Pérola sem rapariga: a invenção do riso
Quando Pérola sem rapariga esteve no Seixal, em novembro de 2023, levei a minha tia Célia ao teatro. Um princípio mudo, de largos minutos, deixou-a desconfortável, num murmúrio partilhado com parte da plateia. E no final, à saída, ia eu deslumbrada com uma certa vertigem oceânica em que a peça culmina, contou-me ela como achou tudo tão medonho.
Reconheço: é um poema esquisito, aquele que Djaimilia Pereira de Almeida trouxe a Zia Soares, Filipa Bossuet e Sara Fonseca da Graça, para, a partir dele – e de um retrato – criarem Pérola Sem Rapariga. O espetáculo, diz-nos a sinopse, inspira-se em “Voyage of the Sable Venus”1, poema-inventário da afro-americana Robin Coste Lewis, que atravessa acervos de museus e bibliotecas de arte para inventariar legendas, entradas de catálogo e títulos que aludem a mulheres negras. Através de recortes e colagens de citações, Robin evita a renomeação pressionada por pruridos de correção política, e repara em como as boas intenções podem cair em eufemismos que omitem o horror original da História.
O referido retrato, por exemplo. Não aparece neste poema, mas podia. Tutelam-no, hoje, um par de descrições: mulher negra de turbante: mulher negra, possivelmente escravizada. Nada sabemos, como das mulheres africanas de expressão tensa e fugidia ao lado de Artur, um militar branco, cujas fotografias Gisela Casimiro encontra à venda na Feira da Ladra. Quanto à mulher retratada, nada sabemos dela se mostrar ou ser mostrada, de olhar e ser vista; ou sequer do possível desaperto do diafragma, emudecido no lapso do registo.
Quanto ao poema-inventário é sabido que Robin Coste Lewis foi roubar o seu título a uma gravura setecentista de William Grainger. Esta reproduzia uma pintura perdida de Thomas Stothard para, em 1794, ilustrar a segunda edição de The History, Civil and Commercial, of the British Colonies in the West Indies, livro de Bryan Edwards, plantador e escravocrata, sobre os apelos do Caribe. Um dos tais livros de propaganda colonial apostados em animar os espíritos dos homens europeus para a grande gesta ultramarina. Não por acaso, a imagem em causa é uma recriação de Vénus, deusa romana da beleza e do amor, ali posta em viagem transatlântica, entre Angola e as Índias Orientais, e adjetivada de volúpia zibelina, como se nada fosse. A acompanhar a gravura, no mesmo livro, surge uma ode do reverendo Isaac Teale que configura, enunciando, um desejo-nojo pela mulher negra, assim esvaziada numa estereotipia racista que ainda hoje subsiste e se reinventa.
Os nomes deles: William, Thomas, Bryan, Isaac: Artur, Alberto – outros tantos Josés e Antónios. E os nomes delas? Importa a repetição, encontrar o padrão, o que ficou nas imagens.
Há uns anos, estando por Bissau, de visita a uma casa quase só de mulheres, Bebé, a irmã de Carlitos, que conheci na minha primeira viagem de canoa até zonas de Tite, mostra-me as fotografias que lhe tiraram junto à piscina do bairro, vestindo roupas justas, da moda. Algumas destas imagens, Bebé guardá-las-á junto àquelas que Vanessa, a pequena filha, protagoniza; outras eram para oferecer ao namorado-amante gambiano, sempre em trânsito. Entre estas fotografias, inesperada, uma mulher mais antiga de quem na casa se perdeu o nome e a linhagem. Apesar da diagonal que lhe ajusta o queixo à luz, o olhar dela enfrenta-nos, logo que tomamos o lugar atrás da câmara. Os vincos no papel são os de uma zanga triste. Será uma altivez, que se adivinha?
Que violência nos devolve o olhar de um retrato anónimo? E que desconforto provocou atrás da câmara, na duração do registo? O que há numa cara que se vira para o retrato? Que outro olhar, que voz de comando, lhe conduz as feições, a disposição do corpo?
O sociólogo Erving Goffman dir-nos-ia: são as convenções sociais que, a cada encontro, ou interação, nos submetem a expressão e aparência do rosto a uma certa compostura. Para além da vontade, haverá algo que nos organiza a experiência: não aparecemos no vazio.
Em Pérola sem rapariga, os tais largos minutos mudos são, pois, o tempo de uma desfaçatez em que se esborrata a pintura. Recusa-se, primeiro, num frémito, a fixação do rosto, e logo se reencenam as obras-primas do costume: Meisje met de parel2, Vermeer; Les demoiselles d’Avignon, Picasso; Las meninas, Velásquez. Os nomes que lembramos são os deles, delas nada sabemos, ficaram-nos os títulos. Talvez por isso, imagino, Filipa e Sara desmancham a pose. Dizem-lhes para não mostrarem os dentes, e elas riem muito. Virá a libertação de um riso nu, despudorado? Urge, afinal, esconjurar o gesto venatório de quem mira, e entreabrir intervalos na ordem dos dias.
De Pérola sem rapariga ecoa uma gargalhada gutural – psicanalítica, até. Grita-se fundo, “Pai!”, e acode uma comoção operática, num espantoso cenário de Neusa Trovoada, com intervenção plástica de Kiluanji Kia Henda e Xullaji na arte sónica.
Juntas, Djaimilia, Zia, Filipa, Sara, como Robin, Gisela e Bebé, têm nomes, sabem que há poder em ser vista, se dar a ver, olhar de volta. E que a reciprocidade do olhar implica um caminho de dois ou mais sentidos, em afetação mútua – para que o desconforto tenha, também, o seu lugar.
Pérola sem rapariga volta à cena de 24 a 26 de maio de 2024, no Centro Cultural de Belém, integrada nas comemorações dos 50 anos do 25 de abril.
- 1. Este poema está na origem de Voyage of the Sable Venus and Other Poems (Knopf, 2015), livro de estreia de Robin Coste Lewis, vencedor do National Book Award. Veja-se, por exemplo, a crítica de Dan Chiasson, “Voyage of the Sable Venus and Other Poems” | The New Yorker, 12 outubro, 2015.
- 2. Vulgarmente traduzido do neerlandês como “Rapariga com brinco de pérola”, o que se presume estar na origem do título do espetáculo.