Luandino Vieira

Nos últimos tempos, Luandino Vieira ganhou dois prémios. O primeiro foi o Camões, que ele recusou. O segundo foi o Prémio Nacional da Cultura, atribuição que pecou pelo atraso, mas a qual, no entanto, deixou saber que estaria muito contente de receber. Nenhuma das distinções lhe foi atribuída por uma obra escrita nos últimos tempos, mas pela totalidade da sua produção e pelo lugar que ocupa na escrita em língua portuguesa.

fotografia de Kiluanji Kia Hendafotografia de Kiluanji Kia Henda

Luandino Vieira é caso paradigmático do divórcio entre interesse do público e ensino de literatura. Conheci muito pouca gente que tivesse conseguido ler Luandino Vieira, tirando naturalmente os escritores que assumem terem sido influenciados por ele, como Albino Carlos, Ondjaki, ou o moçambicano Mia Couto. Quando andei no ensino médio, em Luanda, mesmo nos níveis mais avançados de cadeiras como Literatura e Cultura Angolanas, ministrada pela falecida Gabriela Antunes, não passávamos de Cidade e a Infância: um verdadeiro bê-á-bá na obra luandina, a primeira colectânea de contos, publicada pela Casa dos Estudantes do Império antes de, em 1961, ter sido encarcerado pela PIDE e acusado de associação em actos terroristas.

Se, para um leitor médio, a leitura dos livros de Luandino Vieira pode ser difícil e enfadonha, o mesmo já não se passa com os críticos. Vieira serve muito bem os intentos daqueles que gostam de ler com lápis, a desenhar grelhas para colocar as palavras por ordem. À semelhança dos entomologistas que se dedicam a identificar insectos, o exercício do crítico literário pode ir ao ponto de saber identificar, ou arrumar por grelhas de análise, em que parte da obra do escritor angolano aparece uma «parifrástica diglossia», ou em que momento o autor «deleita numa sintaxe expeditiva».

 A literatura africana, em muitos casos, não é lida nas grandes universidades como documento artístico. É antes lida como fonte para a análise sociológica. São poucos os escritores africanos cujas obras possuem, por um lado, o sentido do concreto que a torne o produto de uma realidade específica, e, por outro, a abstracção suficiente que a torne generalizável e radicável em vários aspectos da condição humana, independentemente da geografia em que se inserem. É assim com os clássicos. A Odisseia, de Homero, apela aos leitores de várias épocas, precisamente por ser reactualizável; ou seja, é uma história cujas implicações morais se adaptam a todas as  sociedades e todos tempos.

Hoje, há mais de 30 anos do auge da produção da obra de Luandino Vieira, fico com a impressão de que o tempo jogou a seu desfavor. Permite poucas leituras que não se reportam ao contexto, colonial, que lhe deu origem. Se juntarmos a isso a escrita barroca em que Vieira se encerra compreende-se a razão por que grande parte da sua literatura é de difícil digestão. Luandino Vieira voltou a publicar com o seu De Rios Velhos e Guerrilheiros, quase 30 anos depois do último livro original dado à estampa. É como se estivesse a praticar uma arte antiga, cuja técnica há muito caiu em desuso, como o verso alexandrino. Ou, no máximo, como se estivesse a fazer pastiche da sua própria obra. Como se isso fosse tudo o que lhe restasse fazer.

Muito poucos autores são produto dos contextos em que escreveram as suas obras como Luandino Vieira. Sem os anos de cárcere não teria tido a possibilidade de se isolar de Luanda e descrever o seu quotidiano sem a interferência deste, descobrindo o seu próprio caminho literário através da leitura de Guimarães Rosa. E sem reclusão não teria Uanhenga Xitu ao pé de si, o seu guia nos arcanos do quimbundu. O seu amadurecimento literário torna-o uma espécie de Conde de Monte Cristo. E isso, de duas formas. Não é apenas um escritor com mais de meia dúzia de livros que sai da cadeia, mas é também um cidadão angolano. Daí que as primeiras edições das suas obras, pelas Edições 70, referem que foi pela participação no movimento de libertação nacional, grande parte da qual como preso político, que se tornou angolano.

As circunstâncias em que produziu a sua obra talvez ajudem a explicar o seu silêncio de quase trinta anos. Pelo menos não mais da forma que o caracterizava. E não é que tivesse desistido de escrever. Lembro-me de que há muitos anos, quando andava no curso de jornalismo, fui com mais colegas entrevistá-lo para uma disciplina sobre Literatura e Disciplina Angolana. Na altura era secretário-geral da UEA. Luandino Vieira, de forma simpática e, sem dar muitos pormenores, disse que estava a trabalhar num romance que se chamaria Viagem ao Fim do Sonho.

Viagem ao Fim do Sonho. Ainda não tinha na altura lido a saga de Ferdinand Céline, Viagem ao Fim Da Noite, um verdadeiro documentário sobre a desilusão de uma geração destruída pela I Guerra Mundial. Não me foi difícil perceber que Luandino Vieira estava a contas com a sua própria desilusão, quando mais tarde li a saga de Ferdinand Céline com o mesmo título. A mesma que já tinha sido expressa de uma forma ou outra por autores do seu grupo. E foi sob este prisma que li De Rios Velhos e Guerrilheiros.

E é precisamente este sentimento que tentará capitalizar na redacção da história dos seus guerrilheiros. Por todo o livro perpassa o mesmo tom de misto de ternura e ingenuidade. E o mesmo piscar de olho ao leitor. É a leitura do deslumbramento. A forma sobre o conteúdo. Se narração for o uso das palavras mais simples, das expressões mais significativas, para que a forma como se conta não interfira com aquilo que se quer contar, Luandino Vieira provoca demasiado ruído. Ele escolhe falhar na tradução. Porque não delimita os níveis de interpretação que a sua obra suscita. Nos seus livros a palavra não é recurso para mediar a compreensão, tornando inteligível aquilo que se descreve. É pelo contrário fonte de deleite em si. É como se o ruído, por interromper a comunicação, a partilha de significado, se tornasse o próprio objecto de fruição literária. 

 

retirado do livro Poligrafia: das páginas de jornais angolanos, Casa das Ideias

 

 

por António Tomás
A ler | 26 Fevereiro 2011 | jornalismo, literatura angolana, luandino vieira, movimento de libertação nacional