As estátuas também morrem
O filme As estátuas também morrem [Les statues meurent aussi], de Alain Resnais, Chris Marker e Ghislain Cocquet é fruto da encomenda ao primeiro dos três cineastas, por parte da revista Présence Africaine, de um filme sobre a dita “arte negra”. A Présence Africaine, fundada, em Paris, em 1947, afirmou uma geração de novos escritores africanos, entre os quais Aimé Césaire e Léopold Senghor, que seriam autores decisivos da segunda metade do século XX.
Quando a nova Constituição francesa, falava ainda, em 1946, de “União Francesa” referindo-se à interdependência entre a metrópole e os territórios não europeus sob domínio gaulês, a Présence Africaine inaugurava já uma perspectiva pós-colonialista, afirmando as especificidades culturais de África e organizando-se em torno da noção de négritude.
Alain Resnais implica Chris Marker e Ghislain Cocquet no projecto e os três cineastas procuraram conselho e acompanhamento junto de um especialista de renome, o coleccionador e marchand Charles Ratton, que figura no genérico de abertura como Consultor Artístico. Uma das ideias-mestras do filme a realizar era esta: o escândalo que é o simples facto da arte africana não estar, à época, representada no Museu do Louvre (onde as grandes tradições artísticas não-ocidentais foram incluídas), mas no Museu do Homem. Inicialmente intitulado “L’art nègre”, o projecto chamar-se-ia finalmente “Les statues meurent aussi” e resulta num documentário que, mais do que sobre a “arte negra”, reflecte sobre a museologização dos objectos extraídos a uma cultura onde não há museus e, por consequência, sobre as relações de poder – económico, político e simbólico – entre a cultura europeia e as culturas africanas, sob a organização colonial.
Iniciado em 1950, As estátuas também morrem teve estreia no Festival de Cannes de 1953 e obteve, no ano seguinte, o Prémio Jean Vigo, por um júri onde se contavam o cineasta Jacques Becker, o crítico Georges Sadoul e o escritor Jean Cocteau. Este filme-colagem, tido por fundador de um género de documentário a que se chamou “ensaio cinematográfico”, surge num período de violentas tensões políticas e resulta num delicado revelador deste mundo em transformação. Com a guerra fria, a Europa vive os primeiros sinais da sua secundarização nos destinos do mundo, a favor de americanos e soviéticos, vendo-se dividida pelo muro de Berlim, a partir de 1961. Neste contexto, e numa França que assiste à emergência dos movimentos internos pela descolonização, a emancipação política dos países africanos até então sob sua influência não tardaria: Marrocos torna-se independente em 1956 e a Argélia em 1962.
As estátuas também morrem trata do desentendimento entre o homem branco e o homem negro, detendo-se nos equívocos e na violência que a presença dos artefactos africanos nos museus europeus (tanto quanto a sua ausência do Louvre, o mais nobre desses museus) desvenda.
As Vozes do Silêncio [Les Voix du Silence], livro de André Malraux, editado em 1951, assombra As estátuas também morrem, pois que o filme é também uma resposta à ideia malrausiana da perpétua metamorfose dos objectos de uma cultura, no curso dos tempos. Quando Malraux vê na museologização, a segunda vida de uma estátua – a sua ressurreição –, Resnais, Marker e Cocquet vêm, pelo contrário, a morte da função social do objecto e o esquecimento dos aspectos fundamentais da cultura de origem que o produziu. Donde, como anunciam na sequência de abertura do filme: “Quando os homens morrem, entram na História. Quanto as estátuas morrem, entram na Arte. Esta botânica da morte é aquilo a que chamamos Cultura.”
André Malraux alertava para os perigos do pensamento nostálgico centrado no fundamentalismo das origens, repetindo que “nada nos devolverá os sentimentos de um cristão do século XII”. A ressurreição que o museu opera é a devolução dos objectos a uma relação viva, que não depende da empatia mas da intelecção. É justamente a relação empática que Malraux reprova na tradição arqueológica germânica, aquela que inspiraria a pretensa adesão da Alemanha nazi ao ideal clássico, com as consequências históricas que conhecemos. Para Malraux (como para Walter Benjamin), ver é ver hoje, num trabalho de actualização histórica das possibilidades de significado e de leitura que cada objecto encerra.
Para os autores de As estátuas também morrem, o objecto confiscado ao seu contexto sócio-histórico de origem torna-se refém de um fim estrito e imprevisto: a contemplação estética. “Nós olhamos a arte negra como se ela encontrasse a sua justificação no prazer que nos proporciona” ouve-se no filme. Na encruzilhada da religião, do belo e da utilidade, a arte negra escaparia, ainda assim, à nova institucionalização porque o museu não permite compreender “as intenções do negro que o criou, as emoções do negro que o observou”, como diz o texto do filme na voz grave de Jean Négroni, concluindo que “tomamos por estátuas o que é o rosto de uma cultura”.
