Notas em torno da África Urbana de David Adjaye

O que mais impressiona a quem sobrevoa o continente africano é a força e variedade da sua natureza, nas cinco “categorizações geográficas” claramente apresentadas por David Adjaye na sua exposição e aqui sublinhadas por Cristina Salvador - a floresta, o deserto, a savana, o prado, a montanha, bem como todas as situações híbridas, entre umas e outras. As cidades moldam-se a estas distintas paisagens, mais concentradas na linha do litoral africano, e esboçam, elas próprias, novas paisagens territoriais, também elas diversificadas e crescentes.

Argel, Argélia, fotografia de  David AdjayeArgel, Argélia, fotografia de David Adjaye

Este é um continente recentemente urbanizado: em 1800, apenas 9 por cento da sua população vivia em zonas urbanas, eram 25,6 por cento em 1950 (Bairoch 1985: 6341), e 47,2 por cento em 2007 (UN 2007a2), apresentando África, desde a década de 1970, a mais elevada taxa de crescimento urbano anual, a nível mundial. Em meados do século, a sua população urbana correspondia apenas a 4 por cento da população urbana mundial, mas passara já para 11 por cento em 2007. Entre 1950 e 2005, em 55 anos, a população urbana do continente africano mais que decuplicou, ou seja, passou de cerca de 30 milhões para cerca de 340 milhões de citadinos. É neste contexto, de uma emergente urbanização acelerada do continente, que se enquadra a exposição de David Adjaye que procura dar a conhecer ao mundo esta nova realidade territorial complexa e multifacetada.

Lusaka, Zâmbia, fotografia de David AdjayeLusaka, Zâmbia, fotografia de David Adjaye

Para além das diferentes gramáticas arquitectónicas e urbanísticas muito bem retratadas nesta exposição “Urban África”, a explosão urbana em África traduz-se em diversas configurações territoriais: das grandes regiões metropolitanas (Lagos e Cairo com mais de 10 milhões de habitantes, Kinshasa com mais de 7 milhões, outras 45 cidades com 1 a 5 milhões e ainda 13 com 500 mil  a 1 milhão de habitantes) com extensas periferias não urbanizadas e muito carenciadas, ocupando de 30 a 90 por cento da área urbana; às grandes conturbações territoriais, como a do Golfo da Guiné, que se prevê venha a atingir, em 2020, 60 milhões de habitantes, gravitando em torno de Lagos, capital económica e financeira da Nigéria, que conta já mais de 12 milhões de habitantes em 2011 e se prevê que duplique ao longo da presente década; às extensões urbanas ao longo de “corredores”, como o da Beira ou o de Maputo em Moçambique; e às médias e pequenas cidades com menos de 500 mil habitantes, onde vive actualmente cerca de 58 por cento da população urbana africana, quase 200 milhões de citadinos (em 84 cidades) (UN2007b3, Raposo 20104).

David AdjayeDavid Adjaye

Estes múltiplos centros urbanos africanos são palco daquilo a que David Adjaye chama de “modernização cosmopolita”, um cenário de intensas redes de sociabilidade e de trocas persistentes e renovadas entre a cidade, o campo e o estrangeiro, entre as zonas mais centrais e urbanizadas e as extensas periferias. Cruzam-se e transfiguram-se nestas cidades lógicas, práticas e estratégias rurais e urbanas, africanas e do exterior (ocidentais e outras), tradicionais e modernas, artesanais e de tecnologia avançada, que se materializam num território híbrido e criativo onde dominam a mestiçagem e a bricolage (Marie 19985, Oppenheimer e Raposo 20076), mas que é também persistentemente desigual no acesso aos recursos.

Victoria Seychelles, fotografia de David AdjayeVictoria Seychelles, fotografia de David Adjaye

Como sublinhei em outro texto (Raposo 2010), as cidades africanas são marcadas pelo hiato entre a explosão urbana galopante que ocorre desde meados do século passado, inscrita num território maioritariamente rural, pontuado por uma estrutura urbana de origem colonial, desequilibrada e macrocéfala, e a crise persistente das economias africanas nacionais, a desaceleração industrial e o predomínio do sector terciário, em países recém-independentes. Desde finais da década de 1980, com a afirmação da globalização económica neo-liberal, este quadro tem-se agravado, acentuando-se a diferenciação e segregação sócio-espacial e o dualismo entre as áreas urbanizadas, qualificadas e renovadas, seus novos condomínios com fortes sistemas de vigilância, e as imensas periferias com seu extenso manto horizontal de múltiplas cores, materiais, formas e cheiros, oferecendo condições de vida com padrões materiais muito diversos das cidades ocidentais.

Kampala, Uganda, fotografia de  David AdjayeKampala, Uganda, fotografia de David AdjayeAbuja, Nigéria, fotografia de  David AdjayeAbuja, Nigéria, fotografia de David Adjaye

 

Estas áreas marginais, informais, não urbanizadas, ou espontâneas, para os olhares exteriores, são os bairros onde residem a maioria dos habitantes urbanos, cenários de vida, também eles plurais: de uma classe média ou média baixa que prefere um lote periférico em habitação própria e com quintal a um apartamento na cidade urbanizada, ou que não tem recursos para pagar as despesas desses fogos centrais; ou de uma classe precarizada e periferizada expulsa de áreas mais centrais, em processos mais ou menos violentos, por via administrativa e policial ou pelos mecanismos do mercado; ou ainda, e também, dos inúmeros pobres urbanos amontoando-se em abrigos de desesperança para quem a miragem da cidade virou infortúnio e abandono.

