Priceless: recuerdos do presente: o museu é Portugal

Uma loja de um museu, estrategicamente construída à saída do edifício, é pretexto para comercializar lembranças dos trabalhos em exposição. É uma extensão da memória daquele espaço, que se materializa em ímanes de frigorífico, t-shirts ou reproduções de obras em tamanho miniatura. Quando Gisela Casimiro e Rodrigo Ribeiro Saturnino (ROD) construíram a instalação Priceless1, integrada na exposição O Estado do Mundo: Museu do Atlântico Sulderam-lhe a forma de uma loja de museu2


Organizaram o espaço em quatro zonas: uma vitrine onde dispuseram lotes de café, massa de bolo pré-cozinhada, bolachas, rum, chocolates e farinha de mandioca. À esquerda, um expositor com postais. Ao fundo, na parede, reproduções de fotografias tipo passe, inscritas na logomarca de cafés Negrita, mas corrompida na palavra: aqui, Negrita é Negrite. Suspensa na parede, uma prateleira com chávenas e pratos, da mesma logomarca corrompida, onde fotografias de Gisela e ROD, envergando grossas gargantilhas africanas, brincos e afros, substituem o desenho da mulher negra que é a marca dos cafés. 

Estes souvenirs são como que a loja do meu país: por existirem, transformam Portugal num espaço obsoleto, cristalizado, do qual podemos levar recuerdos, leves como os caramelos que vinham de Badajoz. São memórias de um tempo colonial que, parecendo que já foi, continua presente no quotidiano e no imaginário das pessoas portuguesas através de alguns produtos que comercializa.

O alimento como símbolo de poder: café Delta, café Negrita, rum La Belle Cabresse e bolachas Mulata

Em termos económicos e estruturais, todo o sucesso do modelo de produção capitalista europeu, que começou a partir de meados do século XIX, resulta do processo de acumulação primitiva de capital. Graças à economia de plantação no Novo Mundo no século XVI, caracterizada pelo uso do trabalho gratuito, foi possível estruturar aquilo que mais tarde permitiria o processo de industrialização europeia.

A instituição do Estado Novo em 1926 garantiu, pela primeira vez, não só um efetivo controlo das colónias africanas, como a sua transformação numa nova fonte de rendimento, à semelhança do que acontecera no Brasil. Num estado ditatorial do tipo fascista, as colónias tornam-se monopólios nacionais onde se acumulou capital. Sobre esse capital construíram-se as grandes famílias portuguesas, que o transformarão, investindo e enriquecendo até aos nossos dias.

À medida que avançava o processo de consolidação administrativa e colonial, estas colónias tornaram-se especialistas na produção de matérias-primas como café, óleo de palma ou amendoim. Na prática, o alimento cultivado relaciona-se com a nutrição do corpo (Harris, 1997), mas em termos simbólicos, o comportamento relativo à comida liga-se com nossa identidade social (Mintz, 2001). Se Portugal consolidava a sua ocupação nestas colónias também com fins de exploração de matérias-primas, então os alimentos aí cultivados por pessoas escravizadas podem ser considerados um símbolo de ocupação, de subjugação e de poder.

Cafés Delta e Negrita

Em Priceless, Gisela e ROD apresentam lotes de café Delta (Timor, Brazil e Angola) e café Negrita. Os nomes das três gamas da Delta aludem à sua proveniência e, a acompanhar o nome, há uma fotografia de uma mulher que “ilustra” a origem do produto.  

No caso do café Negrita, o nome “negrita” descreve essa tal mulher negra, infantilizada pelo diminutivo, que prova uma chávena da bebida. Prova do seu café e aprova-o. No nosso imaginário, reforça-se a ideia de originalidade da matéria-prima, que vem do sítio onde se produz café verdadeiro

Há uma ligação à terra indissociável deste imaginário da pessoa negra: esse “estado primitivo do Homem (sic) em que predominam a selvajaria, mas também a dedicação. A impulsividade assassina, mas também a bondade. Em suma, a coexistência de contrários, não equilibrados numa tensão constante” (Chevalier e Gheerbrant: 1982, 469). Delta e Negria reforçam o imaginário de que o café negro é produzido por pessoas negras, que são as que sabem e sempre souberam produzi-lo. 

