“Ausência Permanente” de Délio Jasse

A SMAC gallery apresenta Ausência Permanente, a primeira exposição individual do artista angolano Délio Jasse na África do Sul. Poderá vê-la até dia 17 de Janeiro, no bairro Woodstock, na Cidade do Cabo. Realizada por ocasião da sua nomeação para o Prémio BES Photo em 2014, a instalação constitui uma meditação sobre a transformação e (des)ordem da cidade de Luanda; sobre o seu presente, os seus antigos habitantes e as suas memórias.

Ao longo da sua produção, Jasse tem focado a sua atenção sobre os vestígios imperiais e ruínas do império português, espalhados por mesas e bancadas de feiras, alfarrabistas, lojas de segunda mão, e nas ruas caóticas e fachadas bricoladas da cidade de Luanda. Durante as suas inúmeras viagens e deambulações, Jasse tem reunido um arquivo de memórias, e de memoriais anónimos – passaportes, vistos, cartas, álbuns, fotografias, avisos de morte – um conjunto de signos coloniais e migratórios que emprega no seu trabalho. A este arquivo de imagens e de remanências dos anos coloniais portugueses sob a alçada de António Oliveira de Salazar, e também do período sucessivo, o de decadência imperial, Jasse junta o seu próprio registo de Angola contemporânea: lugares de desamor pelo passado, de desprezo, desafectação e abandono que regista nas ruas, edifícios e habitações de Angola. Estes lugares, estes contextos degradados, representam uma parte significativa do espaço físico e material que os angolanos ou luandenses habitam e no qual se deslocam no seu dia a dia.

São também, mas não só, lugares de “decadência imperial” sendo que apresentam vestígios materiais e imateriais, tangíveis e intangíveis de detrito colonial; ou seja, uma espécie de lixo – não só material, mas também ideológico e institucional – que degrada as personalidades que aí habitam. Isto revela-se no modo como as pessoas são forçadas a viver com os efeitos e influências do período pós ou neocolonial. Olhando para as imagens de Jasse, avistamos fragmentos de espaço teimosamente habitados por gente deslocada, forçada a ceder ou encontrar um espaço na cidade comodificada e moldada para o consumo turístico, para o minério e multiplicação de centros comerciais. Ao contrário dos seus pares românticos, Jasse não olha para as ruínas com uma visão nostálgica: ele rejeita o pathos, uma rápida identificação sentimental, olhando pelo contrário para as vidas dos que habitam estas ruínas, os interstícios do progresso, optando por celebrar a sua resistência.

Um experimentador infatigável, Ausência Permanente reflecte a prática de Jasse que inclui processos de reapropriação, redimensionamento, re-territorialização e deslocalização de imagens. A instalação traduz também o seu método de impressão que é simultaneamente intuitiva e improvisada devido à raridade do material analógico que utiliza e encontra à sua disposição nas cidades onde trabalha. As suas imagens evidenciam o uso de processos intertextuais e de uma metodologia pessoal. Aplicando camadas, sobrepondo num mesmo plano elementos diacrónicos provenientes de imagens encontradas ou de artefactos civilizacionais, deixando por vezes sinais do traço imperfeito da emulsão fotosensível que aplica sobre o papel, Jasse opera aquilo testemunhamos nas suas imagens, uma ressuscitação fantasmagórica. O modo como apresenta e instala a sua obra, sobre ecrãs movíveis e estruturas complexas, reforça a temporalidade fracturada, as contradições, múltiplas leituras, a não-linearidade da sua obra. No caso de Ausência Permanente, Jasse cria um cenário específico para as imagens, uma espécie de laboratório onde as imagens flutuam, iluminadas individualmente em nove “ banhos”, evocando um dos momentos catalíticos e fantasmagóricos deste medium, onde os espectros emanam, libertos pelo processo químico da fotografia.

Talvez o dispositivo que melhor descreve a qualidade estrutural e estética do trabalho de Délio Jasse seja o palimpsesto com as suas qualidades metafóricas de “reinscrição, relacionamento e hibridismo”, onde a modalidade temporal adoptada é a do passado feito presente. Para quem desconhece o termo, refere-se literalmente à leitura e à publicação de manuscritos que revelam, examinam e juntam várias camadas de texto. Durante a Idade Média, na Europa Ocidental, a fim de reutilizar o pergaminho, os textos existentes seriam apagados de forma a acolher novos discursos. A mistura química entre processos de rasura e de oxigenação resultariam no reaparecimento fantasmagórico do texto original “debaixo” do novo, isto é, num palimpsesto ou texto “estratificado”. Involuídas, as imagens de Délio Jasse, tal como estes antecessores literários, mostram sinais de esboços, de takes e de pensamentos anteriores, encontrados entre registos mais recentes. Imagens desconexas são ora ligadas, enredadas e entrelaçadas de forma a inter-interromper e inter-habitar sistemas, memórias e realidades. O tempo e o espaço comprimem-se, o passado e o presente misturam-se, a teleologia falha assim que início e fim desaparecem como pontos de orientação.

por Nancy Dantas
A ler | 20 Novembro 2014 | arte, colonialismo, Délio Jasse, império, “Ausência Permanente”