Introdução a 'Dos Sonhos e das Imagens: a Guerra de Libertação na Guiné-Bissau'

A 24 de setembro de 1973, em Lugajol, região do Boé, território formalmente ainda sob o domínio colonial português, foi proclamado o Estado da Guiné-Bissau. Nesta cerimónia, foi declarada a independência do território guineense, conseguida através de uma das mais bem-sucedidas lutas de guerrilha do continente africano. Esta luta foi conduzida pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo-Verde (PAIGC), liderado por Amílcar Cabral, uma das figuras mais emblemáticas das lutas anticoloniais, não obstante as inúmeras controvérsias por si protagonizadas dentro do próprio partido. 

Os sucessos militares e políticos alcançados tornaram este movimento num exemplo revolucionário, razão pela qual mereceu um notório interesse das vanguardas que, à época, apoiavam as lutas anticoloniais[1]. Foram vários os jornalistas, fotógrafos e cineastas, sobretudo de países ocidentais, que visitaram as zonas libertadas a convite do PAIGC, transportando-as até à comunidade internacional através de livros, manifestos e imagens. Colaboraram ativamente com uma das mais importantes armas do PAIGC, o sistema de propaganda criado e gerido pelo departamento de Informação, Cultura e Propaganda sob supervisão permanente do líder Amílcar Cabral, que dedicou especial importância à produção de imagens. 

Amílcar Cabral com grupo de jovens combatentes que receberam treino militar na China, 1961-65. Arquivo Casa ComumAmílcar Cabral com grupo de jovens combatentes que receberam treino militar na China, 1961-65. Arquivo Casa Comum

Este livro é sobre as imagens produzidas no decorrer da Luta de Libertação na Guiné-Bissau e particularmente sobre os filmes documentais. Genericamente, estes filmes mostram como o PAIGC desenvolvia uma ação militar eficaz contra o exército colonial português enquanto construía uma nova sociedade, nas zonas libertadas, precursora da nação por vir. Enquanto instrumento de Luta, o cinema tinha por missão primeira construir uma memória documental e, em última instância, um arquivo; isto é, o que deveria ser dito no futuro sobre o presente quando este se tornasse passado. Por esse motivo, mais do que ver o que aconteceu, estas imagens permitem-nos aceder ao que foi imaginado como o futuro pós-independência. 

As imagens endereçam um convite para realizar um trabalho de memória que, por sua vez, é um trabalho com e sobre o futuro, sendo a própria imagem que estabelece uma sincronização entre o que foi e o que será. Logo, aceder a um passado através das suas imagens implica percorrer um trajeto entre as diferentes temporalidades que não estão necessariamente alinhadas com a historiografia oficial. Estas questões adquirem contornos mais complexos quando se trata de imagens de propaganda construídas em processos revolucionários que visaram transformar uma ordem política vigente. Somos confrontados com o poder alegórico e político das imagens, o que nos conduz a uma descodificação das mesmas, como se de uma escrita encriptada se tratasse. Este é um trabalho de escrutínio que implica não apenas comparar as imagens com outras evidências empíricas, outras fontes ou testemunhos, mas, acima de tudo, um processo criativo prospetivo, muito próximo da experimentação, que recorre à imaginação, à especulação e ao anacronismo. 

Num período histórico ideologicamente bipolarizado pela Guerra Fria, estes filmes procuravam demonstrar que a Luta de Libertação veiculava princípios e valores que se batiam pela transformação social, económica e política por via da luta de classes e da descolonização. Na generalidade, são imagens que nos mostram a figura do heroico combatente pela liberdade do terceiro mundo. Apelam aos valores éticos e morais difundidos pelo PAIGC e aos progressos sociais que a criação de algumas estruturas de ensino, de cuidados médicos e de apoio à atividade agrícola trazia às populações. Porém, se nas décadas de 1960 e 1970 o mundo desenvolvido assistiu ao poder do nacionalismo enquanto força libertadora, na década de 1980 assistiria ao seu inverso[2]. Poucos anos após o fim da guerra, outras narrativas começaram a caracterizar a Guiné-Bissau. Por motivos políticos que serão mencionados e debatidos ao longo deste trabalho, as estruturas sociais criadas nas zonas libertadas foram enfraquecendo gradualmente, tornando-se residuais. Seis anos depois da independência, em 1980, ocorreria o primeiro de vários golpes de Estado que têm bloqueado a possibilidade de uma governação política estável, estando a ameaça da guerra sempre presente, situação agravada desde a guerra civil de 1998/1999. Foi, entretanto, atribuído o rótulo de «falhado» ao Estado guineense[3], conceito cuja colonialidade proponho debater[4]

Esta investigação é movida pela vontade de compreender como uma imagem provoca outra, dispositivo fundamental da linguagem cinematográfica. Concretamente, como as sucessivas crises e a instabilidade política procederam uma Luta de Libertação particularmente promissora que assegurava estar a ser construída uma auspiciosa sociedade nas zonas libertadas. Para tal, importa considerar quem é que, antes e depois da independência, reclamou o poder de construir todas estas representações, quer as de sucesso quer as de fracasso. Trata-se de debater a legitimidade e a autoridade que os processos históricos adquirem quando se tornam visualmente percetíveis[5].

