Filhos de Assassinos

O presidente do Ruanda está a libertar os assassinos. Anos depois do genocídio tutsi, os perpetradores começam a regressar ao campo a conta-gotas, de volta às suas aldeias. Três amigos – nascidos durante o rescaldo sangrento do genocídio – preparam-se para conhecer os homens que lhes deram vida. Mas à medida que o dia do regresso se aproxima os rapazes são assombrados pelos crimes dos pais. Quem nos podemos tornar quando a violência é a nossa herança?

 

Personagens

Vincent - 18 anos, filho do “Carniceiro”

Innocent - 15-18 anos, o pacificador do grupo

Bosco - 15-18 anos, encantador, e enérgico, mas traz no coração a semente do ódio extremista

Mamã – mãe de Vincent

Félicité - 5-14 anos (idade muito flexível) irmã mais nova de Vincent

Espérance - 19-20 anos, sobrevivente do genocídio de 1994, irmã mais velha de Emmanuel

Emmanuel - 15 anos, chamado “criança má memória”, enfant mauvais souvenir, resultado de uma violação, está lentamente a morrer de SIDA, irmão mais novo de Espérance

Os Gahahamuka – os silenciados (podem ser representados por pelo menos 3 e no máximo 10 actores)

 

LUGAR

Ruanda. Em breve.

 

LINGUAGEM

/ indica sobreposição no diálogo

– indica interrupção

 

Gahahamuka – o ponto da fala em que as palavras deixam de existir. É quando o fôlego se recusa a formar sílabas, resultando ao invés em silêncio e emoção.


CENA UM 

 

Ruanda. Em breve. Um campo numa aldeia. Um jogo de futebol. Um grupo de rapazes a jogarem descalços.

 

INNOCENT Passa! Passa!

BOSCO Passa a bloody bola, Vincent!

VINCENT Não! Nem pensar!

INNOCENT Mas és sempre tu a marcar!

VINCENT Isto é o mundial, pá!

BOSCO Os melhores jogadores passam sempre! Sabem atacar em conjunto.

VINCENT Não passam nada. Vão até à baliza.

BOSCO Raios te bloody partam, passa lá a bloody bola!

VINCENT Vincent, o Invencível nunca passa!

 

 Sexta Insónia - Portimão Sexta Insónia - Portimão

Vincent remata e a bola passa pelo guarda-redes invisível. É golo.

Vincent dança, dando voltas e voltas de contentamento.

 

BOSCO Ooooh, meeeeen. Só marcas porque não temos guarda-redes.

INNOCENT (sem fôlego) Estou tão-tão cansado.

 

Deixa-se cair na relva.

 

VINCENT Levanta-te! Levanta-te! Levanta-te, Innocent. Ainda não acabámos! No campo vamos bombar, como um niga a disparar.

INNOCENT Ai, Jesus.

VINCENT Bombar como um soldado e nenhum niga vai tentar.

BOSCO Andaste a ver muitos clips de rap no youtube?

INNOCENT Ele acha que é o Jay-Z de África.

BOSCO Achas que o Jay-Z há-de vir um dia ao Ruanda?

INNOCENT Para que é que ele precisava de cá vir? Já tem a Beyoncé dele. Quando é que eu vou arranjar a minha Beyoncé?

VINCENT Quando arranjares uma cara nova!

BOSCO Ihhhhhh!

INNOCENT Quê, quê! De que é que tás a falar? Tenho uma cara linda.

 

Fica ali parado a mostrar a cara de perfil.

 

Podia ser modelo. O próximo Top Model do Ruanda, iô.

VINCENT Ser modelo é para miúdas.

INNOCENT Isso é o que tu achas. Vou ser o próximo Djimon Hounsou. Olha para aquela cara. Olha para estes abdominais. Podiam cortar diamante.

 

Riem-se.

 

BOSCO Innocent, pára lá de sonhar e passa a bloody bola!

 

Innocent passa a Bosco. Bosco faz um círculo rápido ou a forma de um oito à volta dos outros rapazes.

 

VINCENT Eh, olha para aquilo! Está em modo campeonato do mundo!

BOSCO Da próxima vez que o campeonato do mundo for em África, vou estar pronto.

VINCENT Achas que consegues fintar tão bem como eu?

 

Vincent salta na sua direcção e tenta roubar-lhe a bola. Bosco evita-o velozmente.

 

BOSCO Não, melhor!

INNOCENT Ahhh ha ha ha ha! Deu-te uma lição. Deu-te uma lição.

BOSCO Que é que aprendeste, Vincent, hã? Que é que aprendeste?

 

Bosco está a correr para a outra ponta do campo.

 

Olha como eu faço amor com a bola. Vês como ela faz o que eu digo? Esta bola é a minha puta!

INNOCENT Teve a treinar.

