Dos primórdios do rap em Portugal: margens e centro, acomodação e emancipação

Bilhete para o concerto de Djamal e GNR | 1997 | Coliseu do PortoBilhete para o concerto de Djamal e GNR | 1997 | Coliseu do Porto

A recente discussão em torno do músico Valete lançou um debate sobre o lugar da mulher no rap e da cultura hip-hop e da permanência de uma enraizada misoginia em alguns dos seus cultores. Num dos seus últimos temas, o rapper conta a história de um homem que encontra a mulher com o melhor amigo, desencadeando uma raiva machista que o conduz a insultos vários e a imaginar um cano de caçadeira enfiado na garganta da companheira (1). Valete considerou tratar-se de um gesto artístico que visou produzir ficção com recurso à violência. As vozes críticas apontaram-lhe a reiteração de estereótipos sobre as mulheres e a glorificação da violência machista, num país que tem vindo a defrontar-se com vários casos de feminicídio . Para além do velho tema da relação entre ética e estética, o caso permite equacionar até que ponto o rap — entendido como lugar de denúncia do racismo e de visibilidade do quotidiano de grupos subalternos racializados — não tem sido, ele próprio, um espaço complacente com outras invisibilidades e opressões.
 
O livro Fixar o (In)Visível. Os primeiros passos do RAP em Portugal (1986-1998), de Soraia Simões de Andrade, lançado por estes dias, traz-nos elementos importantes para pensarmos este tema. De um modo geral, analisa o surgimento do rap e da cultura hip-hop em Portugal e o cruzamento entre essa prática artística emergente, os atores que as corporizaram e as indústrias culturais no Portugal do final do século XX. Fruto de uma investigação académica aqui reelaborada, o livro descreve os primórdios do rap tomando como balizas temporais os anos de 1986 e 1998: a primeira data marca o surgimento do programa Mercado Negro, transmitido pela Correio da Manhã Rádio e momento pioneiro de mediatização da cultura hip-hop; a segunda data corresponde ao ano de realização da Expo98, período em que se concretiza, segundo a autora, uma inédita visibilidade social, com consequente retorno comercial, de alguns dos mais destacados grupos.
 
O primeiro capítulo faz uma digressão pelo surgimento do rap no contexto norte-americano, à qual se segue uma análise dos seus momentos e espaços de receção em Portugal. Aqui se anota como a emergência do rap no país “permitiu reforçar os mecanismos de identidade que vieram a dar um sentido maior aos percursos biográficos da maioria dos pioneiros” (2), estabelecendo uma aproximação aos quotidianos de onde eram oriundos ou dos quais descendiam. Ao mesmo tempo, essa emergência foi também seguida por um caminho em direção ao mainstream das indústrias discográficas e ao acesso a meios de comunicação e canais independentes com impacto nesses anos do cavaquismo. Ilustrado nos casos da primeira coletânea com músicas rap — Rapública, de 1994, onde se destaca Boss AC, pouco depois autor do hino de campanha de Cavaco Silva; e sobretudo o single «Nadar», dos Black Company — e de edições que imediatamente lhe seguem, a autora evidencia traços dessa articulação com o que designa como «cultura do centro», num período em que a dependência dos estúdios de gravação era naturalmente maior do que a que virá a existir na era da internet. Esse cenário conduz Soraia Simões de Andrade a definir o rap como sendo «das práticas musicais de matriz urbana [aquela] que, ironicamente, nos primeiros anos da sua existência mais se tornou um produto daquilo que censurou, o modus operandi das indústrias culturais e do contexto social e económico em questão» (3).
 
