Álbum da guerra colonial: José Rodrigues de Almeida (Angola, 1963-65)

Projeto Álbuns de Guerra (Colonial/de Libertação), parceria BUALA e Fotosíntese.

A construção do álbum

O álbum de fotografias de José (1941-2006) contém 140 imagens obtidas em três períodos e lugares distintos: a aldeia onde nasceu e viveu até aos 13 anos, Travassos, no distrito de Viseu (décadas de 1940-50); o café onde trabalhou na Buraca, concelho da Amadora, dos 13 aos 20 anos (décadas de 1950-60); e durante a fase do Serviço Militar Obrigatório (1961-65) que cumpriu durante quatro anos, divididos entre a recruta (1961-63) e a guerra em Angola (1963-65). Em Angola esteve em S. Salvador do Congo (atualmente, M’banza-Kongo, na província do Zaire) e Negage (na província do Uíge). Cumpriu funções no sector logístico como fiel de um depósito de víveres, pelas quais recebeu um diploma de louvor.

O álbum foi construído por José, em data incerta, algures entre 1965 e 1970. Uma vez que o seu autor faleceu em 2006, todos os depoimentos acerca das fotos foram recolhidos através de entrevistas à sua mulher, Otília (1942-2020), com quem teve uma relação de 45 anos: 6 anos de namoro, dos quais 4 se deu por correspondência (período do Serviço Militar); e 39 anos de casamento (1967-2006). 

As fotografias dispersas no álbum sugerem uma organização peculiar: as imagens da infância e da juventude aparecem em páginas paralelas às da guerra colonial, não obedecendo a uma linearidade espacial ou temporal, criando uma narrativa simultânea e particular das diferentes geografias e afetos. Dentro da mesma página as imagens estão organizadas segundo dois critérios: por temáticas oriundas de atividades (procissão, malha do centeio, construção de um túmulo, festas, jogo de futebol, partida e chegada do barco Vera Cruz), e por locais, pessoas e vivências. 

A origem das imagens

Todas as fotos foram obtidas por terceiros, provavelmente fotógrafos profissionais e amadores (amigos de José), pois este não possuía meios económicos, nomeadamente máquina fotográfica, que lhe permitissem fotografar. Muitas das imagens têm um carimbo no verso, que revela o local onde foram reveladas e/ou impressas: “Foto Feliz, BORGES, São Salvador”; “Secção AMADORES, FOTO FILME”; “Foto-Sport, Luanda”. 

Infância e a adolescência

José nasceu em Travassós, aldeia próxima de Viseu, onde viveu até aos 13 anos. Quarto filho de uma fratria de cinco, de pais agricultores analfabetos, ficou órfão de mãe aos três anos. Cresceu num contexto de família rural, pobre, no interior do país, em meados do século XX. Estudou até à 4ª classe. Aos 13 foi enviado para a Buraca, trabalhando como empregado num café onde em simultâneo, residia, habitual à época. As fotografias que vemos, referentes a esse período, tanto da aldeia, como do café, documentam pessoas e atividades quotidianas (ceifa do trigo, procissão). Em resultado das condições económicas, o uso da fotografia não era comum nesses tempos. Quando este se propiciava passava a ser um momento de festa, para o qual as pessoas vestiam os seus melhores trajes — os “fatos de domingo” — fazendo tributo ao momento e à possibilidade de ficarem “na foto”. 

As representações fotográficas com que aqui nos deparamos são encenadas e construídas, recriam atividades e momentos quotidianos. Os seus protagonistas surgem, contudo, bem trajados e alegres, como se vê nas imagens da ceifa do trigo (aquelas roupas não tinham uso na faina diária) ou do piquenique (nas quais os garrafões são exibidos em destaque ), ou ainda nos retratos pessoais. Nestes, os fatos domingueiros contrastavam com a falta de sapatos, que não possuíam. A construção da imagem parecia fundamentar-se na ideia da transmissão de memórias radiosas. 

Vida militar

José foi chamado para a tropa aos 20 anos, cumprindo dois anos de recruta entre Aveiro e Elvas (1961-63). Atendendo às suas reduzidas habilitações literárias, ingressou como soldado, tendo sido, mais tarde, promovido a Cabo. Durante a tropa, a sua esposa Otília recebeu várias cartas e fotografias de José fardado, imagens que ele lhe enderessava com belas dedicatórias. Vemos aqui também fotografias da sua madrinha de guerra, residente em Aveiro, e que lhe fora atribuída aquando da mobilização para Angola. Eles correspondiam-se, tal como com a Otília, por aerograma, pois era gratuito. Segundo Otília, durante a estadia em Angola, a madrinha nunca contactou a família de José, para dar notícias ou para de algum modo ajudá-la, como seria suposto.

Partiu para Angola no barco Vera Cruz, na Rocha Conde Óbidos, em Setembro de 1963, chegando a Luanda nesse mesmo mês. Temos algumas fotografias do porto de Lisboa, repleto de soldados e de famílias despedindo-se. Otília não o acompanhou, pois encontrava-se a trabalhar na aldeia, não tendo sido dispensada.

