Anunciação — a mostra do duo de artistas brasileiros "Silêncio Coletivo"

Pintado de vermelho intenso, sanguíneo, claustrofóbico, o espaço Hangar acolhe, até ao dia 2 de julho, a mais recente exposição do duo de artistas brasileiros Silêncio Coletivo, intitulada Anunciação. Anunciação que é episódio iconográfico (o Arcanjo Miguel que anuncia a Maria que será mãe de Jesus) e simultaneamente um ato de revelação.

No pequeno espaço da galeria vemos um conjunto de imagens, correspondentes a 6 estátuas remetentes à história colonial portuguesa: começamos pela estátua de Vasco da Gama em Sines, passamos pelo Padrão dos Descobrimentos, a estátua de Dom Pedro IV da praça do Rossio, a de Pedro Álvares Cabral em Belmonte, a do Padre António Vieira no Largo Trindade Coelho e a do Infante Dom Henrique no Porto. São impressas em placas às quais se adossam varas de madeira que as sustentam, inclinadas entre a parede e o chão, concedendo-lhes uma aparência frágil, como a de um cavalete, mas glorificante, como a de um estandarte. Ainda que sejam recortes perfeitos destes monumentos, parecendo quererem a todo o custo tornar-se reais, estão sujeitas à bidimensionalidade do seu formato, a sua carga escultórica despe-se a uma irónica aparência plana, à qual foi retirada toda a substância matérica e conceptual, evocando-nos uma perceção estranha, deslocada. Restam apenas capas, fachadas de um conteúdo que escapou. Ou talvez não. Talvez o conteúdo, essa lembrança que se quer resgatar, esteja espelhada no espaço físico da galeria, no intenso vermelho como o sangue marcado, infligido, por qualquer uma daquelas figuras vangloriadas nos seus respetivos monumentos. No entanto, pretende-se resgatar uma lembrança que não temos, uma memória que não fora ainda construída – tal como a dupla, remetida a um Silêncio Coletivo. É este o anúncio que se pretende comunicar - a descolonização iminente, urgente, denunciando-se a criminosa normalização das suas pontas soltas. Mateus Nunes, no texto de acompanhamento da exposição, expõe-nos a operação desse drama, aqui, pelos artistas, de forma pertinente: “Uma das formas mais eficazes e provocativas de declarar a obsolescência de ideias e imagens não é descartá-las, mas virá-las do avesso”.

Este virar do avesso, já diretamente percetível no estranhamento relativo aos objetos expostos, torna-se efetivo quando reparamos que, afinal, há um conjunto de objetos escultóricos, corpóreos, na exposição. Pousados no chão, em círculo, são um conjunto de quartilhões, “vasos religiosos em cerâmica crua” (o que é que aqui não é cru?). Ao olharmos para eles sentimos que qualquer coisa nos escapa – estão dispostos numa localização estratégica, espelhando a sua suposta importância, mas não percebemos a sua função. É aqui que, mais uma vez, o texto de Mateus Nunes vem em nosso socorro: “são objetos de cura do candomblé que trazem a própria pureza como elemento impuro numa cultura colonialista que se diz impoluta. Estes receptáculos contêm água - conteúdo e continente ao mesmo tempo -, que lentamente evapora pela porosidade da cerâmica e precisa de reabastecimento e atenção constantes. A água contida nas cerâmicas é lentamente bebida pelas entidades a que são ofertadas, sendo a evaporação um ritual de cura transbordante.”

Está explicado. São atos de resistência e purificação, restituidores de uma desejável ordem natural das coisas, testemunhos de um conhecimento ancestral, agentes numa possível “ecologia de saberes” que se poderia instituir, reenquadrando-se epistemologias, princípios tidos como garantidos.

Nalgumas paredes do espaço vemos também fotografias de protestos sob as quais se impôs um filtro vermelho. Documentam o desabamento de outras estátuas provenientes do mesmo contexto, atos de desmantelamento de sistemas de poder colonial. Estas imagens impõem-se como partida ou conclusão (tudo aqui parece operar em limites dialéticos, duais, sempre intercomunicantes) – a consequência final dos monumentos que ali vemos como estandartes ocos, ou o primeiro passo para os converter ao que ali vemos, meras imagens sem substância. Não chegámos a ver o vapor dos quartilhões, foi o sangue, sempre o sangue, que nos rodeou. A curadoria mostrou-se contida, premeditada, deixando os objetos respirar, e fazendo de todo o espaço um protagonista. O único problema terá sido o largo gradeamento em que termina a exposição, pertencente ao edifício onde se instala a galeria e, portanto, fora de quaisquer intenções da mostra, mas que pela sua dimensão se torna inevitável e lhe rouba algum destaque visual, impossibilitando-nos de ser completamente imersos na atmosfera construída.

A exposição não foi fácil, não só ao nível das referências, como do conteúdo problematizante e, por isso, mostrou-se sempre necessária, sensível. Porque para desdobrar é preciso reabrir as dobras, expor as feridas. Para que, finalmente, não seja quaisquer autocracia a ditar quem faça da carne um pedaço de pedra.  

por Miguel Pinto
Vou lá visitar | 8 Junho 2022 | arte, cultura colonialista, exposição, hangar, negritude, pos-colonialismo, silêncio coletivo