Torpor da nova poética cabo-verdiana

À necessária exegese a que nos convidou o Museu de São Roque, colocando a África e a Cultura no centro da reflexão e do debate, será mais um importante contributo para, juntos e de mãos concêntricas, pensarmos a Cultura, ou se quisermos as Culturas Africanas na sua condição estruturante e na sua realidade circunstancial.

Participar da reflexão e do diálogo em torno da produção cultural africana na contemporaneidade, em particular nos países de língua oficial portuguesa, constitui uma forma de darmos o nosso modesto contributo para o problematizar à luz das outras culturas do Mundo, nomeadamente, quando por indicação do presente enfoque, das Culturas de matriz Ocidental.

Cientes de que os encontros não são inocentes, nem derivam de insólitos, mas sim resultantes de opções e de escolhas, pelo que afirmam produções de pensares e de saberes em prol de causas e de objectivos pré definidos. Por conseguinte, o apelo do Museu de São Roque para que reflictamos e debatamos Africanidades, suas correlações e articulações - abrindo espaço para que, no vaticínio de Amílcar Cabral, o possamos fazer com as nossas próprias cabeças -, é importante, relevante e consequente. Este apelo vem resignificar, de forma muito particular e assertiva, a razão efectiva (e não inocente, repita-se) de estarmos aqui e agora neste encontro.

Perante temática tão vasta quão caudalosa, guardarei as minhas margens pela literatura cabo-verdiana, onde me encontro, com ressalva de escritor, puro esteta se preferirem, e não como estudioso, campo de labor de personalidades como Simone Caputo Gomes, Alberto Carvalho, Elsa Rodrigues, José Luís Pires Laranjeira, Fátima Fernandes, Benjamin Abdala Jr., João Lopes Filho, Manuel Brito-Semedo, Ricardo Riso e José Luís Hopffer Almada, entre vários outros pesquisadores, estudiosos e ensaístas que tanto admiro. A mesma admiração que em mim percorrem os textos críticos sobre as letras cabo-verdianas de Jaime de Figueiredo, Amílcar Cabral, Manuel Duarte, Onésimo Silveira e Manuel Ferreira, sobre outros prismas e por outas temporalidades.

Não sendo apologista de classificar a Literatura Cabo-verdiana pelo viés cronológico, nem acreditando haver suficiente virtude que a literatura em Cabo Verde esteja estratificada em três grandes períodos – pré-Claridoso, Claridoso e Pós Claridoso -, quero crer que há outras e múltiplas formas de olhar esta produção literária que, há mais de dois séculos, tem vindo a marcar o seu espaço no contexto da lusofonia e que, desde a Independência Nacional, há pouco mais de trinta e seis anos, se densifica por produções mais modernistas e mais «aggiornadas» com as letras de recorte universalista.

Abordo aqui de uma literatura que não se pontifica como pós Claridosa, mas que é assumidamente não Claridosa, isto é que não tem a Claridosidade como seu eixo central e muito menos seu fio condutor. Aliás, esta não é apartada daquela, em sua correlação, mas, fazendo jus a alguma identidade, o dom de não ter mote, nem modo claridosos, não se policiando pelos cânones nem dos precoces nativistas, parnasianos e românticos, nem dos realistas, neo-realistas e nacionalistas que compõem as várias gerações que trocam testemunhos na brilhante estafeta do fazer literário até os anos setenta do século XX.

Mesmo a geração transicional do Cabo Verde colonial ao Cabo Verde soberano – onde se pontificam escritores como Mário Fonseca, Arnaldo França, Oswaldo Osório, Onésimo Silveira, Joao Vário, Corsino Fortes e Arménio Vieira -, ao cumprirem a travessia da Independência Nacional, refazem o seu lócus poético que já não fica incólume à nova realidade/ambiente, que entorna o esteta das letras.

Tal geração, assumindo novas trincheiras da alma, tal qual no-la explica Octávio Paz, em «O Arco e a Lira», se torna demiurgo de uma nova luz que questiona a escuridão geral do universo pós Independência. E faz, por ventura nossa, a tormentosa pergunta (o que é a poesia?), e todas as respostas levam-na a uma interrogação ainda mais esfíngica, porque ontológica e existencial. Uma pequena incursão pelo livro «Mon Pays Est Une Musique», de Mário Fonseca, nos deixa perceber que os novos sangramentos da alma poética crioula já são de dilema entre a comunhão ontológica e a alteridade existencial.

E o que acontece depois do Movimento Pró Cultura, nova primavera literária cabo-verdiana, liderada em meados dos anos 80, do século passado, por José Luís Hopffer Almada?

Ainda sem estudos consequentes (tanto da academia, como da fortuna crítica), deste Movimento de maior respaldo cultural no período pós Independência, dele resultam alguns dos poetas cabo-verdianos do momento, tais como o próprio Hopffer Almada, Daniel Spinola, Jorge Carlos Fonseca, Filinto Elísio, Mário Lúcio, Valentinous Velhinho, José Vicente Lopes, António de Névada e José Luís Tavares, entre os mais conhecidos. 

O Jornal Arteletra, o Caderno Folha de Letras do Jornal Voz di Povo e as revistas Fragmentos e Sopinha do Alfabeto, mas antes Ponto & Vírgula, importantes publicações literárias (et pour cause, culturais) cabo-verdianas revelaram talentos surpreendentes, como o de Germano Almeida, Jorge Carlos Fonseca, Vera Duarte, Oswaldo Osório, Arménio Vieira, Vasco Martins, José Vicente Lopes, Luís Silva e Mário Lúcio, por exemplo.

s.vicente, fotografia de Daniel Blaufukss.vicente, fotografia de Daniel Blaufuks

Já a revista Raízes disseminou poetas como Corsino Fortes, João Varela/G.T.Didial, Arménio Vieira, Vera Duarte, Oswaldo Osório ou Paula, pseudónimo de Paula Vasconcelos.