Os lentos travellings sobre as estátuas de olhos vazios – muitas de carácter funerário – que emergem da massa negra (do universo fechado do Museu, duma cultura desconhecida e da noite dos tempos) e a ela regressam, fazem-nos olhá-las num face a face que nos alerta para a secreta resistência que elas parecem oferecer à cultura de acolhimento (“Estas imagens ignoram-nos. Elas são de um outro mundo.”) e à crença moderna na redução dos fenómenos à sua descrição (“Colonizadores do mundo, queremos que tudo nos fale: os animais, os mortos, as estátuas”). O filme lembra-nos: “Estas estátuas são mudas.”
Ao filmar as colecções de arte africana do British Museum (em Londres), do Museé du Congo Belge (em Bruxelas) e do Musée de l’Homme (em Paris), As estátuas também morrem faz-nos compreender que a nossa leitura da arte negra é essencialmente etnocêntrica, pelo que “reconhecemos a Grécia num cabeça africana com 2000 anos; o Japão, numa máscara de Logoué; mas também a Índia, os ídolos sumerianos, os nossos Cristos romanos ou a nossa arte moderna.” Ao mesmo tempo, a dita “arte negra” tornou-se “uma língua morta” ou derivou para a expressão decadente do chamado “artesanato indígena” destinado a clientes europeus, “uma arte de bazar” onde a “exigência religiosa” da criação e do rito teria sido substituída pela “exigência comercial” do bibelô e do espectáculo. O negro escravo trabalha (em cadeia industrial como Ford nas terras de Tarzan) e o negro fantoche entretém.
Na Europa, por outro lado, os negros lutavam por uma cidadania de pleno direito, além dos lugares públicos confinados à música ou ao desporto, mesmo se, para Resnais, Marker e Cocquet, um negro em movimento seja ainda “arte negra”. Num Ocidente que tradicionalmente elevou o pensamento sobre a baixeza dos corpos, a qualidade dos lugares a que o negro é votado só mistifica o orgulho do homem branco.
É esse orgulho branco que, apesar de tudo, Werner Herzog não consegue colocar em perspectiva no seu Fata Morgana, filme rodado em 1969 no deserto do Sahara e no Quénia, entre outras localizações africanas. Fata Morgana surge na vaga do Novo Cinema Alemão, protagonizada por cineastas de esquerda (Rainer Werner Fassbinder, Werner Herzog, Wim Wenders e Werner Schroeter, entre outros) que, a partir dos anos 60, procuraram estabelecer uma renovada cultura na Alemanha Ocidental, com manifesto repúdio pelo passado nazi. Mesmo que não aspire aos princípios da narrativa tradicional e aparente querer descobrir a alteridade cultural, a câmara de Herzog, em Fata Morgana, varre as paisagens com evidente certeza e o filme não ultrapassa o modo impressionista compassado pelas diferentes escalas dos espaços, as texturas das matérias e os vislumbres de exotismo. A promessa da sequência de abertura do filme em que, por oito vezes, assistimos à aterragem de um avião, repetição que nos faz aí compreender uma crítica mordaz à abrupta imposição do colonialismo em África, no embalo do ritmo industrial e no sentimento do homem branco como providência, não se vê cumprida pelo filme nas três partes em que se divide: Criação, Paraíso e Idade de Ouro.
A primeira parte, “Criação”, recita um texto sagrado do século XVI de índios da Guatemala, que inclui o mito maia da criação do mundo, lido por Lotte Eisner. Lotte Eisner foi uma crítica de cinema alemã, judia perseguida pelo nazismo, autora de O Ecrã Demoníaco [Die Dämonische Leinwand] (obra histórica de 1952 sobre o cinema alemão) e que, em França, trabalhou desde 1945 com Henri Langlois na constituição da Cinemateca Francesa. Tornou-se uma figura de referência para os jovens cineastas germânicos da geração seguinte.
A narração da génese do mundo, na velha voz de Lotte Eisner, acompanha sequências de imagens de um mundo selvagem povoado de construções em ruínas e de despojos da Segunda Grande Guerra, dispersos no deserto africano, ao som da música de Mozart e de Händel. São evocadas as várias formas de destruição e de opressão étnica, aproximando o anti-semitismo nazi e o racismo colonialista, a história política e a militância ecologista.
Só na segunda e terceira partes – “Paraíso” e “A Idade do Ouro” –, os homens se tornam personagens do filme e surge a música de Leonard Cohen e a poesia contemporânea.