José permaneceu pouco tempo em Luanda, tendo partido quase de imediato para a cidade onde foi colocado: S. Salvador do Congo, antiga capital do reino do Congo, renomeada M’banza Kongo, após a independência em 1975. Esta cidade fica a 500 km a noroeste de Luanda, situando-se no topo de um planalto. Dispomos de algumas imagens de Luanda e desta viagem. Vêem-se casas ao longo do percurso, mas todas as fotografias são curiosamente tiradas a partir da estrada, mantendo a rodovia no enquadramento, como se não se pudesse percorrer as ruas com segurança. Estávamos no início da guerra colonial, José tinha funções no sector logístico, como fiel de um depósito de víveres, não estando exposto à frente de combate. A maioria das fotografias que temos da guerra colonial são deste período. Mostram maioritariamente ambientes de alegria e confraternização entre colegas e populações da aldeia. José era uma pessoa muito afável, facilmente fazia amigos e gostava de conviver, mostrando simplicidade e facilidade em se associar a diferentes pessoas, pois assim estava habituado, como se vê nestas imagens, reais e encenadas, de almoços e convívios onde o que se fotografava era, de facto, o que se pretendia reter. 

Nas cartas que escrevia a Otília, além dos sentimentos de saudade, raramente expunha emoções negativas ou relatos de situações difíceis; ou porque não estava exposto a elas ou porque não a pretendia inquietar. Todo o tom das cartas era alegre, como se o quotidiano em Angola fosse relativamente feliz. José sentia-se bem tratado e teve algumas oportunidades durante este período, nomeadamente a de tirar a carta de condução, o que lhe permitiu conduzir um jipe e transportar víveres e pessoas.

A sua segunda missão foi em Negage (na província do Uíge), a nordeste de Luanda. Não é possível saber-se quando ali chegou, nem quanto tempo por lá permaneceu. Existem menos imagens deste período e curiosamente são fotos de menores dimensões, dificultando a leitura. Alternam-se imagens de habitações locais, construções mais precárias do que aquelas que tinha visto em S. Salvador, com outras do seu dia a dia, acompanhado de colegas e habitantes locais. Transparece o mesmo ambiente amigável e jovial pressentido nas fotos de S. Salvador, e que curiosamente era também identificado na aldeia de Travassós, como se todos estes lugares formassem um contínuo. A encenação de situações para a fotografia estende-se às imagens do período colonial, nas quais José finge tocar um acordeão, quando na realidade, não sabia tocar qualquer instrumento, ou na imagem em que manipula um rádio (como se fosse um técnico de telecomunicações) – a criação de imagens de júbilo, de memórias felizes, através da fotografia, mantinha-se constante.

Sempre que José mostrava este álbum emocionava-se, transparecia emoções nostálgicas e saudosistas, dando a entender que as vivências deste período foram essencialmente bem-aventuradas. 

Histórias de algumas fotografias

Mulheres negras

Nas diversas imagens com mulheres negras, e onde habitualmente ele próprio está presente, interagindo com elas, sugerem-se relações de afecto e de proximidade, afecto que perpassa de uma das fotos para o seu verso; frente e verso tornam-se assim semelhantes, camadas que o tempo de alguma forma se encarregou de esbater. Tal fenómeno não passou despercebido a Otília, que uma vez o questionou directamente se havia tido alguma namorada durante a sua estada em África. À pergunta respondeu que não, que eram apenas amigas de quem sentia – foi a própria Otília quem o afiançou – uma “profunda saudade”. Esta proximidade com pessoas negras, tanto locais como colegas, é visível em outras imagens (equipa de futebol, almoços de convívio, brincadeiras), indicando uma interação quotidiana informal, aparentemente esbatidas as distinções de cor ou classe social. 

Construção da lápide

À Otília, José falou particularmente das fotografias relativas à construção de uma lápide. Um seu colega, próximo, falecera de acidente de automóvel. Então, juntamente com os colegas, construíram esta lápide e realizaram uma cerimónia fúnebre. Registaram o momento e enviaram a foto à família, pois era importante testemunhar este procedimento como reconforto dos familiares. Esta foi uma situação particularmente penosa para José. Faleceram algumas pessoas que lhe foram próximas durante a guerra colonial mas, como não se encontrava diretamente na frente de combate, o seu maior confronto durante este período não foi com a morte, mas sim com a alteridade e com um ambiente de solidariedade e amizade que nunca havia sentido antes, o que contribuiu para as memórias assumirem um cunho tendencialmente positivo.

O encontro de José e Otília

“Nós vivíamos em aldeias relativamente próximas, a 30 minutos a pé” – disse-nos Otília. “Uma vez fui buscar água à fonte e vi o José sentado junto à fonte a observar-me, foi a primeira vez que nos vimos. Dias mais tarde, o carteiro trouxe a correspondência e, como fazia habitualmente, parou no largo da aldeia para chamar as pessoas pelo nome e entregar as cartas em mão. Naquele dia, tinha uma carta endereçada à Otília, mas sem sobrenome. Havia duas Otílias naquela aldeia, eu e outra rapariga praticamente da minha idade. Perante o dilema o carteiro decidiu abrir a carta e ler, só para ele mesmo, para tentar perceber para quem poderia ser a carta endereçada. Leu e releu, olhou para ambas, e disse de forma afirmativa: é para ti. Peguei nela e fui para casa. A carta tinha uma descrição exata do momento em que nos tínhamos visto pela primeira vez na fonte. Pela precisão e beleza, o carteiro entendeu que só poderia ser eu”. 

Informações sobre o álbum:
Partida para Angola: 1963
Duração da comissão: 1963 a Fevereiro de 1965
Locais fotografados: Travassós (Viseu), Buraca (Amadora); São Salvador do Congo (Zaire), Negage (Uíge).
Génese do álbum: anos 60-70.

por Lana Almeida
Corpo | 4 Abril 2020 | álbuns de guerra, angola, Fotografia, guerra colonial