Apesar de propostas e projectos literários ousados, crê-se ainda cedo para assegurar a grandeza desta nossa nova geração. Entretanto, se declinasse as minhas preferências por dois poetas cabo-verdianos, eu não teria dúvida de incluir entre eles o nome do meu contemporâneo José Luis Tavares.

A sua obra, desde O Paraíso Apagado por um Trovão, induz-me a que nela encontre a moldura para espelhar a dimensão desta nova geração consolidada à margem do rio Claridoso, tendência nascida de alguns da geração da transição como em João Vário, Arménio Vieira, Mário Fonseca e Corsino Fortes.

Estes se posicionam, de uma banda, no lapidar da palavra pela impassibilidade, resistência à porosidade, com alguma impermeabilidade ao sentimentalismo nas suas toadas e, de outra banda, se alinham na concepção da palavra enquanto organismo vivo: a palavra-homem, a antropo-palavra, a palavra-vegetal, a palavra-animal, biodiversidade em toda a dimensão, inclusive social e política.

Resume-se que seja uma geração presente e premente, uma geração ainda «on call», de modo que, mau grado alguns rasgos que nos interpelam à euforia, não nos impressionemos com as análises apressadas, com a troca de favores valorativos da imprensa e com os circuitos de marketing editorial, ora que se nos afrontam a Academia de Letras Cabo-verdianas (ideário a ser projecto) e a feitura da História da Literatura Cabo-verdiana, já de conhecimento público. Aqui as escolhas precisam ser cuidadosas e ponderosas para que não tenham efeitos perversos e turvem a água benta da literatura que os cabo-verdianos hoje fazem.

Certo é que o artesanato dos novos poemas está seguramente comprometido com os padrões de qualidade da modernidade literária. Portanto, estão aqui uns cabo-verdianos não claridosos que fazem uma poesia inquieta e inquietante, que levam os leitores a olhar Cabo Verde, através do texto, com seriedade e ansiedade.

Sereno e ciente de ficar aquém do que se espera de um texto de estudioso, pois que, para meu alegre espanto, os novos dados são o afrontamento permanente. Leio Cabo Verde: Antologia da Poesia Contemporânea, de Ricardo Riso, com a participação de «novos poetas»: Carlota de Barros, Danny Spínola, Dina Salústio, Margaridas Fontes e Maria Helena Sato.

Antes, tivera em mãos «Destino di Bai: Antologia de Poesia Inédita de Cabo-verdiana», de Francisco Fontes, com Carlos Araújo, Eileen Barbosa, Paulino Dias, Anita Faria, Tchalê Figueira, Margarida Fontes, Adriano Gominho, Lay Lobo, , Chissana Magalhães, Jorge Miranda, Valdemar Pereira, Maria Helena Sato, Luiz Silva, Artur Vieira, José Maria Neves e Elisa Schneble. Novos fluíres poéticos, em que os originários do Movimento Pró-Cultura - alguns: Danny Spínola, Filinto Elísio, José Luís Hopffer Almada, Mário Lúcio Sousa, José Vicente Lopes, Kaká Barbosa, Vasco Martins, G. T. Didial, Arménio Vieira, Oswaldo Osório e Jorge Carlos Fonseca, e também do “movimento” actual dos blogues literários – outros, onde se incluem Paulino Dias, Chissana Magalhães, Lay Lobo, Eileen Barbosa e Margarida Fontes – há sim clara imparabilidade das letras cabo-verdianas.

Despretensioso, humilde e talvez imperfeito, ficam estas linhas, mera tentativa de fixar um olhar novo, e quem sabe diferente sobre as letras cabo-verdianas, que é rica hoje por ter a Claridade e a Não Claridade, algo que ainda escapa à generosidade de um certo olhar que insiste no exotismo e no folclorismos para com a escritas dos nossos homens grandes, como o foram outrora Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Baltazar Lopes, Jorge Barbosa, Gabriel Mariano e Ovídio Martins e ora são Arménio Vieira, Oswaldo Osório, Corsino Fortes, Jorge Carlos Fonseca, José Luís Hopffer Almada, Mário Lúcio, Valentionous Velhinho e José Luís Tavares.

E será com esta nova gente que nos alinhamos na nova África, na renascença de uma Africanidade diferente, outra e emancipada, que não tem pejos, nem esteios de colonizados, nem complexos encravados de identidade; será com esta gente de liberto pensamento e de discurso livre, enquanto África múlplica e plural, ao tempo que assume suas especificidades, que nos assumimos, transculturais e mestiços, prontos para a intermediação do diálogo entre todos os mundos, inclusive com aquele que também nos é de pertença, que é o da Cultura de matriz Ocidental, pela sua vertente também da lusofonia, pátria maior de Fernando Pessoa e de todos nós poetas que inquilinos também desta língua que transcende.

Espero ter entrado na essência da questão, com a antropofagia que me move, enquanto ser cultural dos mundos, ou bem no diapasão do poeta Manoel de Barros, um dos expoentes que me ilumina, em como «Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto».

por Filinto Elísio
A ler | 2 Outubro 2011 | africanidades, literatura caboverdiana, poesia