O filme que, no projecto original, pretendia ser uma obra de ficção científica sobre um planeta em agonia e tem por título a expressão italiana para “miragem” (que para alguns caracterizaria a cultura alemã, de que o cinema expressionista, com a figuração de estados alterados da percepção é representativo), resulta numa viagem enfática por paisagens distópicas, formas de vida em territórios hostis (um naturalista alemão discorre sobre as qualidades de um réptil do deserto que suporta elevadíssimas temperaturas), refinarias e chaminés em chamas, a degradação das terras africanas pela sua exploração industrial e a limitação da sabedoria humana quando comparada com a vastidão natural.
Como na sequência de As estátuas também morrem, em que avistamos num sobrevoo uma aldeia modernista de tipo colonial no coração africano, enquanto África é definida como um laboratório, “desde há vários decénios”, onde se procura fabricar “o bom negro sonhado pelo bom branco”, Herzog, em bom europeu, fantasia ainda com o bom selvagem e cultiva a nostalgia de um planeta edénico.
Assim, As estátuas também morrem aventura-se numa reflexão política que o lirismo do cinema de Herzog nunca arriscou com a mesma ambição e que custará ao filme de Resnais, Marker e Clocquet uma história de ímpares atribulações.
Num contexto de grande liberdade de imprensa, o cinema era, nos anos 50 e 60, objecto de um controlo oficial incomparavelmente mais cerrado. As estátuas também morrem teve exibição interdita em França entre 1953 e 1963, sob vários pretextos que escamoteavam motivações políticas, sobretudo pelas questões sociais que a terceira bobine do filme afrontava. Em Janeiro de 1955, Léopold Senghor, então deputado, interpela directamente, numa sessão da Assembleia Nacional, o Ministro da França Ultramarina, sobre as razões de proibição do filme, lançando a acusação de uma censura motivada “pelo preconceito de raça, condenado pela Constituição.” No mesmo ano, Jean Rouch vê-lhe negado pelo Governo francês o pedido de uma autorização excepcional para a projecção do filme, “apenas aos especialistas”, no âmbito do 1º Seminário Internacional do Filme Etnológico. Em 1957, um visa comercial era passado às duas primeiras bobines do filme e em 1963, uma versão truncada conheceu a luz das salas de cinema. Só em 1968 seria definitivamente permitida a projecção pública do filme na integralidade. A vida de As estátuas também morrem revela uma França em transformação e a sequência da visita oficial do alto governante colonial, com panamá branco, que aí surge, num desfile aparatoso diante da população africana, é memorável, posto que esse homem é François Mitterrand, futuro presidente da República. De esquerda. Socialista.
As estátuas também morrem foi realizado um ano antes do primeiro documentário individual de Marker, Olympia 52, em torno dos Jogos Olímpicos de Helsínquia; e dois anos antes do impressionante filme de Resnais, Noite e Nevoeiro [Nuit et Bruillard], documento e comentário únicos sobre os campos de concentração e de extermínio nazis; ou de Hiroshima, meu amor [Hiroshima, mon amour], a primeira longa metragem do cineasta, em 1959, sobre o horror da guerra e o traumatismo produzido pelo desencontro cultural. As artes das culturas africanas só em 2000 seriam “integradas” no Louvre, pela criação do Musée du Quai Branly, iniciativa de Jacques Chirac.
Em As estátuas também morrem, o ânimo da cultura africana é o rosto da morte do imperialismo europeu: donde, as imagens das estátuas neoclássicas, corroídas pela chuva e pelos ventos, no início do filme. Mas também da morte e de como o labor das formas inteligentes lhe faz frente. “O povo das estátuas é mortal” e, um dia, também elas se decompõem. Retenhamos o lamento cravado no coração da Europa do século XX e que este filme nos repete: “Um objecto está morto quando o olhar vivo que pousava sobre ele, desapareceu. E quando nós desaparecermos, os nosso objectos irão para onde nós enviamos os dos negros: para o museu.”
Fichas dos filmes:
Título em português: As Estátuas Também Morrem
Título Original: Les Statues Meurent Aussi
Realização: Chris Marker e Alain Resnais
Ano: 1953
Argumento: Chris Marker
Fotografia: Ghislain Cloquet
Música: Guy Bernard
Voz: Jean Négroni
Género: documentário
Origem: França
Duração: 30 min
Cor: P/B
Título em português: África, Paraíso e Inferno
Título Original: Fata Morgana
Realização, produção e argumento: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Ano: 1971
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Música: Blind Faith, François Couperin, Händel, Leonard Cohen, Mozart, The Third Ear Band
Com: Eugen Des Montagnes, James William Gledhill
Género: ficção
Origem: Alemanhã
Duração: 79 min
Dentro do ciclo África já ali a decorrer este mês