Algumas linhas sobre a urbanização colonial em Angola

Estas brevíssimas reflexões resultam de diálogo profícuo com a arquiteta, professora e pesquisadora Manuela da Fonte, sobretudo a partir da sua tese de doutorado Urbanismo e Arquitectura em Angola: de Norton de Matos à Revolução, defendida na Universidade Técnica de Lisboa (Portugal) em 2007. Para além da agradável leitura, seu trabalho organiza um excelente material de pesquisa sob um primoroso rigor acadêmico. Das histórias não contadas na tese, vale a pena destacar a imensa dificuldade que é qualquer incursão pelos arquivos angolanos. Plantas, relatórios e documentos estão perdidos (e perdendo-se) pelas instituições, sem catalogação tampouco disposição adequada. É uma parte da história do país e da história da arquitetura e do urbanismo do século XX que literalmente desfaz-se.

Em um momento de inflexão teórica sobre os rumos do urbanismo do século XXI e os neocolonialismos contemporâneos, a recuperação deste material já é, per se, de valor inestimável. A arquiteta, contudo, brinda-nos com uma elegante apresentação, rica iconografia e profunda argumentação teórica, delimitando o quadro político e conceitual da atuação dos arquitetos e urbanistas portugueses em Angola. Na primeira parte da tese são apresentados o pensamento político e as políticas coloniais portuguesas no século XX, divididos em dois capítulos: contextualização política e social em Angola e correntes do pensamento urbanístico na Europa e Portugal e seu reflexo em Angola. A segunda parte da pesquisa escrutina o processo de ocupação do território em quatro capítulos, nos quais são analisados não apenas o território e o fenômeno urbano, mas a arquitetura, por meio das edificações e obras públicas, como parte indiscernível do mesmo projeto colonial1.

Finda a leitura do espesso volume, quatro questões emergem como fundamentais, sob o meu ponto de vista: (1) ocupação do território como instrumento de controle e poder; (2) a relação entre urbanismo e racismo; (3) urbanismo colonial higienista e a gênese da cidade “ilegal”; e (4) as diferenças da política de ocupação em Angola e Cabo Verde (onde residi e trabalhei nos últimos anos).

Mapa desenhado em finais do século XIX. Conhecido por mapa cor-de-rosa, representa a pretensão de Portugal sobre os territórios da África Austral, ligando Angola a Moçambique, sobre o que hoje são Zâmbia, Zimbábue e Malawe.Mapa desenhado em finais do século XIX. Conhecido por mapa cor-de-rosa, representa a pretensão de Portugal sobre os territórios da África Austral, ligando Angola a Moçambique, sobre o que hoje são Zâmbia, Zimbábue e Malawe.

Entendo que todo espaço urbano tem uma gramática própria que nos permite ler a sua história ou, nas palavras da autora, “as cidades são o reflexo das políticas que as conduzem” (Da Fonte, 2007: 154). Por sua vez o planejamento urbano nasce em fins do século XIX para controle deste espaço, como disciplina cujo objetivo era ordenar o rápido crescimento urbano observado nas cidades com a emergente industrialização, claramente vinculado a fins militares.

Em termos de paradigmas, pode-se sintetizar, grosso modo, quatro modelos de compreensão e intervenção nas cidades. As reformas urbanísticas da virada do século XIX, inspiradas no Plano de Haussmann para Paris, guiaram intervenções semelhantes em diversas partes, como a reforma Passos no Rio de Janeiro ou o Plano Noel, em Buenos Aires. No século XX, a arquitetura modernista e sua cidade funcionalista consolida a divisão territorial das cidades de acordo com as funções, conforme preconizado pela Carta de Atenas (Le Corbusier, 1983), cujo maior feito urbanístico é Brasília. Para os arquitetos modernistas, a cidade é traçada desde um “vôo de pássaro”, em perspectiva, sempre vista de fora e de cima. Há um descolamento da matriz modernista em relação à realidade urbana, a qual foi designada pela urbanista Ermínia Maricato (2001) de “matriz postiça”: debates e planos permanecem no mundo das idéias ignorando a prática social de ocupação do espaço.

Ademais, a matriz funcionalista colaborou imensamente para efetivar a política colonial na África, centrada nos planos urbanos para controle do território. Em Angola não é diferente e toda a minuciosa pesquisa da arquiteta revela-nos a importância dos planos urbanos para controle sócio-territeriol, o que foi, inclusive, mais sistemático justamente nos anos da guerra pela independência. A ocupação do território foi instrumento de poder e de dominação, em especial nos anos 60 e 70, em Angola e Moçambique.