VINCENT Tou a ver.

BOSCO Vou a caminho do mundial!

VINCENT Mundial o caraças!

BOSCO Mundial, eh! Da próxima vou estar pronto. Quando voltarem a África vou ser Mundial, iô!

 

Marca golo!!! Exibe-se perante um público imaginário.

 

(Fazendo os sons da multidão) Ahhhhhhhhh! Ahhhhhhh!!!

 

Faz uma vénia. Depois percebe que pisou num monte de estrume de vaca.

 Sexta Insónia - Portimão Sexta Insónia - Portimão

Ohhhhh, meeeeeeeen. Meeeeeeen. Meeeeen!

 

Os outros riem-se.

 

VINCENT Dizem que dá sorte pisar em merda de vaca.

BOSCO Quem diz?

VINCENT Os antepassados.

BOSCO Eh-eh! Eles nunca sabem de que raio é que estão a falar. (Bosco continua a inspeccionar os pés.) Meeeeeeen. Meeeeen!

INNOCENT Seja de quem for a vaca que fez isso foi amada.

BOSCO Agora tenho de tirar esta merda de entre os dedos. Que bloody nojo.

INNOCENT Sorte tens tu de não ter de a tirar de entre os dentes.

 

Vincent pega na bola e dá toques com o joelho.

Os rapazes continuam a rir.

 

VINCENT (sobressaltando-se) Eh-eh, que horas são?

 

Bosco põe a mão no bolso e tira um iPhone. Vincent vai a correr tirar alguma coisa da mochila.

 

INNOCENT Eh – Onde é que arranjaste esse iPhone?

VINCENT Conhecendo-te, deves tê-lo roubado.

BOSCO Ei, não sou nenhum carteirista!

INNOCENT Então como é que o arranjaste?

BOSCO Tirei-o da mochila daquele americano. No cabaret.

INNOCENT Então como é que não és carteirista?

BOSCO Não lhe tirei a carteira, tirei-lhe o iPhone. Diferenças, meu caro Innocent. Diferenças.

INNOCENT És um rematado ladrão.

BOSCO Bem, um jovem tem de ter jeito para alguma coisa.

VINCENT Porque para o futebol é que não tens jeito de certeza.

 

Vincent tirou o seu rádio transístor e está a tentar pô-lo a funcionar.

 Sexta Insónia - Portimão Sexta Insónia - Portimão

INNOCENT (brincando com a bola) Vincent, ainda me estás a dever a desforra!

VINCENT Horas de ouvir as notícias.

BOSCO Ah, o “velho” está a tentar ouvir as notícias.

VINCENT Chama-me “velho” outra vez, dou-te a sova que mereces de um velho.

BOSCO Ohhhhhh, / meeeeeeeen.

INNOCENT Aqui não se apanha as notícias. Nunca se consegue pôr o rádio a funcionar aqui.

 

Por um momento apanha sinal. Do altifalante sai uma canção de Beyoncé. Bosco e Innocent começam a tentar dançá-la.

 

BOSCO Mesmo nas mais remotas colinas do Ruanda ouve-se Beyoncé.

 

Innocent começa a cantar a canção, mas outra canção cavalga o vento e prende-lhe a atenção. A aldeia está a gemer. Vincent desliga o rádio.

 

Eh-eh, porque é que / desligaste!

VINCENT Chhhhhhh, tá calado, pá.

BOSCO Quê, quê?

 

Há gente a cantar muito ao longe. Muito longe, do fundo do vale.

 

Por que bloody raio é que eles tão a cantar?

INNOCENT Não sei.

BOSCO É o quê?

INNOCENT Se parares de ladrar uns segundos talvez a gente consiga ouvir.

VINCENT A canção. Acho que a conheço.

BOSCO É a –

VINCENT (interrompendo abruptamente) Ccchhh… Escuta!

 

A aldeia continua a cantar. Um gemido profundo. Tempo.

Innocent e Vincent olham um para o outro.

 Sexta Insónia - Portimão Sexta Insónia - Portimão

INNOCENT Será –

BOSCO Verdade?

VINCENT Pensei que nunca ia ouvir essa canção.

INNOCENT Pensei que nunca a ia ouvir na vida.

BOSCO É a canção da…

VINCENT E INNOCENT Temporada da catana.

EMMANUEL (fora de cena) Tenho saldo MTN! Saldo Zazu! Saldo Orange!

 

Um rapaz novo, Emmanuel, está a vender saldo de telemóvel. Veste um casaco amarelo claro. Tem uma idade próxima dos rapazes mais novos, mas é muito mais magro. Tem a doença. Emmanuel está sem fôlego por ter trepado ao cimo da colina.

 

BOSCO Eh-Eh! Emmanuel! É verdade?

