Racismo institucional, legado do colonialismo
Passados mais de 45 anos das independências das nações ocupadas por Portugal, o colonialismo continua vivo, sendo o racismo o seu maior legado.
O império acabou, o colonialismo foi derrotado. Contudo a narrativa construída nesse período continua patente na ideologia identitária nacional e influencia profundamente as relações entre os indivíduos, assim como a organização social.
Reconhecer as continuidades coloniais patentes na sociedade portuguesa é fundamental para desmontar a história única, a ficção contada e recontada sobre esse período da nossa história coletiva.
O racismo em Portugal é estrutural e institucional, privando dos seus direitos fundamentais as pessoas afrodescendentes e de outras comunidades racializadas. A pobreza e exclusão social são as manifestações mais evidentes das desigualdades resultantes da discriminação étnico-racial. No entanto vivemos num estado de negação desta realidade, a sociedade portuguesa apresenta-se como pós-colonial, multirracial e não racista, logo “cega às cores”.
Apesar do discurso público e político, há evidências de um enraizado racismo cultural e biológico na sociedade portuguesa. Os resultados de uma pesquisa, do programa de investigação “Atitudes sociais dos Portugueses” com dados do European Social Survey que inquiriu 40 mil pessoas com mais de 15 anos, revelam que 52,9 dos inquiridos defendem que há culturas muito melhores do que outras e 54,1% que há raças ou grupos étnicos que nasceram menos inteligentes e/ou menos trabalhadores (Henriques, 2017).
Estas crenças sobre a inferioridade biológica, cultural e social têm a sua origem na ideologia colonial e inscrevem-se num dos mitos do colonialismo português, o da missão civilizadora.
Segundo os teóricos da ideologia colonial cabia à Europa “salvar as populações indígenas da barbárie e primitivismo aproximando-os assim dos sabres da civilização europeia e ocidental” (Menezes, 2010).
Estes argumentos foram enunciados para justificar a exploração, a barbárie, a violência, a opressão e genocídio dos povos dos países ocupados do continente africano, asiático e americano, construindo uma narrativa que subalterniza, infantiliza e inferioriza as civilizações e populações de modo a legitimar as intervenções imperiais em curso.
A propaganda colonial associa a este conceito um outro mito, o de que a expansão Portuguesa foi benigna. A celebração dos chamados “Descobrimentos” alicerça-se no orgulho na expansão marítima. Defende-se a excecionalidade da colonização portuguesa, afirmando-se que Portugal “deu novos mundos ao mundo”, que a colonização portuguesa teve o mérito da miscigenação e que não enfermou da violência e opressão perpetradas por outros regimes colonialistas. Esta retórica, apoiada na teoria lusotropicalista enunciada por Gilberto Freyre nas suas obras, promove a defesa acrítica da excecionalidade do projeto colonial português, assente na fantasia de uma especial vocação dos portugueses para a miscigenação e adaptação às culturas dos trópicos. A narrativa que daí resultou, propagou e continua a propagar a ideia de que Portugal teve um colonialismo suave e de que promoveu um harmonioso encontro de culturas. Narrativa esta que impede o reconhecimento, não só da brutal violência sobre a qual foi erigido o projeto colonial português, mas também da luta determinada e da persistente resistência que lhe opuseram os povos negros desde o início do jugo colonial.
Não é possível continuar a celebrar os “Descobrimentos”, falar com orgulho das caravelas enquanto paradigma do desenvolvimento tecnológico, sem nomear os seus encobrimentos que são a exploração capitalista alicerçada no colonialismo, com a sua ideologia de dominação, e no tráfico de pessoas escravizadas.
É preciso conhecer o passado para compreender o presente. O debate sobre a construção e implementação do projeto colonial português, tendo em conta todas as suas dimensões, assim como a identificação das continuidades, fornece chaves de leitura para uma compreensão mais ampla e profunda da construção e consolidação do racismo como forma de segregação social e económica.
A atual Lei da Nacionalidade, que consagra o direito de sangue em detrimento do direito de solo, impede o acesso à nacionalidade Portuguesa a muitos jovens, filhos de imigrantes, nascidos em Portugal, tornando-os estrangeiros no seu País.