Visita do presidente Américo Thomaz a Luanda, 1963. Fonte, FERNANDES, José et allii, 2010. Angola no Século XX, Cidades, Território e Arquitecturas. Lisboa, Printer Portuguesa. p. 14Visita do presidente Américo Thomaz a Luanda, 1963. Fonte, FERNANDES, José et allii, 2010. Angola no Século XX, Cidades, Território e Arquitecturas. Lisboa, Printer Portuguesa. p. 14

Outro ponto relevante para debate diz respeito à segregação racial traduzida na segregação espacial. Se o apartheid é uma politica de estado na vizinha África do Sul, as colônias portuguesas viviam sob o “mito multirracial”, como bem denunciou Amílcar Cabral (apud Andrade, 1978). Alicerçada sobre o discurso freyriano, a propaganda colonial salazarista construiu a imagem de que a dominação portuguesa seria assente numa miscigenação pacífica e na ausência de racismo. O “mito multirracial” é desconstruído, principalmente, com o discurso de Amílcar Cabral na ONU em 1962, quando é apresentada uma análise crítica do colonialismo português. Nos anos seguintes, Cabral continua a denunciar a violência colonial materializada nas precárias condições de trabalho nas colônias, no deslocamento forçado de trabalhadores entre as províncias, na exclusão dos negros e mestiços da administração colonial, na separação entre nativos e metropolitanos, inclusive no território, e, especificamente, no Estatuto do Indigenato2 (ibidem).

No caso do urbanismo do ultramar, igualmente estratégia colonial, estava claro tratar-se de um “urbanismo das cidades brancas”, termo bem empregado pela pesquisadora. A relação entre racismo e urbanismo emerge em diversos trechos de seu trabalho, entre os quais destaco: “num primeiro espaço temos a cidade dos brancos (objeto de processo de urbanização), num segundo espaço a cidade mista (espaço de integração racial), e em último lugar a cidade dos negros, com bairros indígenas (também estes por vezes objeto de urbanização), juntamente com os musseques, deixados em maior liberdade ou ao acaso” ou ainda “os planos serviam para criar bairros específicos para as várias raças, para criar estruturas urbanas diferentes para cada uma das expressões sociais e raciais, logo, para separar e não para unir” (Da Fonte, 2007: p. 148 e 156).

Planta de Luanda e seus satélites, 1942, bairro indígena em Luanda, anos 40 e 50. Fonte, DA FONTE, Manuela, 2007. Urbanismo e Arquitectura em Angola. Lisboa, UTL, p. 181 e 151.Planta de Luanda e seus satélites, 1942, bairro indígena em Luanda, anos 40 e 50. Fonte, DA FONTE, Manuela, 2007. Urbanismo e Arquitectura em Angola. Lisboa, UTL, p. 181 e 151.

Especificamente, em termos de desenho urbano, um detalhe chama a atenção no urbanismo colonial angolano: o princípio da cidade satélite. Com base neste princípio, o arquiteto Vasco Vieira da Costa, citado pela autora, propunha que se fizesse corresponder a cada núcleo habitacional europeu um tampão verde que o afastasse dos vários núcleos constituídos pelos bairros indígenas, “mas uma vez que a população destes bairros está ao serviço da população branca, o afastamento não deveria ser grande, para não tornar excessiva a distância entre casa e trabalho, apenas o suficiente para os mosquitos não passarem de um lado para o outro” (ibidem: 87).

Ora, esta visão higienista, ao invés de sanar o problema dos mosquitos no bairro indígena simplesmente se preocupa em afastá-los do bairro “branco”. Ou seja, levado ao extremo, o urbanismo funcionalista, quando analisado no contexto africano nos aponta sem dissimulações a origem do discurso e ações sobre o território ainda pautados pelo mesmo modelo, o qual separa física e simbolicamente a cidade “legal/formal” da “ilegal/informal” ou que designa os bairros pobres de bairros “problemáticos”3
. Esta grade analítica dicotômica tem perversamente responsabilizado mais de 2/3 da população mundial pelos problemas urbanos. Como pensar as cidades africanas (ou latino-americanas) dentro destes paradigmas? Ou ainda, qual a utilidade de enquadrar a maior parte dos bairros destas cidades como “ilegal”, segundo o modelo eurocêntrico? O principal problema de empregar uma matriz teórica inadequada à realidade é a grande influência que esta tem exercido no direcionamento de políticas públicas, as quais têm oprimido a maior parte da população pobre. Despejos e remoções forçadas são as principais resultantes dessas políticas.

Desenhos esquemáticos de cidades coloniais angolanas, com a localizaçãp ideal dos indígenas e europeus. Fonte, DA FONTE, Manuela, 2007. Urbanismo e Arquitectura em Angola. Lisboa, UTL, p. 86.Desenhos esquemáticos de cidades coloniais angolanas, com a localizaçãp ideal dos indígenas e europeus. Fonte, DA FONTE, Manuela, 2007. Urbanismo e Arquitectura em Angola. Lisboa, UTL, p. 86.

