Assincronias urbanas: Cabo Verde e a necessária ressemantização do território

Tive a oportunidade de explorar brevemente o tema da necessária ressemantização sobre o território numa entrevista publicada na revista da Ordem dos Arquitectos de Cabo Verde. Acredito que esta questão seja fulcral em direção ao que venho denominando “urbanismos para o Sul global”. As palavras têm peso, como bem demonstrou Foucault, incluem ou excluem, produzem o existente e o não existente, social e espacialmente. As construções simbólicas do/sobre o espaço urbano (re)produzem as estruturas de poder cotidianamente (Foucault, 1979; 2000; Bourdieu, 1999). Analisá-las criticamente possibilita instigantes leituras da organização espacial a partir do simbólico (Moassab, 2011), numa abordagem que relativiza a própria produção dos dados e a suposta neutralidade técnica de mapas, cartas e estatísticas, o que, de certa maneira, retomei neste debate proposto pela OAC. Aos três entrevistados para o primeiro número da revista Arq&Urb foi apresentado o seguinte enunciado:

“O défice habitacional em Cabo Verde é elevado e essa carência materializa-se na multiplicação de bairros informais, que desfiguram o perfil paisagístico das cidades e condicionam a qualidade de vida das populações. Como chegámos a este ponto? Que vantagens trazem as soluções apontadas e quais as suas vulnerabilidades? Como resolver esta problemática?”.

As perguntas daí decorrentes tratavam da origem da “problemática” urbana, das respostas que têm sido avançadas e das eventuais soluções que os entrevistados pudessem apontar. Nas linhas que seguem destaco, daquela entrevista, os pontos que julgo relevantes não apenas para pensar as complexidades do contexto africano urbano contemporâneo, mas, sobretudo, para descolonizar uma perspectiva dominante no debate sobre as cidades.

Não é “apenas” uma questão semântica

Primeiramente gostaria de apontar o problema na formulação da questão. Não considero haver relação direta entre “bairros informais” e “desfiguração do perfil paisagístico”. O que seria uma “figuração” do perfil paisagístico (em oposição à desfiguração)? Qual a distinção entre bairros formais e informais? Julgo que a distinção que se faz atualmente, expressa num vocabulário assincrônico (e anacrônico), tem sua origem na época do designado Renascimento Europeu, (há cerca de 500 anos) com as obras literárias (inauguradas pela Utopia, de Tomas More) e urbanísticas: obras essas que estimularam a construção de imaginários sobre a noção de cidade “ideal”. Em absoluto rigor, as cidades ideais, na verdade, nunca existiram, nem mesmo na Europa, onde esse paradigma foi construído. Cabe a nós, arquitetos do século XXI, conseguir romper e superar com a opressão racional que nos é imposta a partir da herança do binarismo “ocidentalocêntrico” que, por conseguinte, cria uma visão do mundo e das sociedades com base na dualidade irredutível entre bem/mal e seus correlatos espaciais: regular/irregular, ordem/desordem, legal/ilegal etc. Estes são artifícios semânticos e ideológicos que velam o sistema de produção capitalista do espaço, o qual remete e destina para as populações pobres o território que “sobra”, aquele sem valor para a reprodução do capital, o refugo, as áreas de risco, contaminadas ou “protegidas” (e, portanto, sem valor comercial). É este sistema que deixa a maior parte da população mundial em condições precárias de habitabilidade.

Qualquer estatístico sabe que se o “desvio” na curva acomete a maior parte da amostra, o problema não está nos desviantes, mas na formulação da questão. Continuar planejando cidades sob o modelo de enquadrá-las nesta racionalidade está fadado ao insucesso. Isto é válido tanto para as cidades africanas, latino-americanas, asiáticas quanto europeias e estadunidenses.

