Vidas que ficaram do outro lado

As guerras resistem a confinar-se aos limites históricos nos quais ocorreram. Sabemos como os seus estilhaços se repercutem continuadamente no tempo, produzindo mecanismos públicos e privados de ressignificação e silenciamento. Pela sua própria natureza disruptiva, a experiência da guerra pode transformar-se numa marca funda que perdura e que frequentemente toca aquelas e aqueles que, não tendo da guerra uma vivência direta, se encontram numa posição de proximidade pessoal, afetiva e/ou familiar com quem combateu, acabando por ser atingidos pelas ressonâncias desse (in)transmitido. Se esta (pós-)memória é sempre, na sua origem, um gesto de reconstrução do passado, alicerçado tanto (ou mais) no diálogo quanto na sua rasura, ela necessariamente postula a existência de um domínio privado onde essas memórias (não) circulam.
Durante anos, a memória da guerra viajou entre silêncios públicos e murmúrios domésticos. Mas era aqui, na então metrópole e nas famílias destes homens outrora combatentes, que tudo se passava. O que acontece, porém, quando os “filhos da guerra” são outros, aqueles deixados em Angola, Guiné e Moçambique pela tropa portuguesa, hoje homens e mulheres, na casa dos 40 e 50 anos, que nunca conheceram o pai? Um livro recentemente lançado - Furriel não é nome de pai. Os filhos que os militares portugueses deixaram na guerra colonial, de Catarina Gomes – lança algumas pistas.
A autora designa-o como uma “pós-reportagem”, na medida em que o livro se funda em trabalho jornalístico prévio, surgido no jornal Público e realizado na Guiné-Bissau e em Angola. Ao decidir trabalhar estes filhos da guerra – cujo abandono está bem evidente em expressões usadas para os classificar junto de ex-combatentes portugueses (“filhos do vento”) ou na Guiné-Bissau (“restos de tuga”) – Catarina Gomes passou a ser parte ativa do processo de busca destes pais / filhos: recebeu emails e telefonemas, juntou peças, aproximou gente.

the behaviour of being | 2017 | Pauliana Pimentelthe behaviour of being | 2017 | Pauliana Pimentel
Não se sabe ao certo quantos são nem o livro tem essa pretensão contabilística. Partindo de alguns casos exemplares com os quais foi contactando - e de uma prosa magnética na sua humanidade, mas onde os sujeitos não são despojados de complexidade -, a autora constrói, sobretudo a partir do caso da Guiné, um retrato que parece regido por algumas notas dominantes: os atos sexuais que geraram aqueles filhos são tendencialmente vistos como despojados de violência ou interesse; o tom de pele mais claro, denunciador de atos sexuais com o colonizador, foi motivo de ostracismo social e frequentemente familiar; do lado de cá, os pais tentam maioritariamente esquecer ou resistem aos contactos, ciosos dos impactos da descoberta na sua família ou da transformação desses filhos em herdeiros.
A eles motiva-os encontrar o pai, dar sentido a uma história com falhas, encontrar novas possibilidades de vida. A obtenção de cidadania portuguesa surge como miragem. Pergunta a autora: “fará sentido que Portugal conceda o direito à nacionalidade a quem foi obrigado a sair há 500 anos (caso dos judeus sefarditas), reparando, justamente, um erro histórico, e ignore a existência destes filhos tão recentes de homens portugueses que combatiam a mando do Estado português?” (p. 22).
Se transportam a identidade gravada no corpo, como um registo inescapável, é também uma parte da sua identidade que lhes é oculta. Em alguns casos, mudam de nome para o colocar em linha com o que julgam ser o apelido do pai, ensaiam quando podem pesquisas através da internet, constroem referenciais a partir de fragmentos e efabulações. Habitam um paradoxo: vivem com uma identidade de filhos demasiado visível, porque inscrita no corpo; a ausência do pai – do seu nome, das suas características físicas, de um relacionamento filial -  torna essa pertença abstrata e incompleta. São vidas que ficaram do outro lado.

 

Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº 648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.

por Miguel Cardina
A ler | 10 Junho 2018 | Catarina Gomes, filhos do vento, guerra colonial, memória, soldados