INNOCENT Emmanuel!!

EMMANUEL Isso que dizem. A aldeia está a comemorar. Ouvimos todos na rádio.

INNOCENT Nós não.

BOSCO O teu rádio não vale um cu, Vincent.

VINCENT Não me fodas, Bosco.

BOSCO (rindo) Tenho de ligar à minha mamã. Emmanuel, preciso de um cartão SIM.

VINCENT Dá pra pôr um cartão MTN no iPhone?

BOSCO Já o desbloqueei, iô.

VINCENT Butter!

EMMANUEL 1000 francos por um cartão. Mas para ti, Bosco, são 1500.

BOSCO Eh-eh! Isso não é roubar nem nada.

EMMANUEL Eu sei que os tens.

BOSCO 1100.

EMMANUEL 1300.

BOSCO (rápido) 1250.

EMMANUEL (rápido) 1300.

BOSCO (mais rápido) 1251.

EMMANUEL (ainda mais rápido) 1350!

 

Bosco chupa os dentes e dá-lhe os francos. O gemido da aldeia aumenta.

 Sexta Insónia - Portimão Sexta Insónia - Portimão

BOSCO Devias ser presidente do Uganda, habilidoso como és.

 

Dá-lhe os francos que tirou do bolso.

 

INNOCENT A minha mamã costumava cantar-me isto quando me embalava. Eu tinha só este tamanho. “Quando eles voltarem para casa esta canção cavalgará o vento.”

 

Canta a canção, conhece-a tão bem…

 

Não é a canção mais bonita que alguma vez ouviste, Vincent?

 

Vincent está claramente a tremer.

 

EMMANUEL O Presidente acabou de anunciar. Começam a libertação na sexta.

INNOCENT Sexta?

VINCENT Tão cedo?

EMMANUEL Tão cedo. (Reconhecendo a sua presença.) Vincent.

VINCENT Emmanuel. Como é que está a tua irmã?

EMMANUEL A Espérance tá fixe.

 

Bosco revira os olhos.

 

BOSCO O que é que vais fazer quando encontrares o teu papá, Innocent?

INNOCENT Man, sei lá. Se calhar vou –

BOSCO Abraçá-lo?

INNOCENT Não, vou deixar as minhas irmãs abraçá-lo. Isso é coisa para as raparigas.

BOSCO Se calhar vais –

 

Teatro Oficina - Guimarães Teatro Oficina - Guimarães INNOCENT Trazer-lhe uma cerveja Primus!

BOSCO A mamã disse que era a preferida do meu papá. Primus.

INNOCENT A cerveja preferida do Ruanda.

VINCENT É a única cerveja do Ruanda.

INNOCENT Bem, a minha tia vai fazer um jerrican de cerveja de banana para comemorar.

BOSCO Bem, então eu vou lá aparecer!

INNOCENT Não posso acreditar. Não posso acreditar que eles vão voltar para casa!

BOSCO Os nossos papás vão finalmente voltar.

INNOCENT Não mais teremos de andar pelas ruas com fome.

BOSCO Nem roubar batatas dos campos dos outros.

INNOCENT Nem criar os nossos irmãos mais novos.

BOSCO Nem levar as nossas irmãs ao altar.

INNOCENT Nem ser os homens da casa.

EMMANUEL (secamente) Os assassinos vão voltar para casa.

 

Tempo.

 

BOSCO Ah-ah, porque é que lhes chamas isso? Eles não são isso.

INNOCENT Bem, tecnicamente –

BOSCO Tecnicamente são isso, mas não precisavas de lhes chamar isso.

EMMANUEL Bem, sou um rapaz franco.

BOSCO Franco?

EMMANUEL Só estou a dizer.

BOSCO Não estás a dizer nada –

INNOCENT (interrompendo) Quantos deles é que o teu pai matou, Bosco?

BOSCO (enchendo orgulhosamente o peito) Dizem que o meu pai matou 678.

RAPAZES (MENOS VINCENT) Uau!

INNOCENT Bem, dizem que o meu pai matou 752.

RAPAZES (MENOS VINCENT) Uau!

BOSCO Bem, mas ninguém ganha ao pai do Vincent. Não é, Vincent?

VINCENT (sorriso amarelo, cabeça curvada) É o que dizem.

BOSCO É conhecido nas redondezas por ter matado mais tutsis. Mais do que qualquer hutu. É por isso que o filho se chama Vincent.

EMMANUEL A sério?

BOSCO Vincent o Invencível!

INNOCENT Vincent o Invencível, Júnior!!

BOSCO Ah, oh!

INNOCENT Dizem que o pai dele era tão frio que uma vez obrigou um homem a cortar os próprios filhos aos bocados.

BOSCO Dizem que matou mais de 40 homens numa só noite.

