Fragmentos do Real. Entrevista Mário Macilau
Mário Macilau é um fotógrafo (de fragmentos) do real. Macilau é um contador de histórias, e enquanto narra, através das suas imagens, medita acerca do ambiente social, político e económico do seu país e do mundo – para os quais olha de forma nua, crua, sem artifícios. Como o próprio afirma, não encena nem desenha o momento fotográfico. As suas imagens são instantâneas. Ele não as procura, encontra-as. Aproxima-se, com a sua câmara, das inúmeras personagens anónimas que povoam os seus registos – interessam-lhe o movimento do homem contemporâneo e a relação deste com o espaço. O corpo torna-se, assim, protagonista, sem artefactos, das realidades que captura.
Há nos instantâneos um silêncio, que se faz presente, e que retém o nosso olhar. Esse silêncio leva-nos a penetrar na intensidade das imagens e na força dos temas. As fotos de Macilau contam, como que por acaso, histórias distantes e distintas.
Através das suas imagens dá-nos a conhecer um bocado do Mundo. De uma parte do Mundo.
Fotografia de Mário Macilau.
Mário, como entrou a fotografia na tua vida?
Eu não escolhi ser fotógrafo, a fotografia entrou na minha vida e eu recebi-a. Através das minhas fotografias acredito que posso pelo menos fazer alguma coisa pelo mundo; não simplesmente porque tenho talento, mas sim pelas características do nosso espaço. Uso a fotografia como um meio de expressão criativa e ativa. A minha vida é feita da fotografia: sessenta segundos por minuto, sessenta minutos por hora, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trinta dias por mês e trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Sempre a pensar na fotografia e no que tenho fotografado! Não escolhi ser fotógrafo. Não sei se seria ideal dizer que foi o destino – na verdade nem sei se acredito no destino.
As tuas fotografias são sempre reflexo das tuas angústias e reflexões acerca dos homens. Concordas com esta afirmação?
Exploro o movimento do homem no tempo e no espaço. Não sei o que irei fotografar amanhã. O meu olhar funciona como uma câmara.
A maioria dos teus trabalhos insere-se num contexto de dificuldade e pobreza. Porquê? O resto está fora de campo?
Essa é uma pergunta muito interessante. As pessoas escolhem o que querem ver. Eu vejo as pessoas como pessoas e não como pobres. Quero falar do meu povo, dos que não têm voz, daqueles cujas vozes são esquecidas.
Antes de fotografar, desenhas as situações ou improvisas para a câmara?
Interessa-me a realidade, e as situações que se podem encontrar nas minhas fotografias são captadas de forma natural.
Fotografia de Mário Macilau.
Fotografia de Mário Macilau.
Como surgiu a ideia da série Os Maziones?
Trabalho muito como assistente de fotógrafo. Algumas pessoas, principalmente europeus, querem fotografar em Moçambique mas precisam de um consultor, assistente, tradutor, guia… Um dia, um fotógrafo inglês quis fotografar antes do nascer do sol na Costa do Sol, em Maputo; quando cheguei, vi muito movimento na praia, estava cheia de gente com roupas coloridas, cruzes, animais, havia gritos e vi o que me pareceu um batismo, que fotografei pois era tão interessante. O fotógrafo inglês perguntou-me: “Porque fotografas isso? Ninguém vai estar interessado!” Mas para mim aquele momento mostrava um outro lado da vida. Não faço fotos para agradar mas sim para levar ao mundo a voz daqueles que têm menos voz.
Procuraste comunicar com eles?
Para mim é vital conviver com as pessoas com as quais me cruzo: deixo-as entrar dentro de mim, e eu dentro delas… Por fim capto-as, jogando um jogo entre a luz e a lente.
Muitos críticos e estudiosos consideram que a fotografia é sempre ficcionada pois parte da interpretação do fotógrafo acerca da realidade que observa através do olho da lente. Concordas com esta afirmação?
É o meu olhar sobre a realidade… Uso a fotografia como meio de intervenção social. Interessa-me explorar a realidade do espaço e os seus movimentos. Recordo algumas palavras de Steve McCurry: “Many of us are in a position to help others, but few of us are aware of what we can do – or what a difference our contribution can make. I hope my photographs help people become more informed.”1 Exploro a fotografia de forma natural… Pretendo criar tantas mensagens!
Como foi o teu encontro com a comunidade de Makoko, em Lagos, na Nigéria, que apresentas na série Wood Work?
O meu encontro com a Nigéria foi muito bom e ao mesmo tempo muito difícil; principalmente por causa dos area boys (também conhecidos por “agberos”). Em Lagos, encontram-se muitos bairros que são controlados por estes gangs de adolescentes que andam pelas ruas a extorquir dinheiro às pessoas, a vender drogas e outros serviços a troco de dinheiro. Mas antes de partir para a Nigéria já tinha feito uma pesquisa sobre o que eu queria; assim foi mais fácil encontrar estratégias para trabalhar. Vesti-me de marginal, sujei a minha câmara, conheci e conversei com muita gente para conquistar boas amizades, inclusivamente de alguns chefes da área. E depois disso tudo foi muito bom… O mais importante é ter carácter e ser simpático com as pessoas. Já conheci muitos fotógrafos que gostam muito de pensar que são especiais… Entendo essa postura como uma barreira para trabalhar com as pessoas em geral.
Fotografia de Mário Macilau.
Vives inquieto com as situações que fotografas?