Não por acaso, os habitantes dos bairros “ilegais” em Lisboa são, em grande parte, cabo-verdianos e seus descendentes ou africanos e afro-descendentes de um modo geral. Nos Estados Unidos, são os latinos e os negros. Correlativamente, no Brasil, as periferias são maioritariamente compostas por afro-descendentes ou, no caso da região sudeste, também por nordestinos. Ou, em Foz do Iguaçu, onde moro atualmente, muitos paraguaios habitam os bairros pobres da cidade. Isto não é casual e nem tampouco significa uma propensão das populações pobres à “ilegalidade”. De reparar que sempre com dois pesos e duas medidas.

As casas elegantes em locais mais “nobres” das cidades, igualmente podem ser enquadradas como irregulares/ilegais. Basta aplicarmos a lei com rigor e verificaremos que nem todos os proprietários têm os títulos dos terrenos, que nem todas as construções foram legalizadas, ou ainda que muitas tiveram licença para dois andares e construíram cinco, e assim por diante. Por exemplo, na cidade da Praia, como é que se pode permitir a venda formal de lotes para construção de habitação em espaços sem iluminação pública, sem abastecimento de água, com inadequações no sistema viário, com a ocupação de áreas de lazer por lotes privados, como é o caso da Cidadela? Existe uma real diferença (nos termos legais/ilegais e correlatos) entre Cidadela e os bairros “problemáticos”? Ou se trata apenas da capacidade econômica de seus habitantes? Lá, a relação estreita entre o poder de compra dos potenciais habitantes e as estratégias (também elas baseadas nesse poder económico) para resolver por meio de sua própria capacidade financeira a questão da compra de água, do fornecimento de energia e de transportes, se revelam intimamente ligados: compra-se a água pelo camião-tanque, a carência de energia e de transporte é superada pelo gerador privado doméstico, assim como os potenciais riscos associados à circulação pedonal pelas ruas (pouco, mal ou não iluminadas) são, em parte, minimizados pela circulação em viaturas pessoais.

Noutros termos significa dizer que a origem desta problemática está no nascimento e evolução do conceito de “propriedade privada” e da terra com valor de troca. Ao mesmo tempo, “surgem” aqueles que a podem possuir e aqueles sem acesso e, simultaneamente, nascem e emergem as fronteiras que separam os “legais” e os “ilegais”. Vale a pena lembrar que nos países outrora colonizados, como é o caso de Cabo Verde e do Brasil, realidades que conheço bem, o sistema colonial foi extremamente centralizador e hierárquico no que tange à propriedade da terra, criando mecanismos facilitadores para a formação de latifúndios por parte das elites administrativas. Em nenhum dos dois países, apesar das intenções associadas às políticas de reforma agrária, se conseguiu alterar radicalmente as modalidades de redistribuição de terras, de forma a ampliar e democratizar o acesso às mesmas.

Para aqueles que gostam de mirar para os Estados Unidos, é importante não perder de vista que este país realizou a sua reforma agrária em meados do século XIX. Thomas Jefferson já tinha feito emergir a questão quando, em 1862, Abraham Lincoln promulgou o Homestead Law: um mecanismo normativo que garantia o direito de qualquer cidadão requerer uma propriedade de até 160 acres de terra do Estado, com o pagamento de taxas subsidiadas. De modo semelhante, foi garantida a impenhorabilidade da pequena propriedade agrícola para, desta maneira, se consolidar a reforma agrária realizada, assim como possibilitar a estabilidade da família rural.

No Brasil, ao contrário, a Lei de Terras datada de 1850 (portanto, num país já independente, porém ainda de base escravocrata), proíbe o acesso a terras para aqueles impossibilitados de comprá-las à vista. Ou seja, por um mecanismo discricionário econômico, alijou do acesso à terra, os escravos, os alforriados e os imigrantes pobres recém-chegados ao país. A questão do acesso à terra no país nunca foi estruturalmente alterada.

Portanto, não é possível abordar a “problemática” apenas por meio dos efeitos (dos bairros pobres nas cidades contemporâneas), sem atentar para as suas causas históricas, isto é, para os motivos historicamente estruturais que as tecem.