Esta lei inscreve-se numa visão redutora da composição étnico-racial de Portugal, não tendo em conta a diversidade existente. A recusa de direitos de cidadania a pessoas nascidas em Portugal perpetua uma prática, iniciada durante o período colonial e materializada em leis como as do chamado Código do Indigenato, que discrimina em função da origem e em razão da cor da pele, criando cidadãos de primeira e cidadãos de segunda, os renegados da nação.
Esta posição revela a visão do Estado Português sobre como se define a cidadania Portuguesa, quem pode e merece ser português, e o modo como se imagina a identidade nacional.
Portugal não tem, e nunca teve, uma só cor ou um único sotaque. A presença dos negros em Portugal é muito mais ampla no tempo do que aquela que a narrativa identitária portuguesa defende. No entanto, procura-se ativamente associar negros a imigrantes e imigrantes a negros.
Os negros não são percecionados como portugueses. A invisibilização dos negros na sociedade portuguesa, a pouca presença nos locais de produção e reprodução de poder, reforça a crença na homogeneidade fenotípica da sociedade portuguesa, que exclui todos os não brancos, dilui a influência das práticas sociais dos negros na cultura portuguesa e reifica preconceitos e estereótipos.
A reiterada recusa, por parte do Estado Português, da possibilidade de recolha e tratamento de dados estatísticos que tenham em conta a origem ou pertença étnica e racial da sua população, que permitiriam estudar e corrigir as desigualdades que persistem, inscreve-se igualmente nesta estratégia nacional de invisibilização e silenciamento dos negros e de outras minorias étnicas ou raciais.
Esta recusa do reconhecimento que existe uma minoria racial em Portugal, que existem portugueses negros, impede a implementação de medidas específicas para afrodescendentes, o que contraria as recomendações apresentadas a Portugal pela ONU e pelo Conselho da Europa.
Existem especificidades na desigualdade e discriminação a que os afrodescendentes e africanos estão sujeitos e estas devem ser corrigidas com a implementação de medidas, também elas específicas, de combate ao racismo e discriminação racial.
A escola e a educação não se encontram destacadas da sociedade. Vivemos numa sociedade racista onde permanecem inúmeros estereótipos que foram construídos para legitimar o colonialismo e o comércio de pessoas escravizadas. Estas conceções atuam na escola com impactos profundos nos percursos escolares dos estudantes africanos e afrodescendentes.
Os conceitos que discriminam os indivíduos, que os hierarquizam com base na pertença étnico-racial e que perpetuam a ideia de superioridade dos europeus face aos africanos, dos brancos em relação aos negros, permanecem nos currículos. Com frequência se omite, ou diminui, o contributo de civilizações não europeias para o desenvolvimento social e tecnológico. Os fatos históricos são apresentados com uma pretensa neutralidade científica, no entanto fornecem uma leitura claramente eurocêntrica, apontando para uma supremacia quase total das civilizações europeias, reforçando a narrativa do projeto civilizador do colonialismo português.
A representação dos negros nos manuais escolares associa-os à ideia do primitivo, incivilizado, desprovido de cultura. Naturaliza a ausência da história de África e invisibiliza o racismo, alimentando uma retórica estereotipadas sobre África e o “outro” negro/africano.
A promoção da igualdade é da responsabilidade do Estado. O Estado português tem perpetuado, e em muitas dimensões acentuado, a desigualdade estrutural e profunda que se forjou durante o processo colonial português e tem continuidade no presente.
No nosso país, os estudantes com nacionalidade dos países africanos colonizados por Portugal têm maiores taxas de retenção no ensino básico e secundário, são encaminhados com maior frequência para cursos do ensino profissional e têm uma menor taxa de frequência universitária quando comparados com a população escolar de nacionalidade portuguesa.
Aos estudantes provenientes das comunidades racializadas faz-se corresponder uma imagem de alunos com dificuldades de difícil superação, indisciplinados e desajustados. Argumenta-se que os alunos apresentam um perfil inadequado para a frequência dos cursos científico-humanísticos que requerem maior capacidade académica. Justifica-se assim o maior encaminhamento para os cursos profissionais, defendendo que os alunos beneficiam em frequentar vias profissionalizantes que possibilitem a aprendizagem de uma profissão, o que garante uma rápida entrada no mercado de trabalho, promovendo a independência e a integração. Este encaminhamento reitera a retórica da civilização pelo trabalho instituída no período colonial em que para além de salvar almas, a educação dos africanos deveria “educar corpos para o trabalho” (Jerónimo, 2010). Tanto nesse período como agora, defende-se para os estudantes africanos e afrodescendentes uma educação eminentemente prática e funcional, orientada para uma arte ou ofício. Uma educação para e pelo trabalho, em detrimento da educação escolar.