INNOCENT Dizem que um homem lhe implorou para ser morto com uma bala. Mas o pai dele era tããããããão frio que o cortou aos bocados com a catana na mesma.

INNOCENT & BOSCO Uuuuuuuuu!

BOSCO Não, não, não. Façam lá melhor que isto. Dizem, dizem DIZEM que ele cortou a cabeça de uma tutsi e obrigou os filhos dela a jogar à bola com aquilo.

 

Bosco atira a bola ao ar, brincalhão. Ficam todos ali a imaginar…

 

INNOCENT Man, a sério, isso é mesmo frio de mais. Frio como gelo. Frio como gelo.

EMMANUEL Com que então és tu o filho do “Carniceiro”?

 

Tempo.

Teatro Oficina - Guimarães Teatro Oficina - Guimarães

VINCENT (cabeça ainda curvada, ficou notoriamente desconfortável) Iá, é isso que dizem.

 

Innocent e Bosco olham para Vincent cheios de orgulho, Emmanuel cheio de medo e Vincent cheio de vergonha.

 

BOSCO Emmanuel, quem é o teu pai?

 

Silêncio. Emmanuel olha em volta.

 

EMMANUEL Não tenho pai.

INNOCENT Toda a gente tem pai.

BOSCO Iá, toda a gente tem pai.

EMMANUEL Eu não tenho pai.

BOSCO Impossível.

EMMANUEL Porque é que é impossível?

BOSCO É biologicamente impossível tu não teres pai.

EMMANUEL Como é que sabes?

BOSCO Porque sei dessas coisas. Li num livro que roubei.

INNOCENT Minha nossa senhora.

VINCENT Bosco!

BOSCO Quê? Quê? Ninguém o tava a usar. Tive de marrar antes do grande momento.

INNOCENT Eu já tive o meu grande momento –

BOSCO Mentiroso!

INNOCENT Tive tive. Ela disse que me portei bem!

BOSCO Mentiroso!

INNOCENT Fala para aí, Bosco.

BOSCO O bloody diabo que te carregue!

INNOCENT Não, a ti! Vá lá, Emmanuel. Diz-nos lá quem é o teu pai?

EMMANUEL É como eu já disse, não tenho pai.

BOSCO Qual semente foste cuspido da espada da vida. Só um homem te pode cuspir da sua espada. (Faz gestos.)

INNOCENT Bosco, de certeza que leste esse livro de biologia como deve ser?

EMMANUEL Não tenho pai. A minha mãe diz que eu fui concebido como Jesus.

 

Tempo.

 

INNOCENT Como Jesus?

EMMANUEL Sim, juro por Deus. Sou uma criança-milagre. Nascido durante o genocídio. Por entre a destruição e a morte, Deus abençoou-a com vida, eu. “Imaculado Emmanuel.” Sou o resultado de uma “concepção virginal”.

 

Innocent e Bosco olham um para o outro.

 

BOSCO (sorrindo) Tu?

EMMANUEL Foi o que ela disse. Venho directamente de Deus.

BOSCO Bem, eu de certeza que não li isso em nenhum livro de biologia.

EMMANUEL Devias ter roubado uma Bíblia, assim ficavas a saber.

INNOCENT Bem, a mãe dele chama-se Maria.

 

Bosco e Innocent riem, enquanto Vincent fica cada vez mais desconfortável.

 

VINCENT Deixem-no em paz.

BOSCO Então tu achas que a tua mãe era virgem quando te teve?

EMMANUEL Claro que não. A Espérance nasceu de um homem, mas eu, eu nasci de Deus. Como Jesus. Sou filho de Deus.

BOSCO (rindo) Não somos todos.

EMMANUEL Não dessa maneira. Sou especial. Não preciso de pai.

INNOCENT Nãããã, eu acho que sei quem é o teu pai.

EMMANUEL Sim, o meu pai é Deus.

BOSCO Não, eu acho que o teu pai é o Claude.

INNOCENT Ou o Alphonse.

BOSCO O pai dele podia ser o Jean-Pierre.

EMMANUEL Eu nasci como Jesus.

EMMANUEL Eu não tenho pai.

INNOCENT Ou o Olivier.

INNOCENT Ou o Gazazi, irmão dele!

INNOCENT Ou o Vianney.

BOSCO Ou o François.

BOSCO Ou o Jonas.

VINCENT Deixem-no em paz.

EMMANUEL Foi o que a minha mãe disse! “Imaculado Emmanuel!” É isso que eu sou.

 

Emmanuel afasta-se a correr o mais que pode colina abaixo.

 

VINCENT DEIXEM-NO EM PAZ!!!

 

continua 

(…) 

 

 

Translation:  Francisco Frazão

por Katori Hall
Palcos | 9 Julho 2011 | assassinos, Ruanda, teatro