitamos e mediamos essa tensão. Para não falar dos modos pelos quais possamos agudizar e tirar proveito coletivo. Porque está aí em causa uma clivagem, uma curva descontínua de despertença e violência, que é nossa e que permanece connosco. Que reside nas nossas histórias partilhadas enquanto comunidades, nas ficções políticas das nossas solidões, e nas decisões que tomamos todos os dias, conforme configuramos e testemunhamos o comum.

A organização económica deste sistema fomenta – fomentará sempre – relações de competição em torno dos seus espaços de representação. Incita uma segmentação mais detalhada, subtil, e divisionária ainda das perspetivas, das narrativas, dos conhecimentos de corpa e de vida. A desigual distribuição de recursos e acessos generaliza uma lógica substitutiva, e nunca combinatória. À margem da institucionalidade da “arte”, da sua monumentalidade humana (e humana demais), ficamos forçosamente enredadas na pauta das políticas da representação. Disputando zonas de indeterminação, margens de possibilidade condicional, e sondando que ícones ou visões reverberam num determinado momento no tempo… E quais terão de esperar pelo ciclo seguinte: outro tópico, outra tendência.

Não temos porque confiar que este sistema funcione. Nem temos porque confiar que vise, em qualquer instância, a sua auto-crítica. Não temos sinais de que se prepare para a sua própria reconstrução e rearranjo, ou mesmo rasura, a favor de outros modelos de engajamento e modos de produção. Temos, isso sim todos os motivos para crer que este visa a continuidade da sua auto-reprodução, a perpetuação persistente dos seus limites exclusionários, e a sua exponencial elaboração através de múltiplos processos de acumulação.

Nem “como”, “quem”, ou “para quê”. Mas sim “quanto”, e “quanto mais”.

Isto não significa que devamos desistir da demanda por políticas reparativas, por programas de reconciliação, ou por soluções transitórias para as desigualdades estruturais das quais este sistema depende e logo reinscreve uma vez e outra. Pelo contrário: precisamos de continuar a configurar estratégias pelas quais aproximemos um sistema falido à sua própria aniquilação, nem que pela concretização (impossível) do que este veda, por necessidade: a justiça económica, a justiça social. Precisamos de continuar a improvisar métodos de intervenção e interpelação pelos quais consigamos produzir um ruído - disruptivo e contínuo - que pressione as estruturas do que é ao ponto da contradição.

Mas também precisamos de pensar as alternativas, os espaços vazios, e os outros esquemas de distribuição. As plataformas que nos permitem redirecionar a atribuição de fundos; os grupúsculos que podemos constituir para dispor, oportunamente, do sistema vigente; as práticas de apoio mútuo que permitem e potenciam a sobrevivência e a criação; a ocupação de espaços de profunda implausibilidade e o esboço de programas experimentais de ação… Modos de sermos inconvenientes, cúmplices, teimosas, ternas – e inflexíveis para com o próprio princípio da adaptação. Fóruns que ainda não reconhecemos para os trabalhos da imaginação política; fórmulas que ainda não recordámos para o fracasso e para a invenção…

Partimos do cansaço e do ceticismo, é certo. E isto quase por definição. Mas também não temos como fazer que não nesse cansaço, e desse ceticismo ir fazendo algo. Reconstituindo dos resíduos os utensílios possíveis. Não há “depois” que não o feito entretanto, não há na violência compasso de espera, e nada é ganho no eterno retorno do normal. Que o façamos por entre as perdas contínuas da crise: o quanto calcificou, e o que já nos tirou. Sem síntese de favor e invectiva, sem o trabalho sujo da invenção contínua, e sem a mescla repentina em que convergem transição e abolição, que podemos nós esperar sequer, que não o sempre-novo do que já foi?

por Salomé Honório
Corpo | 19 Junho 2023 | artes, corpas, imaginação, políticas, trans