A cor é um dos eixos para a relação entre ideias: o café é preto. Então a gente vai usar uma pessoa preta porque que corresponde à cor, diz ROD. Usar a imagem de uma pessoa negra como ilustração e, como marca, o nome Negrita, não é representatividade negra3, mas uma associação simples entre cor de um objeto e cor fenotípica. Na derme desta associação está a ideia de comercialização de produtos produzidos por pessoas negras e das próprias pessoas negras, para usufruto de pessoas portuguesas e brancas.

Não é sem querer que se escolhem imagens de mulheres. A relação entre selvajaria (reforçada pela cor fenotípica) e dedicação (reforçada pelo género feminino) remete para a ideia de cuidado animal. Esta objetificação e animalização da mulher negra transcende as fronteiras da classe social (hooks, 2015: 102) e até do país de origem. Não importa se é timorense, brasileira ou angolana. É mulher, negra, faz parte de território que fora português e é alvo de desejo sexual, mesmo que só num imaginário longínquo. Nos EUA, relata bell hooks, que “as negras eram muitas vezes coagidas a terem ligações de cariz sexual com empregadores brancos, que as ameaçavam com o despedimento se não se rendessem às suas exigências sexuais” (2015: 100). Sobre as mulheres que habitavam países africanos, os relatos não são muito diferentes.

Bolachas Mulata e rum La Belle Cabresse 

As bolachas Mulata, castanhas e de chocolate, e o rum La Belle Cabresse [A Linda Cabrita] seguem a mesma lógica, em que o nome apela ao fenótipo das pessoas negras no imaginário branco. Recorda-nos pessoas negras miscigenadas com pessoas brancas e dessa capacidade de adaptação aos trópicos de que fala o lusotropicalismo: a facilidade de misturar-se com uma nova realidade, criando cenários híbridos.

O conceito de mulata apela à ideia de que “há no português uma enorme capacidade de adaptação a todas as coisas, ideias e seres, sem que isso implique perda de carácter. Foi esta faceta que lhe permitiu manter sempre a atitude de tolerância e que imprimiu à colonização portuguesa um carácter especial inconfundível: assimilação por adaptação” (Vale de Almeida, 2000: 169, citando Gilberto Freyre). 

Esta “adaptação” não é inocente. A mulata é um cruzamento entre coisas separadas: entre burro e égua, animal híbrido, estéril, que distingue duas origens, com hierarquia e peso simbólico diferentes. Por um lado, a parte branca reforça as ideias eurocêntricas sobre o resto do mundo (que estão na base do pensamento colonial) e que se ligam ao lado racional, científico e artístico. Para a parte negra reserva-se a sensualidade, a natureza, o vigor e a força. Aquilo que é pensado é europeu e aquilo que é inato, animal, é africano. 

A pessoa “mestiça”, se se ler como tal, poderá sentir o que Fanon descreve como inferioridade do negro em relação ao branco (2020:65), que não é mais do que um reforço do trauma da hierarquia colonial. A partir de um relato de René Étiemble, Fanon escreve: “você, que é negra…”, “Eu? Negra? Você não vê que sou quase branca? Eu detesto os negros. Os negros fedem. São sujos, preguiçosos. Não me fale nunca mais de negros” (2020:64).

Esta mulher representa uma ascensão em relação à sua família de origem mais escura. Já não é escrava, é “quase branca”, “passando da categoria dos escravos para a dos senhores. Ela foi recompensada pelo seu comportamento (…) e não é mais aquela que queria ser branca, ela era branca. Ela adentrava o mundo branco” (Fanon, 2020:72). Já não é negra nem reconhece em si negritude. Mas para os homens e mulheres brancas, a mulata, a cabrita,4 são representações de mulheres sobre as quais permanecem fantasias coloniais brancas de controle da genitália, do corpo e da sexualidade (Kilomba, 2019:107). 