Importa então questionar se foi o imaginário à época construído, imbuído de esperanças emancipatórias, que conduziu a que o pós-independência fosse concebido como uma desilusão, uma promessa que fracassou, ou se são as difíceis condições sociais, económicas e políticas que a Guiné-Bissau tem atravessado desde então que transformaram a narrativa da Luta numa promessa quase messiânica. Procura-se então compreender como o cinema construiu políticas de representação definidores de modos de filmar a Luta que ocultaram mecanismos capazes de explicar a instabilidade política que, desde então, tem caracterizado o Estado guineense. É que se hoje o Estado guineense é rotulado de «falhado», não deixa de ser relevante que aquele que se estava a construir no decorrer da Luta seja a constante discursiva recorrente nas narrativas fílmicas. Torna-se então fundamental questionar o papel do Estado enquanto referencial político.

Paralelamente, este trabalho propõe ser um contributo para a ampliação dos debates sobre a memória da Luta de Libertação e das razões pelas quais continua a ser um tema particularmente sensível no presente. Sensibilidade que se deve ao facto de existirem projetos políticos, e consequentemente sujeitos históricos, excluídos na Guiné-Bissau enquanto comunidade política imaginada[6]. Procurei assim aceder a outras narrativas que colocam em causa a história da Luta de Libertação enquanto momento fundacional da nação celebrada na frase «Nação Africana Forjada na Luta»[7]. Tal permitirá discutir os múltiplos sentidos da palavra descolonização, desdobrando-a, num primeiro momento, em duas ópticas: a portuguesa, que, como qualquer metrópole, assume a descolonização como a entrega do poder; e a da Guiné-Bissau, que, como os demais países africanos, se deparou com a árdua tarefa política de repensar o legado colonial quando heranças tidas por ultrapassadas voltaram, por vezes com maior violência, nas formas de governo do Estado-Nação pós-colonial. 

Diante deste quadro, optei por realizar uma etnografia numa tabanca no Sul do país, Unal, um dos primeiros bastiões do PAIGC. Procurei ouvir vozes, que ainda que falem bem alto, e sejam notadas, continuam a estar omissas das narrativas oficiais da história guineense, com o intuito de desvelar as complexas tramas de memórias tecidas: as marcadas pela violência colonial, as da Luta e as do pós-independência. Dada a pluralidade de relações estabelecidas, quer entre colonizadores e colonizados, quer entre os colonizados entre si, há ainda que considerar como os percursos dos diferentes testemunhos se distinguem na análise da história do território. Com estes testemunhos, levei a cabo um exercício de contrastes com as narrativas fílmicas, de forma a aceder a outras narrativas, em particular as ligadas à cosmologia, enquanto arena de resistência política, cultural e militar. Através deste exercício, examinei como a história da Luta de Libertação tem sido instrumentalizada para legitimar ou confirmar versões dos acontecimentos que carecem de discussão. Mais especificamente, procurei analisar como a história da Luta de Libertação, ainda que em contrapoder às narrativas coloniais, se transformou num instrumento de poder. É que nesta prevaleceu uma hierarquização do papel político e militar dos principais dirigentes da Luta, silenciando as trajetórias daqueles que permaneceram à margem da estrutura partidária. 

Será alvo de atenção não só as condições e os percursos daqueles que viveram esta Luta, mas também as possibilidades de novas formas de resistência às contemporâneas formas de dominação, desencadeadas por essa herança, o que permite estabelecer analogias entre diferentes períodos históricos. Consequentemente, este é também um estudo sobre a criatividade, a resistência e a produção de racionalidades alternativas daqueles para quem o fim do colonialismo não significou o fim das relações desiguais de poder e dominação. 

––––

Lançamento 18/11/2021 às 18h na Penhasco, Lisboa. Com intervenções de Teresa Castro, Víctor Barros e Sofia da Palma Rodrigues. A animação vai estar a cargo do Instituto fonográfico tropical.


[1] Stephanie Urdang, Fighting two colonialisms: women in Guinea-Bissau (New York: Monthly Review Press, 1979); Basil Davidson, A libertação da Guiné: aspectos de uma revolução africana, trans. António Neves Pedro (Lisboa: Sá da Costa, 1975); Lars Rudebeck, Guinea-Bissau a study of political mobilization (Uppsala: Nordiska Afrikainstitutet, 1974).

[2] Basil Davidson, O fardo do homem negro: os efeitos do estado-nação em África, trans. Jorge M. C. Almeida E Pinho (Porto: Campo das Letras, 2000).

[3] Branwen Gruffydd Jones, «”Good governance”and “state failure”: genealogies of imperial discourse», Cambridge Review of International Affairs26, no. 1 (2013).

[4] Aníbal Quijano, «Colonialidade do poder e classificação social» in Epistemologias do Sul, ed. Boaventura de Sousa Santos, &  Maria Paula Meneses (Coimbra: Almedina, 2009).

[5] Nicholas Mirzoeff, The Right to Look. A Counterhistory of Visuality (Durham & London: Duke University Press, 2011), 3.

[6] Benedict Anderson, Comunidades Imaginadas. Reflexões sobre a Origem e a Expansão do Nacionalismo, trans. Catarina Mira (Lisboa: Edições 70, 2012).

[7] Amílcar Cabral, Guiné-Bissau: Nação Africana Forjada na Luta (Lisboa: Novo Aurora, 1974).

por Catarina Laranjeiro
A ler | 16 Novembro 2021 | Catarina Laranjeiro, cinema, dos sonhos e das imagens: a guerra de libertação na guiné-bissau, estado guineense, evento, novo livro