As comunidades africanas e afrodescendentes vivem segregadas nas periferias das cidades. Afastadas dos centros urbanos, a maioria da população de origem africana e afrodescendente foi empurrada para bairros economicamente e socialmente marginalizados. O discurso público sobre estes territórios, conhecidos por serem habitados por populações em que “a grande maioria é de origem africana” que constrói e limpa a cidade, representa estes territórios como lugares de exceção.
Nestes territórios criminalizados como “bairros problemáticos” e violentos, de intervenção prioritária (Raposo e Vilela, 2018) ou “zonas sensíveis”, as comunidades encontram-se expostos a processos de precariedade habitacional, vivendo em bairros municipais ou de autoconstrução, sujeitos a violentos processos de despejo e demolição das suas casas. Nestas urbanizações em que falta quase tudo, os serviços públicos são de difícil acesso, os transportes são escassos e irregulares, as pessoas ficam confinadas ao bairro que se transformam num espaço de exclusão social, sem o direito à cidade.
Esta segregação territorial, que separa física e simbolicamente a cidade “legal/formal” da “ilegal/informal” (Moassab, 2013), reproduz a organização do espaço urbano concebida e implementada durante o período colonial nas cidades dos territórios ocupados no continente africano. Este modelo que isola o centro geográfico e simbólico, do seu avesso, a periferia guetizada onde habitam maioritariamente as comunidades racializadas excluídas do tecido social nacional, promove o controlo social e a subalternização dos sujeitos racializados (Alves, 2013).
O debate sobre o racismo centra-se na dimensão interpessoal, negligenciando a dimensão institucional. As práticas racistas são julgadas através de juízos morais sobre os comportamentos individuais, muitas vezes interpretados como resultado da ignorância ou fruto de opiniões infundadas.
Estas desigualdades evidenciam a dimensão do racismo institucional, menos visível mas tão destrutivo como o racismo individual, que dificulta o real acesso a direitos consagrados na Constituição Portuguesa e mantem à margem da cidadania plena e da participação um grande número de africanos e portugueses negros.
A ocultação do racismo, assim como a sua negação, permite a naturalização da discriminação e a culpabilização das vítimas, reificando-se estereótipos e preconceitos. A resistência a uma análise política mais profunda, que tenha em conta a dimensão institucional do racismo, impede um debate mais alargado.
O racismo institucional e sistémico que hoje enforma o país inscreve-se num continuum histórico, inaugurado pela escravatura e consolidado pelo colonialismo, que não acabou com a derrota do colonialismo.
Adaptação do artigo publicado originalmente no Reader do Ciclo Descolonização no Teatro Maria Matos com o título “Descolonizando as mentes” (2017).
Bibliografia
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Jerónimo, M. B. (2010). «Livros brancos, corpos e almas negras: a “missão civilizadora” do colonialismo português (c. 1870-1930)», Lisboa: ICS. Imprensa de Ciências Sociais, consultado a 10 de outubro de 2019, http://hdl.handle.net/10451/11159(link is external).
Menezes, Maria Paula G. (2010), «O ‘Indígena’ africano e o colono ‘europeu’: a construção da diferença por processos legais». e-cadernos CES [Online], 07 | 2010, colocado online no dia 01 março 2010, consultado a 10 outubro 2019. URL: http://journals.openedition.org/eces/403;(link is external) DOI: 10.4000/eces.403
Moassab, Andréia (2013), «Algumas linhas sobre a urbanização colonial em Angola», Portal Buala, consultado em 10 de outubro 2019 disponível em http://www.buala.org/pt/cidade/algumas-linhas-sobre-a-urbanizacao-colonial-em-angolax(link is external)
Raposo, Otávio; Vilela, Pedro (2017) «Abuso num bairro black, reflexão sobre a violência policial, o racismo e a segregação nas periferias de Lisboa»; Portal Buala, consultado em 10 de outubro 2019 disponível em http://www.buala.org/pt/cidade/abuso-num-bairro-black-reflexao-sobre-a-violencia-policial-o-racismo-e-a-segregacao-nas-perif
Artigo publicado originalmente em Esquerda.net a 13/10/2019