A minha angústia não vem das situações que tenho fotografado. A minha angústia vem do que os meus olhos têm visto em geral. Todos os dias o mundo caminha, e tenho analisado a sua caminhada para, no fim, ver o seu destino. Vivemos de uma forma estranha; a grande maioria das pessoas não parece importar-se com o que acontece com os outros, nem pelo mundo em geral. Há ódio no coração do homem. Ódio racial, luta pelo poder político e económico. Já viste até que ponto as nossas diferenças podem ser tão grandes? Já imaginaste a diferença que um dólar pode fazer na vida das pessoas? Enfim, nas minhas fotos eu busco vidas, caras lindas que têm alma. Gosto de mostrar ao mundo as caras das pessoas que normalmente não aparecem.
Em algumas séries usas o preto-e-branco, noutras a cor. Como fazes as tuas opções?
Pensamos nas coisas sobre diversas formas. Quando penso no passado penso em cinza. As coisas mudam, os espaços alteram-se… Agora penso mais na cor, vejo as coisas cheias de vida.
Fotografaste então a série Wood Work na Nigéria a preto-e-branco porque te remetia para o passado?
Sim. Fotografei aquelas pessoas na Nigéria porque vivem sem condições, não têm nada, nem uma parcela de terra. Olhei e fotografei a preto-e-branco, foi um ato espontâneo.
O que representa o “outro” para ti?
O que seria do “outro” sem mim ou que seria de mim sem o “outro”? O homem é o que é porque existe outro homem.
O título que dás às tuas fotografias é objetivo, direto. Não acreditas no poder das palavras?
Acredito no poder das palavras, mas também acredito, em contrapartida, que uma imagem fala mais que mil palavras. Para mim a fotografia é a poesia da imobilidade: é através da fotografia que os instantes se deixam ver tal como são, é através da fotografia que os outros aprendem algo sobre realidades que nem sequer tinham imaginado. É através das minhas fotografias que consigo construir versos, estrofes, através da forma como a luz reflete… Contando histórias que por vezes estão bem perto de nós mas que não conseguimos ver. Com a fotografia entendemos e refletimos melhor acerca da realidade.
Em algumas fotografias o teu ponto de vista é o do voyeur, aquele que olha, espreita. Concordas com esta afirmação?
Não, de maneira nenhuma. Não existe nenhuma fotografia feita à distância porque gosto de criar uma relação entre a minha máquina e as pessoas que fotografo. Não roubo quando fotografo pois falo com as pessoas, inteiro-me das suas vidas esquecendo a minha própria vida. Tenho fotografado de perto, uso uma lente de grande angular 16-35 mm ou 18-55 mm, uso raramente uma 70-105 mm (apenas quando quero um efeito nas laterais e no background).
Em que critérios te baseaste para selecionar as fotografias para esta exposição e catálogo?
É uma seleção muito pessoal de alguns do meu trabalho; baseei-me sobretudo na mensagem. Apresento sobretudo situações que muitos desconheciam, quero que os espectadores olhem e pensem nelas. Na primeira parte do catálogo apresento um projeto sobre os Zionistas (popularmente conhecidos por Maziones), membros de uma religião tradicional com alguma adesão em Moçambique. A maioria dos seus membros vive em zonas rurais ou na periferia das grandes cidades. Não têm geralmente acesso aos hospitais e é por isso que invocam o Espírito Santo e a cura divina efetuada por meio da sua ação milagrosa. Fazem cerimónias como a do batismo e praticam rituais que envolvem o sacrifício de animais. A igreja Zione é estruturada em torno da figura do pastor (mifundisi, em Tsonga), que possui vários dons e preside às cerimónias. A segunda parte do catálogo é composta por fotografias feitas na Nigéria, em Makoko, uma favela em Yaba, nos arredores de Lagos. Neste país com petróleo, a compra de uma parcela de terra pode custar milhões de dólares. Assim, muitas pessoas sem casa, nem condições, criaram um bairro dentro do mar constituído por barracas de madeira e zinco sobre palafitas. A água poluída é a única via de comunicação, e os barcos o seu único transporte. As suas vidas dependem da água e da madeira. Mas a atividade madeireira e a poluição das águas cria sérios danos para o ambiente principalmente pelo abate sistemático de árvores. No geral também me preocupei muito com determinados aspetos técnicos. A luz é muito importante nesse contexto.
Fotografia de Mário Macilau.
Fotografia de Mário Macilau.
Como olhas para o teu futuro enquanto artista?
Não sei, na verdade estou mais preocupado com o presente do que com o futuro, e a minha grande preocupação é o meu trabalho. Tenho dado o meu melhor apesar de todas as dificuldades com que por vezes me deparo mas, como diz a sabedoria antiga: “quem planta, colhe”.
Qual é o teu lema de vida?
Não se vive intensamente quando se vive apenas para nós próprios; somos pessoas porque existem outras pessoas. Algumas vezes intuímos que devemos fazer qualquer coisa semelhante a plantar uma árvore, mesmo sabendo que nunca comeremos dos seus frutos nem descansaremos à sua sombra. Ou descobrimos que devemos dedicar-nos não apenas aos nossos pequenos problemas, mas a reconstruir as inúmeras ruínas nos rodeiam. E é nesse momento que nos tornamos grandes. E nunca como então estamos tão perto de nós mesmos.
Vilamoura, 15 de novembro de 2010
Entrevista publicada no catálogo da exposição BES Photo 2011, Co-edição: Banco Espírito Santo / Museu Colecção Berardo, Lisboa, 2011.
- 1. “Muitos de nós estamos em posição de ajudar os outros, mas poucos de nós temos consciência do que podemos fazer – ou da diferença que a nossa contribuição pode fazer. Espero que as minhas fotografias ajudem as pessoas a ficar mais informadas.”
