Onde o Tibete resiste, fecham-se as portas ao mundo (I)

Dartsedo

Kangding

(19 de Abril de 2019)

Trago uma nota escrita em chinês com a morada da hospedaria onde vamos passar a noite. Na chegada a Dartsedo, ainda na estação rodoviária, não há um taxista que a consiga decifrar, Não leio caracteres, dizem-me, um após o outro.

Não são apenas seis horas de autocarro que separam Chengdu de Dartsedo. É uma rima de muitas outras coisas. Parte integrante da província chinesa de Sichuan, Dartsedo (Kangding, em mandarim), pertenceu, em tempos, ao Tibete. E o Tibete resiste aqui. Esta enfiada de caracteres chineses, que poucos motoristas tibetanos conseguem ler, é simples prova disso. 

Dartsedo é uma das principais entradas na Sichuan de influência tibetana. É também o lugar intermédio da nossa viagem. A 2600 metros acima do nível do mar, esta cidade de 134 mil habitantes (2014) serve de preparação para o mal da montanha, a altitude. Na confluência deste vale estreitíssimo, levantam-se prédios altos, constroem-se estradas novas, avança o progresso pelo mato abundante. À gente serrana, etnicamente tibetana, junta-se uma forte presença de chineses han.

Passamos aqui uma noite, luzes led adornam o morro. Cá em baixo, danças de praça (广场舞) fecham o dia.

Lhagang

Tagong

(20 de Abril de 2019) 

Notas: 

- ainda em Dartsedo, compramos ‘hongjingtian’ (红景天), um medicamento chinês “para aliviar os sintomas da altitude”; 

- visitamos o Lhagang Gompa (o mosteiro de Tagong), solene; 

- sobre o espaço: no século VII, a princesa Wencheng, noiva do rei tibetano Songtsen Gampo, estava a caminho de Lhasa, quando uma importante estátua do Buda Jowo Sakyamuni caiu de uma das carruagens. Uma réplica foi construída nesse mesmo local e este templo elevado à volta;

- monges e turistas, sol de Inverno; 

- rodas de oração giram no sentido do ponteiro do relógio, equilíbrio;

- passamos ainda pelo mosteiro Ani Gompa, monjas ocupam casas de madeira e de pedra no topo da colina, verticalidade;

- de volta à estrada, iaques (boi-cavalo, chifres longos, pelagem comprida); 

- casas e flores a romper pelo caminho; 

- gravuras budistas impressas na terra, em rochas, seixos, perpétuas;

- um homem sentado no sofá, à beira da estrada, extensão da sala;

- bandeiras da China à porta de casa, permanência. 

Mais: 

Aqui não existem os problemas administrativos da região autónoma do Tibete que, nos dias que correm, eu não poderia visitar em relativa liberdade, sem um visto especial, sem estar em excursão, sem restrições.

Garze

Ganzi

(21 de Abril de 2019)

A caminho de Yarchen Gar

(22 de Abril de 2019)

Subam as janelas, avisa Gen (nome fictício), já perto do primeiro checkpoint, à saída da cidade de Garze. Avançamos. Poucos quilómetros depois, no segundo posto de controlo, um agente dá ordem para parar, aproxima-se do carro, fala no dialecto local com Gen, sem nunca olhar para o banco de trás, onde estamos em silêncio. O agente perguntou-me para onde ia e respondi: vou só ali, explica-nos Gen em mandarim, a apontar para a frente, já com o carro em andamento, sobressalto na expressão. 

Não voltamos a falar durante algum tempo, abrimos as janelas assim que nos fazemos à estrada, recolhemos quando se atravessa alguém no nosso caminho. É Gen quem quebra o silêncio, Tens filhos, pergunta, e eu volto a fechar a janela, como se precisasse de ganhar tempo para pensar, Não, respondo. O motorista de 36 anos, casado há duas décadas e pai de um casal, não entende como é possível uma mulher da minha idade não ser mãe, Porquê, vai voltar a perguntar três vezes, e eu, que não encontro resposta em mandarim – e que já tive esta conversa várias vezes na China – olho pela janela o mundo a quatro mil metros de altitude, serrania branca, paralisada pelo frio, afastada do homem. 

Já adiantados nesta estrada que nos leva a Yarchen Gar, na extremidade da província de Sichuan, fronteira com a região autónoma do Tibete, Gen volta à conversa, No estrangeiro têm templos, pergunta, Depende do estrangeiro, observo, e passa uma mota, uma mulher à pendura roda um colar de contas, E são tão bonitos quanto estes?, insiste o homem, que aponta para a estrada, rebanhos de iaques ligados à terra, estupas, templos, pedras decorativas e outro relicário budista no nosso caminho.

Atravessamos a região de Garze, parte integrante de Kham - assim era conhecida uma das três províncias que formaram, no passado, o Tibete (ver mapa em baixo). Garze foi incorporada, nos anos 1950 pela então recém-fundada república comunista de Mao Zedong, na província chinesa de Sichuan. 