Podermos comprar e comer bolachas Mulata e beber rum Bela Cabrita é uma extensão simbólica da conquista dos corpos de mulheres negras pelos corpos de homens brancos, que reativa as suas fantasias coloniais da “outra”, remota e exótica (2019:124).

Marketing pós-colonial

A pessoa negra, enquanto cara de um produto que é comercializado em Portugal, acaba por se tornar num símbolo do comércio de pessoas escravizadas. A produção do rum e do café “nas colónias” para consumo “na metrópole” reforça a ideia de que, não só os produtos, como as pessoas, são consumíveis de forma simbólica5. O colonial vem ao de cima como grande elemento de racismo: coloca-se a pessoa, nestes casos sempre a mulher, no local simbólico de escrava. O argumento é auto-explicativo quando pensamos em produtos brancos, como leite ou farinha, e reparamos que os seus rótulos não envergam pessoas brancas. Se envergam, a leitura dessas pessoas não é associada à cor da sua pele. 

Trata-se da clássica mecânica de apelo ao consumo do produto. Sabemos que é uma vantagem competitiva para a empresa se o produto for de encontro ao perfil e características dos clientes (Baynast et al., 2018:492). O branding do café, das bolachas e do rum está alicerçado numa vantagem competitiva, que pretende diferenciar a marca dos seus concorrentes (2018:487). Estas marcas compreenderam que, se o seu branding estiver assente na manutenção da memória colonial, estabelecem uma relação mais empática e de maior fidelização com quem consome6

Assumo que se trata de uma estratégia de marketing pós-colonial: apesar de não vir descrita em manuais de marketing, esta estratégia apela à nostalgia e ao imaginário dos tempos coloniais, numa época em que o colonialismo e aquela escravatura terminaram. 

O produto é original de África? A pessoa é original de África? 

A obsessão portuguesa com a origem traduz-se também na ansiedade em saber a origem da pessoa, para saber se ela é legítima de ocupar aquele espaço. Gisela Casimiro relata: ”na pandemia, estava de máscara, phones, blindada, e as pessoas pararem-me e perguntarem de onde é que eu sou. É um assédio incrível”. 

A pergunta “de onde és tu, negra?” parte do princípio que aquela racialização a coloca fora do espaço nacional. Se olhar e questionar são formas de controlo que encarnam naturalmente o poder (Kilomba, 2020:121), questiona-se a cor e o cabelo, associados à não portugalidade, ao não ser sequer europeia. Não se trata de ser estrangeira: trata-se de ser negra. E é necessário responder, da mesma forma que se responde a uma autoridade. Esta autoridade é aquela que inspeciona a branquitude sustentada na lógica colonial e que fica satisfeita quando tudo está em ordem. Isto é, “se tudo estiver em ordem, basta não ser negro” (Fanon, 2020: 130).

Esta interpelação é semelhante à descrita por Fanon quando relata o episódio em que a criança aponta e diz “olhe o negro! Mamã, um negro! E meu corpo me era devolvido desmembrado, desmantelado” (2020: 129). A pessoa negra está sobredeterminada pela classificação do fenótipo, que impede de ir no sentido do universalismo, de “passar por”. Porque está sempre a ser interpelada pelo assunto: porque as pessoas portuguesas estão sempre a constatar a identidade e a negá-la, independentemente da sua nacionalidade. 