Simultaneamente, o rap funcionou também como um poderoso questionador de identidades e de exclusões, tomando frequentemente o subúrbio como ponto de observação e crítica do racismo, da exclusão social, da pobreza, da xenofobia e da violência policial. Se «Nadar», dos Black Company, se tornava num grande sucesso nas rádios e televisões, surgem por esta altura temas e intérpretes que fazem uso da língua cabo-verdiana e outros que acentuam letras de forte cariz político, de que General D foi dos exemplos mais evidentes. Os capítulos 2 e 3 sublinham essa viagem que o rap fez nos anos noventa de passagem da rua à sociedade de consumo, ao mesmo tempo que se consolidavam discursos associados à «convivência racial» e ao combate às injustiças sociais e novas performances e espaços de socialização que permitiram igualmente definir-se como um território de resistências.
 
No capítulo 4, Soraia Simões de Andrade prossegue identificando trajetos menos percetíveis nesse campo musical. Desses «percursos de invisibilidade» destaca os grupos Divine e Djamal, os únicos grupos de rap femininos a gravar na década de noventa e que abordaram, de modo explícito, a violência sexista. Num contexto artístico em que a mulher surge, ora coisificada ora como membro de coro ou cantora de refrão, estas artistas pioneiras funcionam como contraponto a um universo dominantemente masculino nos seus protagonistas, nas suas práticas e nos seus valores. Um dos mais evidentes méritos deste livro consiste justamente nessa desocultação de uma história alternativa do rap que confere um lugar de visibilidade e reconhecimento a rappers que questionaram o machismo e a violência e que, de certo modo, se configuraram como precursoras de uma outra e mais recente geração de rappers: de Capicua a Mynda Guevara.
 
À falta de referência nas fontes escritas, o livro serviu-se de uma ampla recolha de material audiovisual — boa parte dele tem a autora disponibilizado através do site Mural Sonoro — e de um aturado processo de recolha de testemunhos que permitiu evidenciar momentos e vivências absolutamente decisivos para caracterizar essa primeira vida do rap em Portugal. Através da história oral, Soraia Simões de Andrade traz-nos assim uma análise crítica da emergência desse campo musical e das dinâmicas sociopolíticas que o determinaram, desafiando a primazia masculina na história existente sobre o rap, salientando a dependência das indústrias musicais, analisando os repertórios e trajetos dos seus protagonistas e realçando o papel da cultura hip-hop na socialização da juventude — desde logo, da juventude negra e afrodescendente — em Portugal. Trata-se, pois, de um livro sobre as visibilidades e invisibilidades no interior de um campo musical. Mas também sobre a construção da juventude nos anos 80 e 90 e sobre o cavaquismo — e o anticavaquismo de direita, cujo exemplo maior foi o Independente, com insuspeitos e indeferidos laços com este universo, como o livro mostra — enquanto tempo político definidor de um Portugal liberal, cosmopolita e europeu, que tanto se serviu do rap como eco multicultural de um país em busca da modernidade, como concitou a crítica de quem fez da prática musical um campo de expressão política contra o racismo e as desigualdades.

_____________________(1) B.F.F: «(…) Forreta, era o que ouvia nas tuas bocas / Quando fui eu que comprei as tuas jóias, as tuas roupas / Puta, cona largada, pura insana / Encharcada de moralismo sempre armada em puritana (Puta) / Agora vais sentir a sequela / Com a caçadeira enfiada na tua goela / A bala a perfurar a traqueia / E o teu corpo como plateia enquanto a morte fraseia». Para um retrato da polémica, veja-se: Fernanda Câncio, «Valete. O rapper, a adúltera, a caçadeira e a “pide feminista”», Diário de Notícias, 18 de setembro de 2019. Mário Lopes, “B.F.F., o novo vídeo de Valete, glorifica a violência machista?”, Público, 21 de Setembro de 2019. A tensão subiu mais recentemente, com Valete a fazer um vídeo em que critica o «feminismo burguês» e a produzir ameaças contra Fernanda Câncio.
(2) Soraia Simões de Andrade (2019), Fixar o (In)Visível. Os primeiros passos do Rap em Portugal (1986-1998). Casal de Cambra: Caleidoscópio, p.25.
(3) Ibidem, p. 34._____________________

 

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por Miguel Cardina
Palcos | 23 Outubro 2019 | discurso, música, periferia, racial, rap