Leio que os Khampas, subgrupo tibetano que habita a região, integraram o movimento de resistência contra a ocupação chinesa do Tibete, impondo-se como guerreiros ferozes, defensores da fé budista e seguidores espirituais de Dalai Lama (isto apesar de terem assistido a China no processo de invasão numa fase inicial).

Não me espanta, por isso, esta última pergunta de Gen. Kham poderá ter sido engolida pela nova geopolítica chinesa, mas deixou um legado que sobrevive até aos dias de hoje. Em poucos lugares da China por onde viajei, existe esta dimensão permanente do sagrado: nos restaurantes da cidade de Garze, muitas mulheres e homens tomam as refeições de rosário na mão; nas ruas, entoam-se mantras budistas; à volta dos templos, fiéis deslizam pelo chão em sinal de humildade e atrás dos balcões, comerciantes agitam a roda da oração, vendem hábitos de monge, vestes budistas, objectos cerimoniais. 

Leio na “História do Tibete – Conversas com Dalai Lama”, do jornalista Thomas Laird, uma passagem em que o líder espiritual tibetano fala de um aspecto negativo na dedicação dos tibetanos ao budismo, que é serem demasiado devotos: Os líderes religiosos pensam primeiro na religião e nos seus mosteiros e escolas, e só depois na nação tibetana.

Nunca fui ao estrangeiro, diz ainda Gen, nascido aqui, no tecto do mundo, enquanto percorre com a mão direita as contas de um rosário vermelho, que coloca ao pescoço sempre que sai do carro.

***

Conhecemos Gen há pouco mais de duas horas, entre um grupo de homens, à entrada da estação rodoviária de Garze, Para onde vão, grita alguém à nossa chegada e, sem que tenhamos tempo para reagir, esse grupo avança sobre nós, Yarchen Gar, respondemos, São 600 yuan (80 euros), atira um dos motoristas. E eu afasto-me para tentar falar a sós com o Carlos, mas os homens cercam-nos, querem saber o valor que estamos dispostos a pagar. Quando finalmente pergunto se é permitida a entrada a estrangeiros - li que em 2016 as autoridades fecharam o local aos visitantes, levantando a interdição em 2018 – ninguém nos responde. 

Gen puxa-nos a um canto, Faço 300 yuan (40 euros) e não há problemas para entrar, garante-me. Traz vestida uma camisola de lã, laranja, tranças bordadas nas mangas, o tal rosário vermelho ao pescoço.

Estabelecida em 1985 no condado de Baiyu, a povoação de Yarchen Gar abriga cerca de dez mil monges budistas (2018), na grande maioria mulheres de origem tibetana. Tenho lido que o número de residentes aumentou nos últimos anos para acolher religiosos expulsos de um outro mosteiro, Larung Gar, formado em 1980 no condado de Sertar, um dos maiores centros religiosos do mundo e onde também planeamos ir. 

Para contextualizar: várias organizações internacionais acusam Pequim de ordenar a expulsão de milhares de monges destes dois importantes núcleos religiosos, incluindo a Organização das Nações Unidas, que numa carta enviada ao governo chinês, em 2016, expressou preocupação pela imposição “de limitações severas à liberdade religiosa”. No documento, um painel de seis especialistas da ONU chama ainda a atenção para o estabelecimento, em Larung Gar, de “um prazo claro para a demolição de residências monásticas” e ordem “para que a população seja limitada a apenas 3500 monges e 1500 alunos”. 

Também a Human Rights Watch tem vindo a acusar a China de impor aí uma nova administração constituída por quadros do Partido Comunista (em vez de monges) para liderarem a gestão do local, finanças, segurança e até a escolha de manuais didácticos.  

Pequim negou sempre as acusações e justificou as demolições em Larung Gar com a precariedade do local e a sobrelotação, insistindo no respeito pela liberdade de religião e culpando o Dalai Lama de promover a instabilidade na Região Autónoma do Tibete e nas zonas de influência tibetana.

Esta tensão, por um lado, e a reputação de Yarchen Gar e de Larung Gar como oásis espirituais para praticantes do budismo tibetano de todo o mundo, por outro, têm sido razões apontadas por organizações dos direitos humanos e meios de comunicação social para a demolição das residências dos monges.

O encerramento não é oficial, mas muitos turistas não têm conseguido entrar e, por isso, nenhuma carreira rodoviária arriscará transportar-vos, uma vez que se não entrarem têm de ficar para trás, avisou-me o responsável pelo local onde ficámos hospedados em Garze.

Gen pára o carro no meio da estrada, a pouco mais de dois quilómetros do último posto de controlo, Não posso entrar com vocês, diz, A polícia não quer que transportemos estrangeiros para Yarchen Gar e se sou apanhado vai bater-me, vou parar um mês à prisão, continua a falar, mãos unidas e elevadas ao alto, como se estivessem algemadas. 