Cria-se uma barreira se se for negra e portuguesa: a nacionalidade adquirida pelo nascimento não parece dar direito de ocupação do território. Da boca da pessoa negra têm que sair as palavras que reforçam a hierarquia branca imaginária, onde a nacionalidade e a cor estão fortemente dependentes uma da outra7

A pergunta pela origem pode querer dizer “também lá estive, também tenho saudades”. Mas a relação que a pessoa branca estabelece com a pessoa negra também vai na direção de manter o poder. Esconde a ideia de que se ambas “lá” vivessem, ela seria a branca, colonizadora, com poder. A outra seria a negra, subalterna. Mas, quando confrontadas, as pessoas portuguesas não verbalizam esse sentimento de superior/subalterna. No imaginário nacional, ainda permanece a ideia de que a colonização por Portugal foi menos agressiva que as colonizações por outros países europeus8

Há como que uma capacidade de adaptação especial atribuída à identidade portuguesa, como diz Gilberto Freyre: “a capacidade de adaptação, a simpatia humana e o temperamento amoroso são a chave da colonização portuguesa. Nunca sentiu repugnância por outras raças e foi sempre relativamente tolerante com as culturas e religiões alheias” (Vale de Almeida, 2000:169). 

Estas abordagens saudosistas, entendidas por pessoas portuguesas como doces, “tolerantes com a cultura” e “não repugnantes” continuam a alimentar a violência baseada na racialização9

Pós-colonial: chávenas e pratos Negrite

Como é que a realidade pós-colonial se tornou nesta realidade híbrida, onde não é possível identificar genealogias e linhagens certas do que é português e do que é colonial? Como é que depois das independências dos países africanos, ainda se mantêm referências coloniais que sustentam o imaginário da época? 

A marca Negrita, além de cafés, produz chávenas e pratos como forma de merchandising. A imagem que apresenta nos rótulos é a mesma que está impressa nessa loiça, muito fácil de encontrar em qualquer café ou restaurante português. Apesar de algumas alterações desde 1924 (data da constituição da firma) até à contemporaneidade10, a imagem não se tornou menos perturbadora. Aqui, nós olhamos uma mulher que não nos olha. O poder é de quem a observa.

Se falar de pós-colonial é falar daquilo que continua apesar do fim da ocupação, exploração e tráfico de pessoas, então todos os objetos apresentados em Priceless são pós-coloniais. Mas os códigos de cada objeto são diferentes, porque uns podem ser encontrados e comprados em supermercados e outros, como os pratos e chávenas, são intervencionados pelas artista.

Gisela e ROD imprimem as suas caras em pratos e chávenas e usam a logomarca Negrita, corrompida para se ler Negrite. Esta é uma expressão de culture jamming, uma forma de ativismo político, social e anticapitalista que pode implicar alterar marcas para que elas se tornem críticas de si mesmas (Dery, 1999). Neste caso, a crítica é sobre a marca, mas expande-se para além da marca: a crítica é à atitude portuguesa em relação à época colonial.

Apesar de “Negrite” poder levar-nos a fazer leituras à luz do não-binarismo de género e de linguagem inclusiva e neutra, Gisela Casimiro e ROD esclarecem que a corruptela foi por obrigação, para não haver nenhum problema com a marca. Idealmente permaneceria “Negrita”. 

Quer optemos por uma ou outra leitura, a questão do género estará sempre presente e indissociada da palavra Negrita. Porque a imagem “da negrita” é a de uma pessoa feminina, tal como é Gisela Casimiro e, eventualmente, ROD11. No entanto, ao assumirem Negrite, elimina-se a barreira de género e a declinação no feminino. Aquela representação passa a ser de uma pessoa negra.

Intervencionada, deixa de ser um desenho e passa a ser a cara de duas pessoas conhecidas. Agora não é “só uma negra”, são aquelas duas pessoas negras, nomeáveis, vivas e conhecedoras dos códigos coloniais portugueses. Ambas enfrentam o desafio psicológico da dupla consciência, em que “a pessoa negra (…) nasce com um véu e é presenteada com um duplo olhar neste mundo africano - um mundo que não lhe dá autoconsciência, mas só a deixa ver-se através da revelação do outro mundo. É uma sensação peculiar, esta dupla consciência, esta sensação de estar sempre a olhar-se a si próprio através do olhar dos outros, de medir a sua alma pela fita de um mundo que o olha com divertido desprezo e pena” (DuBois: 1897) 