Esta diferenciação socio-espacial do espaço urbano contemporâneo, que se inscreve, de forma crua, na abordagem lefebvriana do espaço lido enquanto produto do social (Lefebvre 19747), suscita múltiplas questões à abordagem de David Adjaye, sublinhada por Cristina Salvador, do espaço urbano enquanto produtor de “conteúdos emocionais” (Bosco 20118). Como é que estas diferentes paisagens urbanas - dos condomínios de luxo, aos apartamentos centrais, às moradias suburbanas, aos tugúrios periféricos e a todas as suas formas intermédias – condicionam as emoções dos seus habitantes…? Ditarão emoções diferenciadas? Todos estes lugares são cenários das vivências quotidianas destes diferentes grupos sociais, indutores e reprodutores de diferentes identidades e padrões urbanos de vida. Haverá lugares que ditarão maiores características identitárias? Qual é o limiar socio-espacial abaixo do qual cessa a capacidade de resiliência? Ou aquele acima do qual se perdem os atributos da urbanidade?

Gaborone, Botswana, fotografia de  David AdjayeGaborone, Botswana, fotografia de David Adjaye

Deixo em aberto estas questões sensíveis para rematar este apontamento com uma reflexão final sobre a gestão urbana das cidades africanas. Subjacente está a questão “o que fazer?” (Forjaz 20059) a estes territórios de urbanização recente e acelerada, complexos, contrastados e multifacetados, e, em especial, aos seus extensos subúrbios não urbanizados. Os modelos de intervenção para a cidade colonial, direccionados para os núcleos urbanizados bem delimitados, ou para as suas áreas de expansão, já não dão resposta às novas configurações urbanas extensas, densas e extensivas, onde predominam as áreas não urbanizadas resultantes da auto-ocupação dos seus habitantes. Em ambiente neo-liberal, predominam hoje os grandes projectos internacionais, para as áreas centrais, marcados pelo que Cristina Salvador chama de “estilo Dubai”, tendencialmente associados a processos de periferização dos grupos sociais de menores recursos. São projectos marcados por grande investimento tecnológico e dispêndio de recursos que não contribuem para pensar de forma criativa a intervenção e qualificação das extensas periferias. Estas reclamam um olhar muito mais atento e compreensivo dos sistemas autogerados, capaz de propor modelos inovadores e criativos que com eles se articulem e configurem novos espaços qualificados.

Yaounde, Camarões, fotografia de David AdjayeYaounde, Camarões, fotografia de David Adjaye

Um estudo comparado entre cidades da África Austral (da África do Sul, de Angola e Moçambique) interpela-nos para a urgência de uma mudança de atitude na forma de desenhar o futuro dos bairros não urbanizados: a busca de políticas de intervenção mais humanizadas requer que se olhe não apenas para as suas faltas ou carências materiais mas para o que estes bairros oferecem aos seus habitantes e à cidade, bem como para as aspirações e interesses dos seus residentes (Leslie et al, 201110). Ou seja, trata-se de partir das referências identitárias locais e de introduzir melhoramentos adequados aos desígnios locais em vez de reproduzir modelos conformes a padrões de vida alheios que são localmente inapropriados e se tornam em geral geradores de maiores desequilíbrios.

Como refere Davis (200611), o exponencial crescimento dos slums à escala mundial, resulta de vários factores económicos (aumento da dívida externa, programas de ajustamento estrutural) e políticos (corrupção dos governos, incapacidade institucional), e o seu futuro dependerá, em primeira instância, como mostram os recentes acontecimentos no Norte de África, da “recusa militante dos novos urbanos pobres em aceitar a sua marginalidade terminal no interior do capitalismo global” (2006: 202). Enquanto as grandes transformações não se operam, ou se vão operando, as práticas reprodutoras ou transformadoras do quotidiano vão tecendo o território urbano nas suas múltiplas facetas e são elas que David Adjaye nos desvenda e restitui interpelando-nos para novas formas de pensar e de fazer a cidade africana.

  • 1. BAIROCH, Paul (1985), De Jéricho à Mexico. Villes et économie dans l’histoire. Paris: Gallimard.
  • 2. UNITED NATIONS (2007a) — Urban agglomerations. 2007. United Nations, Department of Economic and Social Affairs in http://www.un.org/esa/population/publications/wup2007/2007urban_agglo.ht....
  • 3. UNITED NATIONS (2007a) — Urban and Rural Areas. 2007. United Nations, Department of Economic and Social Affairs in http://www.un.org/esa/population/publications/wup2007/2007_urban_rural_c....
  • 4. RAPOSO, Isabel (2010) “Explosão urbana”, in Janus 2010.
  • 5. MARIE, A. (ed.) (1998) – L’Afrique des individus : itinéraires citadins dans l’Afrique contemporaine (Abidjan, Bamako, Dakar, Niamey), Paris, Karthala.
  • 6. Oppenheimer, J.; Raposo, I. (coords.) (2007) Subúrbios de Luanda e Maputo, Lisboa, Colibri.
  • 7. LEFEBVRE, Henri (1974) La production de l’espace, Paris, Anthropos.
  • 8. BOSCO, Roberta (26 Março 2011), “Babelia”, El Pais, p.18.
  • 9. FORJAZ, José (2005) “Uma estratégia para o melhoramento e a reabilitação dos slums em Moçambique”, Cadernos da Faculdade Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, UR, 5, pp. 92-97.
  • 10. Groenewald, L.; Huchzermeyer, M.; Kornienko, K.; Raposo, I.; Rubin M.; Tredoux, M.) (no prelo) “Breaking down the binary: meanings of informal settlements in Southern African Cities” in L. Fourchard and S. Bekket, Governing African Cities, Paris, Karthala
  • 11. DAVIS, Mike (2006) Planet of slum, Londres e Nova York, Verso.

por Isabel Raposo
Cidade | 2 Junho 2011 | cidades africanas, continente africano, periferia, savana, urbanismo, urbanização