Confusos, pegamos nos casacos e nas mochilas, saímos do carro. Gen insiste para nos metermos a pé pela montanha, contornarmos o checkpoint e a via oficial ou até viajarmos na bagageira do carro, mas tomamos a decisão de entrar pela porta da frente. Seguimos lentamente, o corpo ainda a ajustar-se à serra, um rebanho de iaques que se desvia da estrada para nos deixar passar. Vemos Gen ao longe, a cruzar o posto de controlo de carro.

À nossa chegada, num cartaz gigante, escrito em chinês e tibetano: Administre os assuntos religiosos de acordo com a lei, não são permitidos templos ou monges ilegais. Do outro lado da estrada, novo letreiro dá voz a mais uma campanha do Partido Comunista Chinês para combater a pobreza. Lê-se: Seja grato ao partido, ame a pátria, respeite a lei e esforce-se por uma vida confortável.

Neste lugar retirado de tudo, vem-me à memória a nossa viagem a Xinjiang, no ano anterior, a ubiquidade da propaganda, dos postos de controlo, de um constante desassossego, Está tudo em ordem, digo para mim, e recordo alguns exercícios de respiração enquanto avançamos finalmente em direcção a Yarchen Gar. 

Perto da cancela, quatro iaques curvam-se à procura de alimento, um grupo de jovens de uniforme cava um buraco, sorri, lança palavras soltas em inglês e um polícia aproxima-se, É portador das más notícias, aquele que tem a missão de nos enviar para trás, penso, Bom diaseguimos para Yarchen Gar, informo de imediato o agente, Houve uma derrocada e, por razões de segurança, não podem passar, responde-me.  

(o meu organismo reage, 

ansiedade) 

Viemos de longe, de Macau até Yarchen Gar, saliento ao procurar empatia, mas não, Não há nada a fazer, são questões de segurança, diz o homem, figura pequena, inabalável, Voltaremos amanhã ou depois de amanhã, arrisco, Nos próximos dias será impossível fazer a travessia, responde-me o agente impaciente e sem mais explicações, Como é que vieram aqui parar?, atira ainda a pergunta, Apanhámos um táxi e depois a pé, esclareço.

Sem hipóteses de passar pela segurança, viramos as costas e começamos a fazer a pé o caminho de volta, até os putos de uniforme, os quatro iaques, o agente da polícia, os cartazes de propaganda e o posto de controlo improvisado desaparecerem entre o rosto da montanha. Ligamos então a Gen para que que nos venha buscar, Não houve derrocada, deviam ter feito o que vos disseporque o governo não quer que os estrangeiros falem sobre estes centros religiosos de devoção e difusão do budismo e da cultura tibetana, vai dizer mais do que uma vez ao volante. Na carrinha, segue agora um monge, que largamos quilómetros à frente, numas fontes termais, onde, uma vez por semana, os religiosos vêm tomar banho ou lavar a roupa. Em Yarchen Gar não há água potável.

No regresso a Garze, temos ainda de enfrentar dois postos de controlo. Despedimo-nos de Gen antes disso e caminhamos até à cidade. No checkpoint: Mas passaram aqui de manhã? Quem vos deu boleia? Mas não se lembram mesmo da matrícula do carro? 

Aos turistas não fazem nada, o problema somos nós, lamentava Gen na despedida. 

À noite, Garze apaga-se. Eu passo gelo pelo pé direito, que torci ainda em Dartsedo e que não vai recuperar até Macau, para onde voltarei apenas um mês depois. Partilhamos um saco de amendoins com dois casais alemães. No dia seguinte, um deles vai tentar a sorte em Larung Gar. 

Nós ficamos mais um dia em Garze:

Nota: Enquanto escrevo este texto, em Outubro de 2021, procuro informações actuais sobre Yarchen Gar. Leio aqui que, em Maio de 2019 (poucos dias depois de termos tentado entrar), esta vila monástica foi encerrada a todos os visitantes, chineses ou estrangeiros, e as casas começaram a ser demolidas. Encontro também imagens de satélite, datadas de Agosto de 2019, que confirmam a demolição de parte do espaço. 

Derge

(Dege)

(25 de Abril de 2019) 

Notas:

- à mesa, tsampa: cevada torrada com manteiga de iaque; 

- na colher, a imagem de um cravo; 

- eu tenho ainda Lev (nome fictício) na memória, o motorista que nos trouxe ao extremo chinês, Estou proibido de transportar estrangeiros, afirmou, quando a polícia o mandou para trás, em Manigango, ao passarmos por mais um posto de controlo;

- na rua, homens e mulheres à volta de Gonchen, mosteiro que caiu durante a Revolução Cultural, mas que voltou a renascer; 

- orações diárias que levam o dia e a vida, rosários budistas presos à mão, o mantra a elevar-se no vale, e a liberdade, por fim, na palavra.  

Feliz 25 de Abril de Derge!

(continua)

por Catarina Domingues
Vou lá visitar | 5 Dezembro 2021 | budismo, China, cultura, cultura tibetana, garze, religião, Tibete, viagem