Enfrentamos agora o olhar de Gisela Casimiro e ROD, em chávenas e pratos de onde facilmente poderíamos beber o nosso café diário. Estas peças, recontextualizadas na galeria, chamam-nos a atenção para o contexto original, que é o de consumo: se formos pessoas brancas, vemos Gisela Casimiro e ROD a ver-se pelos nossos olhos de brancos, como se pudéssemos espreitar por baixo do véu da dupla consciência. Se formos pessoas negras, as artistas representam-nos.

Estas imagens mimetizam a “negrita” da marca, à excepção de que Gisela e ROD nos olham de frente e não se mostram de perfil. Tornam-se, de repente, um objeto para os/as brancos/as observarem (Kilomba, 2020:122), mas agora causam desconforto, da mesma forma que ser servida uma chávena de café desta marca por uma mulher negra me causa mal estar. 

Numa loja de recuerdos de um museu fictício, onde nenhum dos objetos pode ser comprado, Gisela Casimiro e ROD nomeiam o seu trabalho Priceless, trocando a língua colonial pela língua imperial, a língua em que se faz comércio global e se tomam decisões políticas. Ambos se apropriam desta língua para dizerem, em última análise: “é assim que nos representam e não é esta a representação que queremos”.

Bibliografia

Dery, Mark (1999), Culture Jamming: Hacking, Slashing, and Sniping in the Empire of Signs, consultado em 13 de Abril https://www.markdery.com/books/culture-jamming-hacking-slashing-and-sniping-in-the-empire-of-signs-2/

DuBois, W.E.B, (1897), Strivings of the Negro People, consultado em 12 de abril em https://www.theatlantic.com/magazine/archive/1897/08/strivings-of-the-negro-people/305446/

Fanon, Frantz (2020), Pele Negra, Máscaras Brancas, Rio de Janeiro: Ubu Editora

hooks, bell (2018), Não Serei Eu Mulher?, 1ªed, Lisboa:Orfeu Negro

Kilomba, Grada (2019), Memórias da Plantação, episódios de racismo quotidiano, 2ª ed, Lisboa: Orfeu Negro

Mintz, Sidney W. (2001), Comida e antropologia: uma breve revisão, in Revista Brasileira Ciências Sociais 16 (47), consultado em 12 de abril em https://doi.org/10.1590/S0102-69092001000300002

Rezende, M. (2022). O Estado do Mundo: Museu do Atlântico Sul, consultado em 21 de março em https://galeriasmunicipais.pt/wp-content/uploads/2022/08/GM_OEstadodoMundo_FS_WEB_PT-1.pdf

Ribeiro, Beatriz Cardoso (2 de julho de 2020), Conguitos: marca de chocolate pressionada a repensar imagem, Público, em https://www.publico.pt/2020/07/02/p3/noticia/conguitos-marca-chocolate-pressionada-repensar-imagem-1922809