Finalmente, trazendo as reflexões de Angola para Cabo Verde, parece-nos que se a política colonial valorizava o caboverdiano em comparação com os demais africanos (Dos Anjos, 2000; Barros, 2009), esta não observou em seu território igual valorização. Por meio de um mecanismo discursivo a política colonial constrói o “mito da especificidade caboverdiana” (Barros, 2009), diferenciando hierarquicamente Cabo Verde dos demais países africanos como um meio para comprovar o “sucesso” da ação colonizadora portuguesa nos trópicos, tão bem sucedida que para muitos o arquipélago seria um prolongamento da metrópole (ibidem).


Contudo, esta diferenciação do cabo-verdiano pelo sistema colonial não foi traduzida em investimentos no arquipélago. Em outras palavras, enquanto Angola e Moçambique foram densamente infra-estruturadas com auto-estradas, ferrovias, barragens e inúmeras cidades planejadas, Cabo Verde jamais observou tamanho investimento em seu território, tampouco em equipamentos básicos como escolas (Dos Anjos, 2000). Tendo sido, em termos espaciais, praticamente um território esquecido. Se nas demais colônias vigorava a política da ocupação e fixação populacional, em Cabo Verde havia, ao contrário, um  incentivo para a emigração, reforçado pelas condições climáticas. Emigração esta que forneceu tanto administradores em postos de comando da estrutura colonial quanto mão de obra barata para as fazendas de São Tomé (e também de Angola) ou, ainda, para a construção civil em Portugal.

O desinvestimento colonial no território tem, certamente, seus efeitos nas configurações atuais das cidades caboverdianas, profundamente marcadas pela precariedade infra-estrutural. Do mesmo modo que em Angola a “cidade branca” separada dos bairros indígenas e dos musseques configuram até os dias de hoje o seu espaço urbano.

A história das cidades conta-nos sobre seu povo e sua cultura. Entender fenômenos complexos do espaço urbano contemporâneo passa, necessariamente, por uma compreensão alargada do seu contexto histórico-político.

 cartaz de evento contra desalojamentos forçados, realizado em Benguela, 2010. Fontes, Alfredo d’Amato, disponível em download.kataweb.it e Omunga disponível em www.por.habitants.org. cartaz de evento contra desalojamentos forçados, realizado em Benguela, 2010. Fontes, Alfredo d’Amato, disponível em download.kataweb.it e Omunga disponível em www.por.habitants.org.

Referências
ANDRADE, Mário (org.) (1978). Obras Escolhidas de Amílcar Cabral. Lisboa: Seara Nova.
ARANTES, Otília et alli (2000). A Cidade do Pensamento Único. Petrópolis: Vozes.
BARROS, Victor (2009). ‘Sob o Signo da Celebração do Império: o Discurso Colonial e o Mito da Especificidade Caboverdiana’. In: MWEWA, Muleka et allii (org). Sociedades Desiguais: Gênero, Cidadania e Identidades. São Leopoldo: Nova Harmonia.
DA FONTE, Manuela (2007). Urbanismo e Arquitectura em Angola: de Norton de Matos à Revolução. Lisboa: UTL. TD.
DOS ANJOS, José Carlos (2000). ‘Cabo Verde e a Importação do Ideologema Brasileiro da Mestiçagem’.
In:
Horizontes Antropológicos, ano 6, n. 14. Porto Alegre: UFRGS.
ELLEH, Nmandi. (2002). Architecture and Power in Africa. Westport: Praeger.
FERNANDES, José et allii (2010a). Angola no Século XX: Cidades, Território e Arquitecturas. Lisboa: Printer Portuguesa.
FERNANDES, José et allii (2010b). Moçambique 1875/1975: Cidades, Território e Arquitecturas. Lisboa: Printer Portuguesa.
LE CORBUSIER (1983). A Carta de Atenas. São Paulo: Hucitec.
MARICATO, Ermínia (2001). Brasil, Cidades. Petrópolis: Vozes.

Este texto é uma expansão de outro publicado em fevereiro de 2012 no blog Atitude.

  • 1. Para quem não tem acesso à tese, parte do trabalho foi publicado em co-autoria no livro Angola no Século XX: Cidades, Território e Arquitecturas (Printer Portuguesa, 2010).
  • 2. O Estatuto do Indigenato visava a “assimilação” dos indígenas (nativos africanos) na cultura colonial, oficializando a discriminação no regime através da divisão de três grupos populacionais: os indígenas, os assimilados e os brancos. Somente os assimilados, entre os não-brancos, tinham algum direito assegurado enquanto cidadãos.
  • 3. Menos usado no contexto brasileiro e latino-americano, a designação “bairro problemático” é de uso comum no contexto europeu, nomeadamente Portugal. Na sua quase totalidade os “bairros problemáticos” são habitados por africanos e seus descendentes.

por Andréia Moassab
Cidade | 15 Fevereiro 2013 | angola, Cidades, luanda, urbanismo