O inominável: a urbanidade adequada e a habitabilidade imprópria

Alguns programas pontuais nos últimos anos têm efetivamente colaborado para melhorar as condições de vida de alguns bairros da Praia, realidade cabo-verdiana com a qual trabalhei até muito recentemente, sobretudo no que diz respeito à instalação de infraestruturas básicas (água, luz, saneamento). Todavia, o paradoxo é que tais projetos limitam-se às obras urbanas, gerando bairros infraestruturados com casas cujas condições de habitabilidade deixam muito a desejar (em termos construtivos ou superlotação dos espaços); desprovidas de facilidades de acesso aos serviços (nem sempre com condições de pagar por eles, já que não há, por exemplo, tarifação subsidiada e, muitas vezes, estes serviços essenciais foram privatizados). Evidente que há ganhos qualitativos com a infraestruturação do bairro. Por outro lado, estas melhorias que não incidem nas condições da moradia stricto-senso têm um efeito perverso: elas dissimulam os dados sobre a realidade urbana do ponto de vista da habitabilidade. Isto é, para o poder público estas localidades estão “resolvidas”, embora as pessoas continuem a morar mal, sem água ou luz (muitas vezes porque não conseguem pagar), em cômodos superlotados, em interiores quentes, abafados e sem ventilação.

Os direitos e o desenho do território

Reforma urbana e, consequenemente, reforma no sistema e nas modalidades de acesso à terra capaz de garantir a igualdade de acesso a todos, é o principal caminho para uma sociedade e cidade mais justas. Definir a função social da propriedade e priorizar a sua prevalência acima da função patrimonial. Coibir a especulação imobiliária, através de mecanismos como imposto progressivo no tempo e edificação compulsória, para citar alguns. Instituir um poder público capaz de contrabalançar os desequilíbrios históricos e mercadológicos, com base em instrumentos como a desapropriação para fins sociais e direito de preempção (preferência). Garantir e estimular a participação popular no processo de planeamento urbano, não apenas para referendar o que é decidido nos gabinetes técnicos, mas também para fazer operar uma participação real, efetiva e permanente da sociedade sobre o território. Prever e suscitar uma educação territorial e dos direitos à cidade que inclua a juventude (por exemplo, nas escolas). Considerar os desiquilíbrios de gênero e as práticas sociais que lhe são conexas que também incidem no desenho do território: em Cabo Verde, por exemplo, são as mulheres que mais despendem parte do seu tempo quotidiano na busca e transporte de água e, não por acaso, constituem a faixa predominante de abandono escolar e menores salários.

Em síntese, políticas urbanas multi-setoriais: que os pelouros da habitação, infraestrutura, juventude, gênero, emprego e cultura (em níveis locais e nacionais) tenham a capacidade de desenvolver ações conjuntas e complementares.

 

Nota 1: 

arquivos da autora, 2009 e 2010 

Fotos dos arquivos da autora, 2009 e 2010, da Achada Santo Antonio, bairro antigo e consolidado da capital, onde está parte dos edifícios governamentais, das agências internacionais, da elite local e onde é evidente não ser possível estabelecer com a clareza que o discurso impõe a fronteira legal/ilegal, regular/irregular, bom/problemático.

 

Nota 2: Gostaria de agradecer à OAC por permitir republicar este texto com base na entrevista concedida. Sou igualmente grata ao diálogo permanente e a leitura atenta destas questões por Victor Barros, doutorando da Universidade de Coimbra (Portugal) e investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, na mesma instituição.

 

Texto adaptado da entrevista feita pela Ordem dos Arquitectos de Cabo Verde, publicada na revista Arq&Urb: Cadernos OAC, n.01, jan-jun/13, p.41-42, sob o título: Défice Habitacional Em Cabo Verde: Que Soluções?

por Andréia Moassab
Cidade | 22 Agosto 2014 | Cabo Verde, Planeamento, território, urbanismo