Vale de Almeida, Miguel (2000), Um Mar da Cor da Terra, Oeiras: Celta Editora

  • 1. Entre 22.09.22 e 15.01.23 esteve patente no Pavilhão Branco das Galerias Municipais a exposição coletiva O Estado do Mundo: Museu do Atlântico Sul, com a curadoria de Marcelo Rezende. O Museu do Atlântico Sul foi idealizado por Agostinho da Silva durante os anos exilados no Brasil, onde se construiria um espaço “dedicado à capacidade fraternal de entrelaçamento do diverso numa ordem pós-independências” (Rezende, 2022). O objetivo desta exposição é crítico: o curador não pretende “reproduzir o processo original do museu, o fetichizado” (Rezende, 2022), mas repensar como é que este museu seria hoje.
  • 2. O Estado do Mundo: Museu do Atlântico Sul Curadoria: Marcelo Rezende Artistas: Assaf Gruber, Charbel-joseph H. Boutros, Gisela Casimiro e Rodrigo Ribeiro Saturnino (ROD), Jacira da Conceição, Jonathan Monk, Juraci Dórea, Luisa Mota, Marcelino Santos, Márcio Carvalho, Maxim Malhado, Tenzin Phuntsog e Tuti Minervino Pavilhão Branco 22 de setembro de 2022 a 15 janeiro 2023
  • 3. Diz ROD: “podia ser a gente aqui nesse rótulo, poderia ser alguém que a gente conhece. A reprodução de uma pessoa com quem a gente se identifique, sabe? É representatividade. Mas no lado negativo”.
  • 4. Em entrevista, Gisela relata um episódio escolar com uma colega de turma: “Lembro-me da minha colega Mónica me dizer um dia, “Eu sou cabrita” E na altura fiquei… ficou sempre assim uma coisa… “o que é que é isto [de ser cabrita]”? Eu não a lia como tal, não é (…) Eu lia-a como branca!”.
  • 5. Esta comercialização simbólica das pessoas negras também se dá sob a forma de tokenização. Como argumenta ROD, não é só usar pessoas negras como uma justificativa de que se é inclusivo, de que não existe mais racismo. O uso comercial da imagem de pessoas negras para alimentar memórias de pessoas brancas, no caso dos rótulos de produtos, ou para aliviar o peso da sua culpa, no caso da tokenização, são formas semelhantes de assegurar o imaginário colonial e a divisão entre negros e brancos. Mas não é surpreendente que assim seja, já que “da colonização à civilização, a distância é infinita” (Césaire, 1978).
  • 6. É também por esta razão que a marca Conguitos, apesar de pressionada a alterar o seu nome, não o faz. A pressão só fez com que Lacasa, a entidade que detém a marca, declarasse que “a vasta maioria associa os Conguitos a diversão e energia positiva. Se considerássemos o produto ou a sua imagem ofensiva de alguma forma, seríamos os primeiros a mudar. Todavia, acreditamos sinceramente que a mascote é respeitadora para todos, sem excepção”, in Jornal Público online em 2 de julho de 2020.
  • 7. Esta é uma consequência que ficou impressa nos corpos das pessoas brancas que viveram durante a época em que o Ato Colonial de 1929 vigorou, em que ser pessoa negra e sair do seu país para Portugal poderia constituir uma violação.
  • 8. Gisela Casimiro relata: eu estava com a minha amiga Noémi no café. Estávamos na fila, estava muita gente. E a mulher à nossa frente começa a conversar e de repente “Este café é muito bom” e nós “pois, pois…” e ela “é café de Angola” e nós ficamos a olhar para ela… Aqui ao pé há uma pastelaria brasileira. Estava lá uma vez com ela, com a Noémi, e fomos comprar um bolo. Uma mulher começou a perguntar montes de coisas e onde é que ela queria chegar? Queria chegar que tinha em casa, segundo as suas palavras, um negão. Nestas duas histórias é nítida a pretensa harmonia entre colonizador e colonizado, bem como a hipersexualização do homem negro de que fala Frantz Fanon.
  • 9. Gisela Casimiro diz: a pessoa pergunta [de onde sou], mas porquê que eu sou obrigada a alimentar essa memória? Porque é que eu tenho que ter saudosismo? Isso é uma coisa que é só one-sided.
  • 10. Primeiro aparecia uma mulher negra com desproporcionais lábios vermelhos e queixo projetado para a frente, de perfil, semelhante à figura estilizada de um macaco e hoje, os lábios não estão pintados e as suas linhas faciais são mais finas.
  • 11. Quando questionado acerca dos pronomes que prefere, ROD respondeu que eram indiferentes, desde que não se usassem os pronomes masculinos ele/dele.

por Laura Falésia
Vou lá visitar | 15 Junho 2023 | Alântico Sul. colonialidade, consumo, exposição, marcas, Priceless, racialização